quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Wordsworth - Fragment from The River Duddon e Bruno de Menezes - Reis Magos / Dois poemas de natal

Feliz Natal para todos. Em comemoração a esse dia especial, posto um poema de Wordsworth traduzido. Na verdade, este fragmento do poema é mais famoso que o próprio poema inteiro, e já é de um período em que a qualidade poética do autor já estava bastante gasta. Por fim, posto também um belíssimo poema de natal do poeta paraense Bruno de Menezes, um dos fundadores do modernismo na região Norte, mas cujo poema apresentado antecede o ano de 1922. A minha primeira impressão foi a de postar o "Soneto de Natal" de Machado de Assis ou Vinícius de Moraes, mas são poemas tão afamados que já devem ter sido lidos por todos. Então resolvi escolher poemas de natal de Jorge de Lima, Pinagé ou Bruno de Menezes, menos famosos, e escolhi esse, que remete ao natalício de Jesus.
De resto, feliz natal para todos, e que venham muitos livros de presente.

THE RIVER DUDDON - WORDSWORTH (Fragment, 1820)

THE Minstrels played their Christmas tune
To-night beneath my cottage-eaves;
While, smitten by a lofty moon,
The encircling laurels, thick with leaves,
Gave back a rich and dazzling sheen,
That overpowered their natural green.

Through hill and valley every breeze
Had sunk to rest with folded wings:
Keen was the air, but could not freeze,
Nor check, the music of the strings;
So stout and hardy were the band
That scraped the chords with strenuous hand;

And who but listened?--till was paid
Respect to every Inmate's claim:
The greeting given, the music played,
In honour of each household name,
Duly pronounced with lusty call,
And "merry Christmas" wished to all!


O Rio Duddon (fragmento) - Wordsworth

Tons de Natal tocaram os menestréis
Esta noite, bem cá nos meus beirais;
Tocado pela altiva lua, a pés,
Grossas folhas, o louro circundais,
Um brilho deslumbrante devolver de
Volta, que dominou seu próprio verde.

Por vales e colinas, cada brisa
Com asas retraídas descansou:
Ávido era o ar, mas não congelaria,
E a música das cordas não checou;
Forte e hábil era a banda que então
Tocou os acordes com extenuante mão.

E quem foi que escutou? - até ser pago
Respeito ao clamor de cada interno,
A música tocada, o aplauso dado
Em honra de cada um irmão fraterno,
Bem pronunciada em apelo sensual,
Desejando a todos: “Feliz Natal”.

Trad: Raphael Soares


Reis Magos - Bruno de Menezes

Quando sonho em três almas... três destinos
Voltados para a luz redencional.
Reis Magos transformados em beduínos,
Seguindo um astro sobrenatural.

E por lendárias noites, o areal
Viu as sombras dos régios peregrinos,
Olhos fitos na Estrela do Natal,
Conduzindo os três símbolos divinos.

“Ouro, porque é Rei”, - disse o primeiro.
“Incenso, porque é Deus”, - disse o segundo.
“Mirra, porque é Amor”, - disse o terceiro.

Baixara à terra o luminoso guia...
Jesus teve no olhar a Luz do mundo,
E a Dor brilhou nos olhos de Maria.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Charles Bukowski - Beer

Aqui faz parte da série A Cerveja é o Melhor Remédio, da qual faz parte as [Linhas Sobre Cerveja] do Poe e uma série de poemas sobre cerveja da literatura mundial que um dia compilarei nessas páginas de Blog. O poema que se segue é de Charles Bukowski do livro Love is a mad dog from hell (Que costumo traduzir por O Amor é um Cão Louco dos Infernos), contendo a poesia do autor entre os anos de 1974 a 1977. Bukowski tem uma rara sorte de ser conhecido no Brasil tanto pela sua prosa quanto pela poesia, mas assim como Oscar Wilde sua biografia pessoal e o topos de sua arte costumam ser mais relevantes para os leitores comuns e aficionados por literatura que suas obras em si. Em breve mais Bukowski e mais cerveja, talvez eu dedique um mês para a cerveja ou a bebida em geral (Carnaval está chegando, não é mesmo?).

