quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

A Aplicação do Pensamento na Crítica Textual - A. E. Housman

Após o fim das minhas publicações clássicas, resolvi publicar um texto que é considerado fundamental até os dias de hoje, sobre o que é ser um crítico textual de textos clássicos. Embora a cultura portuguesa, e, por extensão, a brasileira, tenha um estudo filológico e de crítica textual sobre textos lusófonos (embora bem mais desenvolvidos em Portugal), os nossos estudos clássicos são altamente defectivos no âmbito textual. Muitas das nossas melhores versões dos clássicos ignoram as questões textuais, e quando não as ignoram, as fazem sem método. Os poucos classicistas nacionais que já dedicaram algumas páginas sobre tais questões realmente não tem o texto como preocupação. Não acho que um texto como esse vai fazer alguma diferença na mentalidade nacional, mas considerando que eu estou preparando uma "Obra" de Housman, contendo a "Poesia" (maior completude possível), "Prosa" (Seleção) e uma edição de estudo baseada no "Aparato Crítico do Culex", e acho que a seleção de prosa nunca vai encontrar casa publicadora de qualquer modo, apresento essa "primeira versão" da palestra de Housman intitulada "A Aplicação do Pensamento na Crítica Textual" (uma versão pode ser lida gratuitamente aqui. Minha edição é o do Classical Papers e da Prosa Seleta). A minha próxima postagem será uma anotação e explicação e exemplificação de alguns dos pontos tratados pelo autor. Vejo vocês lá.



A APLICAÇÃO DO PENSAMENTO NA CRÍTICA TEXTUAL
A seguinte leitura foi feita para o encontro da Classical Association em Cambridge, no dia 4 de agosto de 1921.

Ao começar a falar sobre a aplicação do pensamento na crítica textual eu não pretendo definir o termo pensamento, porque espero que o sentido que eu dou à palavra emergirá do que eu disser. Mas é necessário definir de cara o que é crítica textual, porque muitas pessoas, e mesmo algumas que professam ensinar isso para outras, não sabem o que é. Se veem livros que se chamam introduções à crítica textual que não contem nada do assunto do início ao fim; que são só sobre paleografia, manuscritos e colações, e não têm maior relação com crítica textual se fossem sobre sobre morfologia e sintaxe. Paleografia é uma das coisas com que o crítico textual precisa se familiarizar, mas gramática é outra, e é igualmente indispensável; e nenhuma quantidade de gramática ou de paleografia ensinará a um homem um fiapo de crítica textual.

Crítica textual é uma ciência, e, desde que abrange recensão e emenda, é também uma arte. É a ciência de descobrir o erro nos textos e a arte de os remover. Essa é a definição, ou seja, o que o nome denota. Mas eu também devo dizer algo sobre o que e o que não conota, que atributos implica e não implica; porque aqui também falsas impressões se propagam.

Primeiro, então, é que não é um mistério sagrado. É puramente uma questão de razão e senso comum. Exercitamos crítica textual sempre que reparamos e corrigimos uma impressão errada. Um homem que possui senso comum e o uso da razão não deve esperar aprender de tratados ou palestras sobre a crítica textual nada que ele não descobriria por conta própria, com tempo livre e diligência. Que palestras e tratados podem fazer por ele é poupar tempo e esforço ao apresentar imediatamente considerações que, de qualquer modo, ocorreriam a ele cedo ou tarde. E, sempre que ele lê sobre crítica textual em livros, ou ouve em leituras, deve testar pela razão e senso comum, e rejeitar tudo o que entra em conflito com qualquer uma delas como mero hocus-pocus.

Segundo, crítica textual não é um ramo da matemática, nem, de fato, uma ciência exata de todo. Ela lida com um assunto que não é rígido e constante, como linhas e números, mas fluido e variável; a saber, as fragilidades e aberrações da mente humana, e de seus insubordinados servos, seus dedos. Por conta disso não é suscetível a regras estritas. Seria muito mais fácil se assim fosse; e eis o porque que pessoas tentam fingir que o é, ou ao menos se comportarem como se assim fosse. Claro que vocês podem ter regras estritas se quiserem, mas então terão regras falsas, e elas os levarão ao erro; porque a simplicidade delas se mostrará então inaplicável aos problemas que não são simples, mas complicados pelo drama da personalidade. Um crítico textual engajado em seu ofício não é como Newton investigando o movimento dos planetas: ele é muito mais como um cão caçando pulgas. Se um cão caçar pulgas baseado em princípios matemáticos, embasando suas pesquisas em estatísticas de área e população, ele nunca irá pegar uma pulga, exceto por acidente. Elas precisam ser tratadas como indivíduos; e cada problema que apresenta-se para o crítico textual deve ser considerado como possivelmente único.

Crítica textual, portanto, não é nem mistério nem matemática: ela não pode ser aprendida seja como catecismo ou como tabela de multiplicação. Esta ciência e arte exige mais do aprendiz que uma mente simplesmente receptiva; e o fato é que ela não pode ser ensinadas: criticus nascitur, non fit. Se um cão quer caçar pulgas com sucesso ele deve ser rápido e sensível. Não faz bem para um rinoceronte caçar pulgas: ele não sabe onde elas estão, e sequer poderia pegá-las se soubesse. As vezes se diz que a crítica textual é a coroa e ápice de todo o saber. Isso não é evidentemente ou necessariamente verdade; mas é verdade que as qualidades que fazem um crítico, sejam elas transcendentes ou não, são raras, e um bom crítico é coisa muito menos comum do que, por exemplo, um bom gramático. Eu tenho em mente um artigo de um estudioso famoso sobre certo escritor latino, e metade do estudo trata da gramática e a outra metade de crítica. A parte gramatical é excelente; mostra ampla leitura e observação precisa, e contribuiu com coisas que eram tanto novas como de valor. Na parte textual o autor não parecia melhor que uma criança malcriada interrompendo a conversa dos adultos. Se era possível cometer um erro na questão tratada ele errava. Se os argumentos de um oponente eram contidos em algum livro que ele não tinha a disposição, não tentava encontrar o livro, mas adivinhar os argumentos; e ele sempre falhava. Se tinha acesso ao livro e leu os argumentos, não os compreendia; e representava seus oponentes como se falassem o oposto do que falaram. Se outro estudioso já havia removido uma corrupção ao alterar o texto ligeiramente, ele propunha removê-la alterando o texto violentamente. Assim, é possível ser um homem inteligente e admirável em outros departamentos, e ainda assim não ter em si sequer a sombra de um crítico.

Mas a a aplicação do pensamento na crítica textual é uma ação que deve estar dentro das possibilidades de qualquer um que pode aplicar o pensamento em qualquer coisa. Não é, como o talento para a crítica textual, um dom da natureza, mas um hábito; e, como outros hábitos, pode ser formado. Desse modo, quando formado, embora não substitua um talento ausente, pode modificar e minimizar os efeitos ruins de tal ausência. Porque um homem não é um crítico nato, e, portanto, ele não precisa agir como um tolo nato; mas quando se engaja em crítica textual, isso acontece frequentemente. Para tudo há razão, e há razões para isso; e agora vou mostra a principal das razões. O fato de que o pensamento não é suficientemente aplicado, e devo demonstrar em breve com exemplos; mas no momento considerarei as causas que disso resultam.

Primeiramente é que não é somente a aptidão natural para o estudo que é rara, mas também é o interesse genuíno nele. Muitas pessoas, e muitos estudiosos entre elas, acham um tanto árido e tedioso. Agora, se um assunto nos aborrece, é nosso direito não querer nos dar ao trabalho de pensar sobre ele; mas se assim fizermos, seria melhor continuar e evitar nos darmos ao trabalho de escrever sobre também. E isso foi o que os estudiosos ingleses frequentemente faziam na metade do século XIX, quando ninguém na Inglaterra queria ouvir falar sobre crítica textual. Isso não é uma condição ideal das coisas, mas teve sua compensação. Quanto menos se fala sobre um assunto que não se entende, menos se fala estupidez sobre o mesmo; e quanto a isso, a opinião pública permitia aos editores ficarem calados se assim escolhessem. Mas a opinião pública agora se deu conta que crítica textual, embora repulsiva, é, não obstante, indispensável, e editores acham que alguma pretensão de lidar com o assunto é obrigatória; e em tais circunstâncias eles não aplicam o pensamento, mas palavras, na crítica textual. Eles obtém regras de rotina sem compreender as realidades das quais essas regras são meros emblemas, e as recitam em ocasiões inapropriadas ao invés de pensar seriamente em cada problema que surge.