Beer - Charles Bukowski

I don’t know how many bottles of beer
I have consumed while waiting for things
to get better
I don’t know how much wine and whisky
and beer
mostly beer
I have consumed after
splits with women—
waiting for the phone to ring
waiting for the sound of footsteps,
and the phone to ring
waiting for the sounds of footsteps,
and the phone never rings
until much later
and the footsteps never arrive
until much later
when my stomach is coming up
out of my mouth
they arrive as fresh as spring flowers:
“what the hell have you done to yourself?
it will be 3 days before you can fuck me!”

the female is durable
she lives seven and one half years longer
than the male, and she drinks very little beer
because she knows it’s bad for the figure.

while we are going mad
they are out
dancing and laughing
with horny cowboys.

well, there’s beer
sacks and sacks of empty beer bottles
and when you pick one up
the bottle fall through the wet bottom
of the paper sack
rolling
clanking
spilling gray wet ash
and stale beer,
or the sacks fall over at 4 a.m.
in the morning
making the only sound in your life.

beer
rivers and seas of beer
the radio singing love songs
as the phone remains silent
and the walls stand
straight up and down
and beer is all there is.



Cerveja - Charles Bukowski

Eu não sei quantas garrafas de cerveja
bebia enquanto aguardava as coisas
ficarem melhor
Eu não sei quanto vinho e whisky
e quantas cervejas
principalmente cerveja
bebia após
me trocar com mulheres—
aguardando o telefone tocar
aguardando o som dos passos,
e o telefone tocar
aguardando o som dos passos,
e o telefone nunca toca
até bem depois
e os passos nunca chegam ao destino
até bem depois
quando meu estômago pula para
fora da minha boca
elas chegam frescas como as flores da primavera:
“que porra fizeste contigo mesmo?
faltam 3 dias antes que possas me fuder!”

a fêmea é durável
ela vive sete anos e meio mais
que homens, e bebe menos cerveja
porque ela sabe que faz mal às aparências.

Enquanto ficamos doidos
elas estão fora
dançando e rindo
com cowboys tarados.

bem, aqui há cerveja
sacos e sacos de garrafas vazias de cerveja
e quando sacas uma
a garrafa cai pelo fundo molhado
do saco de papel
rolando
tilintando
derramando cinzas úmidas
e cerveja choca,
ou os sacos caem às 4:00
da manhã
fazendo o único som em sua vida.

cerveja
rios e mares de cerveja
a rádio cantando canções de amor
enquanto o telefone permanece silente
e as paredes permanecem
subindo e descendo
e a cerveja é tudo o que há.
Trad: Raphael Soares

domingo, 14 de dezembro de 2014

Paul Verlaine - Le Rossignol


Le Rossignol - Paul Verlaine

Comme un vol criard d'oiseaux en émoi,
Tous mes souvenirs s'abattent sur moi,
S'abattent parmi le feuillage jaune
De mon coeur mirant son tronc plié d'aune
Au tain violet de l'eau des Regrets
Qui mélancoliquement coule auprès,
S'abattent, et puis la rumeur mauvaise
Qu'une brise moite en montant apaise,
S'éteint par degrés dans l'arbre, si bien
Qu'au bout d'un instant on n'entend plus rien,
Plus rien que la voix célébrant l'Absente,
Plus rien que la voix - ô si languissante ! -
De l'oiseau que fut mon Premier Amour,
Et qui chante encor comme au premier jour;
Et dans la splendeur triste d'une lune
Se levant blafarde et solennelle, une
Nuit mélancolique et lourde d'été,
Pleine de silence et d'obscurité,
Berce sur l'azur qu'un vent doux effleure
L'arbre qui frissonne et l'oiseau qui pleure.