Segundo, é que apenas uma minoria dentre aqueles que engajam em tal estudo são sinceramente inclinados em descobrir a verdade. Nós todos sabemos que a descoberta da verdade é raramente o objetivo principal de escritores políticos; e o mundo crê, com ou sem justiça, que nem sempre é o único objetivo de teólogos: mas a quantidade de desonestidade subconsciente que permeia a crítica textual de clássicos greco-latinos é pouco suspeita, exceto por aqueles que tiveram a ocasião de analisar. Pessoas iniciam no campo trazendo com elas predisposições e preferências; elas não desejam olhar todos os fatos de frente, nem extrair a conclusão mais provável, exceto quando é também a conclusão mais agradável. A maioria dos homens é um tanto estúpida, e muitos daqueles que não são estúpidos são, consequentemente, um tanto vãos; e dificilmente é possível escapar da busca pela verdade sem cair vítima ou de sua estupidez ou de sua vaidade. Estupidez então os prenderá em opiniões recebidas, e vão ficar na lama; ou vaidade os porá a caçar novidades, e terão descobertas ilusórias. Somam-se a essas armadilhas e impedimentos as várias formas de partidarismo: sectarismo, que te algema em tua própria escola, professores e associados, e patriotismo que te algema em teu próprio país. Patriotismo teve um grande nome como uma virtude, e em assuntos cívicos, no atual estágio da história do mundo, é possível que ainda faça mais bem que mal; mas na esfera do intelecto é praga não mitigada. Eu não sei qual compõe a pior figura: um estudioso alemão encorajando os seus a acreditar que 'wir Deutsche' nada têm a aprender de estrangeiros, ou um inglês demonstrando a unidade de Homero zombando os 'Teutonic professors', que sua audiência supõe ter olhos arregalados por trás de largos óculos, e bigodes irregulares saturados com muita cerveja, consequentemente sendo incapazes de formar julgamentos literários.

Terceiro, as causas internas de erro e tolice são raramente sujeitas à oposição ou correção de fora. O leitor médio dificilmente sabe algo de crítica textual, e portanto não pode exercer um controle vigilante sobre o escritor: o cabeça-oca é livre para divagar e o impostor para mentir. E, o que é pior, o leitor frequentemente compartilha os preconceitos do escritor, e está mais que satisfeito com as conclusões dele para examinar, sejam suas premissas, seja sua razão. Fiquem em pé num barril nas ruas de Bagdá, e gritem alto, 'Dois mais dois são quatro, e gengibre arde na boca, por isso mesmo Maomé é o profeta de Deus', e sua lógica provavelmente não será criticada; ou, se alguém por acaso criticá-la, poderão facilmente silenciar esse alguém chamando-o de cachorro cristão.

Quarto, as coisas sobre as quais o crítico textual fala não são coisas que apresentam a si própria de modo tão claro e agudo na mente; e é fácil dizer e imaginar que se pensa, o que realmente não se pensa, e mesmo que, caso realmente se pense, que descobre impensável. Por isso são cometidos erros que não se cometeriam se o assunto em questão fosse qualquer objeto corpóreo, tendo qualidades perceptíveis aos sentidos. Os sentidos humanos têm uma história mais longa que o intelecto humano, e têm sido levados mais próximos da perfeição: eles são mais agudos e mais difíceis de enganar. A diferença entre um sincelo e um atiçador em brasa é, em verdade, muito menor que a diferença entre verdade e falsidade, ou sentido e nonsense; ainda é notado de modo muito mais imediato e universal, porque o corpo é mais sensitivo que a mente. Portanto, acho que um bom modo de expor a falsidade de uma afirmação, ou o absurdo de um argumento, em crítica textual é o de transpor em termos sensíveis, e ver como eles se parecem. Se os nomes que usamos são nomes de coisas que podem ser manuseadas ou provadas, diferindo entre si sendo quentes ou frias, doces ou azedas, então nos damos conta do que estamos dizendo e tomamos cuidado com o que falamos. Mas os termos da crítica textual são deploravelmente intelectuais; e provavelmente em nenhuma outra área homens contam tantas mentiras, na vã esperança de que estejam dizendo a verdade, ou falam tanto nonsense na vaga crença de que estejam fazendo sentido.