O Rouxinol - Paul Verlaine

Como um voo de aves em motim
As lembranças se abatem sobre mim,
Se abatem pela amarela folhagem
De meu coração mirando sua paisagem,
Tronco torto de amieiro à violeta d'água
(que corre melancólica) das Mágoas,
Se abatem, e pois que o rumor malvado
Que por brisa branda foi acalmado,
Se extingue aos poucos n'árvore, se bem
Que num instante resta nada além,
Nada além da voz celebrando o Ausente,
Nada além da voz, - tão enlanguescente! -
Da ave que foi o meu Primeiro Amor,
Como o primeiro dia canta em ardor;
E sobre o esplendor triste de sua lua
Se eleva pálida e solene, sua
Noite melancólica de verão
Plena de silêncio e de obscuridão,
Embala no azul que um vento doce aflora
A árvore que treme e a ave que chora.

Trad: Raphael Soares

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Comentário sobre Fears and Scruples, de Robert Browning

Robert Browning foi um poeta inglês particularmente interessante. Aliás, pertence a um período bastante curioso da literatura inglesa (e somente dela) que é denominada tradicionalmente pelo nome genérico de "período vitoriano", devido ter existido durante o reinado da rainha Vitória, entre 1840 e 1880, e que ocorreu logo após a literatura feita pelos grandes românticos da primeira (Blake, Wodsworth e Coleridge) e da segunda (Shelley, Byron e Keats) geração. O romantismo inglês praticamente se encerra na década de 20, praticamente com a morte de Byron (em 1824). Os românticos que sobrevivem (a exceção apenas de Landor) não puderam escrever mais grandes obras de relevância, e a geração que se seguiu foi bastante prolífica, a seu modo. O mais curioso é que, na prática, pouca coisa tem em comum os principais nomes desse período: Tennyson, Elizabeth Browning, Robert Browning, Dante Gabriel Rossetti, Christina Rossetti, Algernon Charles Swinburne, Matthew Arnold, as Irmãs Brönte e George Meredith, além de curiosidades como Fitzgerald, Edward Lear, Lewis Carrol e principalmente G. M. Hopkins, bem como um sem número de escritores menores, aqui representado apenas pelo soneteiro Blunt. De poesia, o que temos desses autores traduzidos no Brasil? Um sem número de pequenos poemas esparsos em livros, jornais e na internet. Em livro exclusivamente o único que ainda possui alguma sorte é Hopkins, com algumas antologias traduzidas por Augusto de Campos, Aíla Gomes, Luís Bueno bem como poesias esparsas mais facilmente encontráveis. De Browning temos um único livro: O Flautista de Manto Malhado de Hamelin, em tradução de Alípio Correia de França Neto (sorte que tem também Swinburne com um livro de um poema só: Dolores). De resto temos o poema Mocidade e Arte (1948, por Bezerra de Freitas), O Amor entre as Ruínas, um fragmento de Sordello, Minha Última Duquesa (1950, 1995 e 1996 respectivamente, por Décio Pignatari), Lembranças longe da pátria, Encontro à noite (1988, por José Lino Grünewald), Childe Rolland à Torre Negra Chegou (de 2000 por Fabiano Moraes), O Patriota (por Cunha e Silva Filho), O Amante de Porfíria (2012, por Adriano Escandolara), o Flautista de Hamelin (2012, por Valdir Dalla Mata) e O Amor Entre Ruinas (2014, por Matheus Mavericco). Em Portugal há mais algumas traduções: A. Herculano de Carvalho, João Almeida Flor e, possivelmente, Fernando Pessoa.