Isso é particularmente lamentável, e particularmente repreensível, porque não há ciência em que seja mais necessário tomar precauções contra erro que surgem de causas internas. Aqueles que seguem as ciências físicas aproveitam a grande vantagem de poder constantemente trazer suas opiniões ao teste do fato, e verificar ou falsificar suas teorias pelo experimento. Quando um químico misturou enxofre, salitre e carvão, em certas proporções, e deseja confirmar se a mistura é explosiva, precisa apenas acender um fósforo. Quando um médico fez a composição de uma droga nova e deseja descobrir para quais doenças, se para alguma, ela serve, precisa apenas dar para todos os seus pacientes e notar quais morrem e quais se curam. Nossas conclusões em relação à verdade ou falsidade da leitura de um MS. nunca podem ser confirmadas ou corrigidas por um teste igualmente decisivo; pois o único teste igualmente decisivo seria a produção do autógrafo do autor. A mera descoberta de MSS. melhores ou mais velhos que os anteriormente conhecidos não é igualmente decisivo; e mesmo essa verificação inadequada não deve ser esperada com muita frequência ou em larga escala. É, portanto, uma questão de prudência e decência comuns que não devemos negligenciar nenhuma garantia dentro de nosso alcance; que devemos ser perspicazes por conta própria; que devemos escrutinar minuciosamente nossos próprios procedimentos, e analisar rigorosamente nossas fontes de ação. O quanto esses requisitos elementares são satisfeitos aprenderemos agora por exemplos.

Logo de cara, para ver que irrelevância pura, que tolice quase incrível, encontra seu caminho na imprensa, tome este caso. Se tem suposto por muitos séculos que o nome de Plauto era M. Accius Plautus, quando Ritschl, em 1845, apontou que no palimpsesto Ambrosiano, descoberto em Maio de 1815, escrito no quarto ou quinto século, e, portanto, o mais velho dos MSS. de Plauto, o nome aparecia no genitivo como T. Macci Plauti, então ele realmente se chamava Titus Maccius (ou Maccus) Plautus. Um estudioso Italiano, um Vallauri, contestou a tal inovação baseado no fato de que em todas as edições impressas dos séculos XVI-XIX o nome era M. Accius. Ele foi para Milão ver o palimpsesto, e lá, decerto, encontrou T. Macci escrito de modo bem legível. Mas observou que muitas outras páginas do MS. eram quase ilegíveis, e que o livro inteiro estava muito desgastado e esfarrapado; daí disse que não podia suficientemente imaginar ninguém dando qualquer peso para um MS. que estivesse em tais condições. Há alguma outra ciência, algo chamando a si mesmo de ciência, em que tais intelectos invadem e conduzem tais operações em público? Mas talvez vocês pensem que o Sr. Vallauri é um fenômeno único. Não: se vocês se engajarem em crítica textual devem encontrar um segundo Sr. Vallauri a qualquer momento. Os MSS. de Catulo, nenhum deles anterior ao século XIV, apresentam em 64.23 o verso:
heroes saluete, deum genus! o bona mater!
A scholia Veronense de Virgílio, um palimpsesto do século V ou VI, em Aen. v80, 'salue sancte parens', tem a nota: 'Catullus: saluete, deum gens, o bona matrum | progenies, saluete iter[um]'—dando gens no lugar de genus, matrum no lugar de mater, e adicionando meio verso ausente nos MSS. de Catulo; e estudiosos têm, naturalmente, preferido uma autoridade muito mais antiga. Mas se encontra um editor para contestar: 'o peso da scholia Veronense, imperfeita e cheia de lacuna como é, não deve ser posta contra nossos MSS'. Aqui é o Sr. Vallauri novamente: porque o palimpsesto tinha grandes buracos aqui e ali e porque muito dele pereceu, o que resta, embora de escrita tão antiga quanto o século VI, tem menos autoridade que MSS. escritos no XIV. Se, contudo, qualquer um tiver posse desses MSS. do século XIV, destruir páginas deles e criar buracos nas páginas que não destruir, a autoridade dessas partes que sobreviverem irão, presumivelmente, deteriorar, e devem mesmo afundar tanto quanto a do palimpsesto.