O poema Fears and Scruples chamou-me a atenção a partir da leitura do ensaio Kafka e seus precursores de Jorge Luís Borges. Vale a pena transcrever o trecho na íntegra:

A quarta das prefigurações [de Kafka] foi a que encontrei no poema "Fears and Scruples", de Browning, publicado em 1876. Um homem tem, ou julga ter, um amigo famoso. Nunca o viu e o fato é que ele não pode, até agora, ajudá-lo, mas dele contam gestos muito nobres, e cartas autênticas circulam com seu nome. Há, porém, quem ponha em dúvida os gestos, e os grafólogos afirmam o caráter apócrifo das cartas. O homem, no último verso, pergunta: "E se esse amigo fosse Deus?".

É no mínimo uma leitura curiosa a de Borges, vendo Browning pela contramão, ou seja, a partir de um possível (porém muitíssimo improvável) sucessor: Kafka. Como praticamente todas as leituras do escritor, é simplista, arbitrária e profundamente imprecisa. Ignora boa parte das características e possíveis significações do poema, particularmente no que se refere à religiosidade e "crítica religiosa" (no que se refere à "nova crítica", miticismo e busca pela historicidade documental das escrituras sagradas, com muitos expoentes na Inglaterra da década de 70-80), e reduzindo o poema a uma narrativa do absurdo avant la lettre, o que não é de modo algum. Ainda assim, não deixa de ser uma interessantíssima leitura, que nos mostra as possibilidades das mais arbitrária de se ler um escritor mais próximo de nós, e uma solução antiacademicista para se encontrar prazer numa leitura, com base em suas relações mais improváveis: ler Browning a partir de Kafka, que muito provavelmente não leram um ao outro.

Ignorar o aspecto religioso do poema é ignorar talvez sua parte mais interessante. O poema refere-se claramente a isso em várias passagens: o amigo oculto (unseen), as cartas (letters), as escrituras (writings), os atos (actions) e a coda do último verso, associando diretamente o amigo a Deus. Há ainda uma referência menos clara (principalmente em língua portuguesa, pelos motivos que explicarei): "All my days, I'll go the softlier," é uma citação de Isaías, que em língua portuguesa passa por alguns problemas, pois não possuímos uma bíblia com a mesma função social quase que "oficial" como as versões KJB Authorized version, exceto se tratando de pequenos grupos religiosos, como os Testemunhas de Jeová, por exemplo. Por um lado, temos em português a Bíblia de João Ferreira de Almeida, que é a mais antiga versão completa direto dos originais, no entanto, as sucessivas revisões da bíblia trouxeram uma discrepância entre o uso do adjetivo na seguinte passagem: mansamente, calmamente e humildemente, essa última sendo a mais comum nas bíblias mais novas. Por outro lado, a maioria da população brasileira é (ou ao menos não negou ser) católica, e nas bíblias católicas a forma é bastante diferente, pois esse é o texto base da Nova Vulgata ("lembra-te de que lenho andado na tua presença com fidelidade e de coração inteiro", por exemplo, na Bíblia de Jerusalém; as bíblias mais antigas não contém o adjetivo, pois são baseadas na Vulgata de Jerônimo). Optei pela forma "manso" porque é a forma que aparece na edição de Almeida de 1870, de maior circulação no período, mesmo que apenas a Almeida Corrigida Fiel da Sociedade Bíblica Trinitariana mantenha a forma "mansamente".

Há no poema uma quadra que considero absolutamente fantástica:

"Letters?" (hear them!) "You a judge of writing?
  Ask the experts! How they shake the head
O'er these characters, your friend's inditing -
  Call then forgery from A to Z!
que verti como:

“Cartas?” (ouça) “Acaso julgas escrituras?
  Pergunte a especialistas, e eles irão ler
Sobre esses caracteres, e essas feituras –
  Chamá-los-iam forjados de A a Z!

A crítica tende a apontar como uma resposta à "Nova Crítica", como a de Baur e Renan, que negavam a veracidade das escrituras como valor histórico absoluto. Mas acho curioso os exegetas de Browning ignorarem a situação da crítica textual da bíblia (partindo das variantes da edição do Novo Testamento Grego de Mill e dos pesquisadores posteriores que vieram a sacrificar suas vidas à crítica textual do Novo Testamento) e do pensamento ateísta na Inglaterra, em especial de Charles Bradlaugh, o mais famoso ateu-político da ilha no período, e seu discípulo ainda mais famoso e radical J. M. Robertson, pai da teoria do Mito de Jesus. Pensando nos pesquisadores ingleses da época faz mais sentido a questão de perguntar aos doutos especialistas a veracidade das cartas, das escrituras. Mais importante é o paragrafo seguinte em que se questiona: "He, of all you find so great and good,/He, he only, claims this, that, the other/Action - claimed by men, a multitude?". Argumento usado anos depois por Robertson para negar a historicidade de Jesus: quem mais disse sobre ele que não seus discípulos, considerando que para a maioria dos defensores dessas teorias as citações de Tácito nos Anais e de Josefo nas Antiguidades são forjadas (e a carta de Plínio é ambígua), e nenhuma delas fala de quaisquer prodígios do filho de Deus. Considero esses dois parágrafos um centro interessantíssimo do poema, já que o talento lírico de Browning se mostra ainda mais forte quando põe palavras nas bocas daqueles em que não acredita.

De resto, o poema usa duas split-rhymes (love him/above him e refute you/brute you), sendo que mantive do mesmo modo a primeira e devido a natureza da construção não pude manter na segunda (até poderia, mas "tu é bruto, tu" soaria paraense em demasia, e "embrutecer-vos" muito longe do estilo original), mas mantive exatamente as mesmas vogais de todo o segmento (vos refuto/vós seus brutos). Porém, não resisti em colocar "Peep at hide-and-seek" como "Pira-se-esconde", embora não faça a mínima ideia se essa brincadeira (pique esconde, esconde esconde entre outros nomes) se chama assim em outra parte do Brasil. Conhecendo o poeta sinto que essa opção é perdoável. De resto, com uma ou outra opção que fui obrigado a tomar (ou fiz porque quis mesmo), o texto traduzido segue muito próximo o som e as palavras do texto em inglês, e aceito sugestões para a melhoria. Já recebi uma, inclusive.

sábado, 6 de dezembro de 2014

Anne Finch, Countess of Winchilsea - The Introduction

Tenho de primeiramente pedir desculpas pela minha ausência. Uma série de fatores externos (e alguns não tão externos assim) me impediram ou dificultaram de postar no blog mensalmente, e fiquei quatro meses afastado do blog. Entre esses fatores os mais importante foram a sequência de viagens a Curitiba com o objetivo de fazer a seleção para o Mestrado em Letras na UFPR (em que fui aprovado, para ser orientado pelo tradutor de Joyce, o profº Dr. Caetano Waldrigues Galindo), e meus problemas com a minha operadora de internet que, Claro, não direi qual é. Apesar de tudo, quero compensar o tempo ausente postando, ao menos 5 postagens neste mês para compensar os demais, então isso vai ficar um pouco mais movimentado nos últimos tempos. Procurarei fazer mais comentários sobre traduções também, além de traduções novas: estou devendo um comentário sobre a opção entre os decassílabos e dodecassílabos para verter o pentâmetro jâmbico inglês, um sobre forma e conteúdo em traduções, um comentário sobre a tradução anterior e etc... Nas próximas postagens também planejo fazer alguns comentários sobre a Eneida de Virgílio em Português, então não percam os capítulos dos próximos episódios.