Novamente. Existem dois MSS. de um certo autor, que chamaremos A e B. Desses dois se reconhece que A é o mais correto porém o menos sincero, e que B é o mais corrupto porém menos interpolado. Se deseja saber qual MS., se algum, é melhor que o outro, ou se ambos são iguais. Um estudioso tenta determinar tal questão pela coleção e comparação dos exemplos. Mas outro pensa que conhece um caminho mais curto que esse; e que consiste em dizer 'o MS. mais sincero deve ser, para qualquer crítico que entende de seu ofício, o melhor MS.'.

Cito isto como um espécime das coisas que pessoas devem dizer se não pensam no significado daquilo que dizem, e especialmente como um exemplo do perigo de se lidar em generalizações. O melhor meio de tratar tais inanidades pretensiosas é transferi-las da esfera da crítica textual, onde a diferença entre verdade e falsidade, ou entre o sentido e nonsense, é pouco considerada, e raramente sequer percebida, para uma esfera em que homens são obrigados a usar termos concretos e sensíveis, o que os força, mesmo que relutantemente, a pensar.

Eu questiono esse estudioso, tal crítico que sabe seu ofício, e que diz que o MS. mais sincero dos dois é e deve ser o melhor—pergunto que me diga quem pesa mais, um homem alto ou um gordo. Ele não pode responder; ninguém pode; todo mundo vê num instante que a questão é absurda. Alto e gordo são adjetivos que transportam mesmo o crítico textual do mundo da farsa para o da realidade, um mundo habitado por pessoas comparativamente profundas, como açougueiros e doceiras, que dependem de seus cérebros para ter o pão de cada dia. Aqui ele deve entender que para tais questões gerais qualquer resposta deve ser falsa; que julgamento só pode ser pronunciado em espécimes individuais; que tudo depende do grau de altura e do grau de gordura. Pode ser que uma polegada de circunferência adicione mais peso que uma polegada de altura, ou vice versa; mas que altitude é incomparavelmente mais pesada que obesidade, ou obesidade que altitude, e que uma polegada de um afeta a balança mais que uma jarda de outro, nunca foi mantido. O modo de descobrir se este homem alto pesa mais ou menos que aquele homem gordo é os pesando; e o modo de descobrir se este MS. corrupto é melhor ou pior que aquele interpolado é reunindo e comparando as leituras dos mesmos; não saltar prontamente numa generalização falsa e ridícula de que o MS. mais sincero é e deve ser melhor.