Hoje, trago um poema de Anne Finch, a Condessa de Winchilsea (1661-1720). A simples data já seria uma boa justificativa para traduzi-la: há no Brasil uma carência generalizada de poetas e poesias do século XVII. Temos as últimas obras de Shakespeare, mas ele é um poeta que pertence ao século anterior, e alguma coisa de Donne e Ben Johson muito esparsamente. Do centro do século temos apenas Milton, e muito mal, apesar de novas traduções de Paraíso Perdido e uma recente, e única, tradução de Paraíso Reconquistado feita a quatro mãos. Mas o que dizer dos outros grandes nomes do período? Robert Herrick, George Herbert, Samuel Butler, John Wilmot, Andrew Marvel e até mesmo John Dryden? Pouco se tem em português desses autores (e, para falar a verdade, pouco se lê dos autores de língua portuguesa do mesmo período), exceto uma ou outra pequena antologia ou publicados esparsamente num jornal ou revista. Para piorar, mesmo buscando em vários tomos sobre literatura inglesa e cânones de autores (como Pound, Bloom e outros maníacos por listinhas) nunca havia ouvido falar de Anne Finch até me deparar com o ensaio UM TETO TODO SEU, de Virgínia Woolf. A condessa de Winchilsea parece realmente um daqueles casos assustadores de descaso completo. Bastando olhar de relance o poema que ora apresento, The Introduction, para notar o quão forte é a expressão de uma mulher poetisa do século XVII, e de modo que nunca fora dito anteriormente. Se a poetisa tem seus defeitos e seus excessos, muito talvez seja os defeitos e excessos que nós imputamos aos escritores do período (e que talvez sejam os defeitos e faltas de nós mesmos), e que não são melhores em um escritor do sexo masculino como Marvel, Rochester ou Dryden. Se dela temos uma obra menor, boa parte é devido a ela ser mulher, e portanto possuir menos possibilidades para publicar e imortalizar-se com sua obra. Mas se ela apresenta grandes qualidades, muitas delas são justamente pelas mesmas razões, como poderá ser visto no poema que se segue.

The Introduction foi escrita provavelmente no início da carreira poética de Anne Finch (muito provavelmente em torno do início da década de 90), para um livro de poemas que a escritora imaginava escrever (como também indica o próprio poema). O livro nunca veio à luz, porque seria escrito por uma mulher, mas a autora permitiu que um livro de versos seus fosse publicado anonimamente em 1713. The Introduction, no entanto só foi publicado em 1903. O poema é uma espécie de introdução quase desculpa (típica de alguns escritores de várias épocas), mas chama atenção a noção que a autora tem em relação a ser uma escritora do gênero feminino, as dificuldades, julgamentos e a ética que permeia esse fato. Não consigo pensar em nenhum poema anterior a este que contenha notas de amargura, ironia e percepção da condição feminina. Creio ser melhor o próprio poema defender-se sozinho. O texto utilizado é o da 5ª Edição da Norton Anthology of Poetry (2005), e apresento o poema em duas traduções (que espero poder discutir melhor as diferenças entre elas em outra ocasião), de modo similar ao que fiz com o Soneto XIV de Shakespeare: uma versão em decassílabos e uma em dodecassílabos, em ambos os casos mantendo o mesmo número de versos e as rimas nas mesmas posições (algumas vezes de modo imperfeito). Notar que o último verso é um hexâmetro, por isso vertido igualmente nas duas versões.

The Introduction - Anne Finch, Countess of Winchilsea

Did I, my lines intend for public view,
How many censures, would their faults pursue,
Some would, because such words they do affect,
Cry they're insipid, empty, incorrect.
And many have attained, dull and untaught,
The name of wit only by finding fault.
True judges might condemn their want of wit,
And all might say, they're by a woman writ.
Alas! a woman that attempts the pen,
Such an intruder on the rights of men,
Such a presumptuous creature, is esteemed,
The fault can by no virtue be redeemed.
They tell us we mistake our sex and way;
Good breeding, fashion, dancing, dressing, play
Are the accomplishments we should desire;
To write, or read, or think, or to inquire
Would cloud our beauty, and exhaust our time,
And interrupt the conquests of our prime;
Whilst the dull manage of a servile house
Is held by some our outmost art, and use.
Sure 'twas not ever thus, nor are we told
Fables, of women that excelled of old;
To whom, by the diffusive hand of Heaven
Some share of wit, and poetry was given.
On that glad day, on which the Ark returned,
The holy pledge, for which the land had mourned,
The joyful tribes, attend it on the way,
The Levites do the sacred charge convey,
Whilst various instruments, before it play;
Here, holy virgins in the concert join
The louder notes, to soften, and refine,
And with alternate verse complete the hymn divine.
Lo! the young Poet, after God's own heart,
By Him inspired, and taught the Muses' art,
Returned from conquest, a bright chorus meets,
That sing his slain ten thousand in the streets.
In such loud numbers they his acts declare,
Proclaim the wonders of his early war,
That Saul upon the vast applause does frown,
And feels its mighty thunder shake the crown.
What, can the threatened judgment now prolong?
Half of the kingdom is already gone;
The fairest half, whose influence guides the rest,
Have David's empire o'er their hearts confessed.
A woman here, leads fainting Israel on,
She fights, she wins, she triumphs with a song,
Devout, majestic, for the subject fit,
And far above her arms, exalts her wit;
Then, to the peaceful, shady palm withdraws,
And rules the rescued nation, with her laws.
How are we fall'n, fall'n by mistaken rules?
And education's, more than nature's fools,
Debarred from all improvements of the mind,
And to be dull, expected and designed;
And if some one would soar above the rest,
With warmer fancy, and ambitions pressed,
So strong th'opposing faction still appears,
The hopes to thrive can ne'er outweigh the fears,
Be cautioned then my Muse, and still retired;
Nor be despised, aiming to be admired;
Conscious of wants, still with contracted wing,
To some few friends, and to thy sorrows sing;
For groves of laurel thou wert never meant;
Be dark enough thy shades, and be thou there content.




A Introdução - Anne Finch, Countess of Winchilsea

Fiz eu tais linhas para a vista pública,
Quantas faltas, censuras, tem tal rúbrica,
Um "seria", com letra afetarão,
Choram pois é vazia, incorreção.
E quantos o alcançaram, tolo e ingrato,
O nome do saber por achar falta.
Talvez julguem sua falta de saber,
Todos dirão: escrito por mulher.
Oh dó! uma mulher que tenta a pena,
Intrusa ao ofício de homem ela tenta,
Presunçosa criatura, estimada,
Por virtude alguma a falta é perdoada.
Dizem-nos que erramos sexo e caminho;
Boa de dançar, procriar, tocar pianinho
São tudo o que devemos desejar;
Ler, escrever, pensar, investigar
Nossa beleza turva, tempo gasta,
E interrompem as conquistas da casta;
Co'o débil comando de um lar servil
É, para alguns, nossa maior arte, util.
Nem mesmo assim, contar não nos compete
Fábulas, de umas que em velhice excedem;
A quem, por divisível mão dos Céus
Teve o saber e a poesia deu.
Que dia alegre, a Arca retornou,
Penhor sagrado, e a terra então chorou,
Tribos alegres, cuidam no caminho,
Levitas sacra carga tem certinho,
Antes tocaram seus instrumentinhos;
As virgens santas 'stão a concertar
Sonoras notas, mansas, refinar,
E com alternado verso o hino encerrar.
Veja! poeta, do cerne do Senhor,
Por ele instado em Musa a arte expor,
Retorna da conquista, e o coro aclara,
E canta os dez mil mortos pela estrada.
Em tais altivos números se encerra,
Proclamam as maravilhas de sua guerra,
Que Saul com vasto aplauso enfureceu,
Sentiu que a coroa o trovão venceu.
O quê? pode a pena então prolongar?
Metade do reinado findo está;
Melhor metade, que serve de guia,
O império de David confessaria.
Mulher, lidera Israel com distinção,
Lutou, venceu, triunfou com uma canção,
Devota, para isso que nasceu,
E sua armada exalta seu saber;
Então, pacífica, sua palma vela,
E a regra faz nação, com as leis dela.
E agora caímos por regras erradas?
Tolice de educação originada
Barrado das melhorias da mente,
Designado agir tão debilmente;
E se uma só se eleva sobre o resto,
Com morna fantasia e sem cabresto,
Irão aparecer contra fatores,
A esperança é mais fraca que os temores,
Cativa, a minha musa, aposentada;
Visa a admiração, não desprezada;
Consciente das vontades, contrai as asas,
A alguns poucos amigos, dor cantada;
Da láurea o gozo nunca saborear;
Se encobrir de tua treva, e irás te contentar.