Quando se chama um MS. sincero, instantaneamente se engaja favoravelmente a simpatia moral do sem cérebro: simpatia moral é uma linha em que eles são bem fortes. Eu não pretendo excluir moralidade da crítica textual; eu desejo, de fato, que algumas qualidades morais fossem mais comuns em crítica textual do que são; mas não vamos beneficiar nossas emoções morais contra a razão. Pode ser que um escriba que interpola, que cria mudanças deliberadamente, é culpado de perversidade, enquanto um escriba que muda acidentalmente, porque está com sono, não sabe ler ou está bêbado, não tem tal culpa; mas isso é questão que será determinada por uma autoridade competente no Dia do Juízo, e não nos diz respeito. Não nos diz respeito o destino eterno do escriba, mas a utilidade temporal do MS.; e um MS. é útil ou o oposto disso em proporção à quantidade de verdade que revela ou oculta, não importa quais possam ser as causas da revelação ou ocultação. É um erro supor que mudanças deliberadas são sempre ou necessariamente mais destrutivas que mudanças acidentais; e mesmo se fossem, a questão principal, como eu já disse, é de grau. Um MS. em que 1% das palavras foram viciosamente e intencionalmente alteradas e 99% está certo não é um MS. tão ruim quanto um em que 1% está correto e 99% foi alterado virtuosamente e sem intenção; e se vocês perguntarem a um crítico questão vaga como qual dos dois MSS., o 'mais sincero' ou o 'mais correto', é melhor, ele responderá, 'Se eu vou responder tal questão, mostre-me primeiro os dois MSS.; por tudo o que sei até o momento, dos termos da questão, qualquer um pode ser melhor que o outro, ou ambos podem ser iguais'. Mas isso é o que os intrusos incompetentes em crítica nunca podem admitir. Eles precisam ter um MS. melhor, existindo ou não; porque eles nunca podem avançar sem um. Se a Fortuna permitir que dois MSS. sejam iguais, o editor terá de escolher entre suas leituras por considerações de mérito intrínseco, e para fazer isso ele teria de adquirir inteligência, imparcialidade, e desejo de tomar as dores, e todo tipo de coisas que ele não tem ou não deseja; e ele tem certeza que Deus, que tempera o vento para o cordeiro tosquiado, nunca poderia colocar sobre os ombros dele um fardo assim.

Esta é a falta de pensamento na esfera da recensão: segue agora para a esfera da emenda. Aqui há um tipo tolo de conjectura que parece ser mais comum nas Ilhas Britânicas que em qualquer outro lugar, embora também seja praticada no exterior, e nos últimos anos especialmente em Munique. A prática é, se já te convenceste que um texto é corrupto, altere uma letra ou duas e veja o que acontece. Se o que acontecer é algo que a mais branda boa fé pode se equivocar como tendo sentido e gramática, chama isso de emenda; e depois chama tal jogo estúpido de método paleográfico.

O método paleográfico sempre foi o deleite dos novatos e o escárnio dos críticos. Haupt, por exemplo, costumava alertar seus pupilos contra confundir tal coisa com emenda. 'O primeiro requisito de uma boa emenda', disse, 'é que deve iniciar do pensamento; e somente depois que outras considerações, como as de metro, ou possibilidades, como a troca de letras, devem ser consideradas'. E novamente: 'Se o sentido exigir, estou preparado para escrever Constinopolitanus onde os MSS. tem a interjeição monossilábica o'. E novamente: 'Partindo da exigência que se deve começar sempre pelo pensamento, aqui resulta, como é auto-evidente, o aspecto negativo do caso, que não se deve, no início, considerar que mudança de letras deve possivelmente ter criado a corrupção da passagem com que se está lidando'. E adiante, em sua oração sobre Lachmann como crítico: 'Algumas pessoas, se percebem que algo em um texto antigo precisa de correção, imediatamente se lançam na arte da paleografia, investigam as formas das letras e as formas de abreviação, e tentam um ardil depois do outra, como se fosse um jogo, até que acertam algo que eles pensam poder substituir a corrupção; como se a verdade fosse realmente descoberta por lances dessa estirpe, ou como se emenda pudesse surgir de algo que não uma consideração cuidadosa do pensamento'.

Mas mesmo quando paleografia é mantida em seu lugar próprio, como serva, e não se permitir que ganhe ares de senhora, ela pode se sobrecarregar. Existe aqui uma preferência por conjecturas que pedem o auxílio da paleografia, e que assumem, como causa do erro, a mudança acidental de letras ou palavras similares, embora sabe-se que existem outras causas de erro. Uma é apresentada, por exemplo, com a seguinte máxima:
Interpolação é, geralmente falando, uma fonte de alteração comparativamente incomum, e nós devemos, portanto, ser relutantes em assumi-la em um determinado caso.
Todo caso é um determinado caso; então o que a máxima realmente quer dizer é que devemos sempre ser relutantes em assumir interpolação como fonte de alteração. Mas é certo, e admitido pelo escritor quando ele usa a frase 'comparativamente incomum', que interpolação ocorre; então ele está nos dizendo que devemos ser relutantes em assumir interpolação mesmo quando essa suposição é verdadeira. E a razão porque devemos nos comportar de modo ridículo assim é porque interpolação é, geralmente falando, uma fonte de alteração comparativamente incomum.