Trad: Raphael Soares



Venus Attired by the Graces, de Anne Finch. Óleo sobre tela
A Introdução - Anne Finch, Countess of Winchilsea

Fiz meus versos querendo que o público veja,
Quantos censuram pelas faltas que sobeja,
Iriam porque em tais palavras afeta,
Choram: vazias, insípidas, incorretas.
E quantos alcançaram, tolo e incontado,
O nome do saber achando apenas falta.
Talvez condenem o seu senso de saber,
Assim todos dirão: escrito por mulher.
Oh dó! uma mulher que é à pena afeita,
Como intrusa ao que é do homem direito,
Como presunçosa criatura, estimada,
A falta por virtude não será perdoada.
Dizem-nos que erramos nosso sexo e caminho;
Boas de vestir, dançar, procriar, tocar pianinho
São toda coisa que devemos desejar;
Porém ler, escrever, pensar, investigar
Enevoam a beleza, nosso tempo irrompe,
E as conquistas do nosso sexo interrompem;
Co'o débil comando de uma casa servil
É tido por alguns nossa maior arte, util.
Nem mesmo assim, contar não nos compete
Fábulas, de umas que em velhice excedem;
A quem, que pela divisível mão dos Céus
Compartilhou saber e a poesia deu.
E nesse alegre dia em que a Arca retornou,
Sagrado compromisso, e a terra então chorou,
Tribos em alegria, cuidam no caminho,
Levitas tem a sacra carga transmitindo,
Antes de tocar seus vários instrumentinhos
Aqui as virgens santas juntam-se em concerto
Sonoras notas, mansas, a se aperfeiçoar,
E com alternado verso o divino hino encerrar.
Vê! jovem poeta após o coração de Deus,
Expôs a arte da Musa que Ele quem deu,
Retorna da conquista, e o ilustre coro aclara,
E os dez mil que morreram canta pela estrada.
Em números tão altos seus atos se encerram,
Proclamam as maravilhas das primeiras guerras,
Que Saul sob vasto aplauso reprovou,
Sentiu que seu trovão a coroa balançou.
O quê? o julgamento pode prolongar?
Metade do reinado acabado já está;
Melhor metade, que serve de guia ao resto,
O império de David confessa sobre o peito.
Uma mulher, lidera Israel com distinção,
Ela lutou, venceu, triunfou co' uma canção,
Devota, majestosa, feita p'ra isto ser,
De longe sua armada exalta seu saber;
Então, pacífica, a incerta palma vela,
E as regras salvam a nação, com as leis dela.
Como caímos? caímos por regras erradas?
Tolice de educação, e só, originada
Barrada de todos os avanços da mente,
Designada e esperado agir tão debilmente;
E se uma só surge pairando sobre o resto,
Com morna fantasia e querer sem cabresto,
Aparecerão contra ela fortes fatores,
A esperança jamais supera os temores,
Cativa, a minha musa, ainda aposentada;
Visa a admiração, e não ser desprezada;
Consciente das vontades, co'asas apertadas,
A alguns poucos amigos, a dor é cantada;
Para os campos da láurea nunca existirás;
Se encobrir de tua treva, e irás te contentar.

Trad: Raphael Soares