Agora detectar um non sequitur, a menos que leve a uma conclusão indesejável, está além do poder do leitor comum e está além do poder do escritor médio atribuir ideias para suas próprias palavras quando tais palavras são termos de crítica textual. Eu irei, portanto, substituir os termos, termos para os quais ideias devem ser atribuídas; e eu convido consideração de tal máxima e seu raciocínio:
Tiro é, geralmente falando, uma causa de morte comparativamente incomum, e nós devemos, portanto, ser relutantes em assumi-la em um determinado caso.
Devemos? Devemos ser relutantes em assumir morte por tiro se o determinado caso for morte no campo de batalha? e devemos ser relutantes pela razão alegada, de que tiro é, geralmente falando, uma causa de morte comparativamente incomum? Devemos então assumir a causa de morte mais comum, e declarar uma morte no campo de batalha por tuberculose? O que se pensaria de um advogado que apreciasse esse modo de proceder? Bem, provavelmente se pensaria que ele era um crítico textual retirado de seu lar.

Porque interpolação é comparativamente incomum? Pela mesma razão que tiros são: porque a oportunidade para sua ocorrência é comparativamente incomum. Interpolação é provocada por dificuldades reais ou supostas, e não se voluntaria frequentemente onde é tudo navegação simples; enquanto alteração acidental pode ocorrer em qualquer lugar. Cada letra de cada palavra está exposta a ela, e esta é a única razão porque mudança acidental é mais comum. Em um dado caso em que ambas as suposições são possíveis, a suposição de interpolação é igualmente provável, ou ainda mais provável; porque ação motivada é mais provável que ação sem motivo. A verdade, portanto, é que em tal caso devemos ser relutantes em assumir acidente e devemos então assumir interpolação; e o fato de que tais casos são comparativamente incomuns não é razão para se comportar irracionalmente onde eles ocorrem.

Existe uma província especial da crítica textual, uma grande e importante província, que lida com o estabelecimento das regras de gramática e metro. Tais regras são, em parte, tradicionais, dadas a nós pelos gramáticos antigos; mas em parte são formadas pela nossa própria indução do que achamos nos MSS. de autores Gregos e Latinos; e mesmo as regras tradicionais devem, claro, ser testadas por comparação com os testemunhos dos MSS.. Mas cada regra, seja ela tradicional ou construída por indução, é algumas vezes quebradas pelos MSS.; pode ser por alguns, pode ser por muitos; pode ser raridade, pode ser frequente; e críticos devem dizer então que os MSS. estão errados, e devem corrigi-los de acordo com a regra. Esse estado das coisas é aparentemente, ou mesmo evidentemente, paradoxal. Os MSS. são os materiais sobre os quais baseamos nossas regras, e então, quando nós temos nossas regras, nos voltamos contra o MSS. e dizemos que a regra, baseada neles, os incrimina por erro. Estamos assim trabalhando em círculo, o que é um fato que não se pode negar; mas, como Lachmann diz, a tarefa do crítico é exatamente essa, andar sobre o círculo com habilidade e cautela; e é isso, precisamente, que eleva o trabalho do crítico acima do mero labor mecânico. A dificuldade é aquela que jaz na natureza do caso, e isso é inevitável: e o único modo de o superar é sendo um crítico.

O paradoxo é mais formidável em aparência que em realidade, e há muitas analogias na vida diária. Em um julgamento ou processo, o veredito do júri é principalmente baseado na evidência das testemunhas; mas isso não impede o júri de decidir por si, de que uma ou mais testemunhas são culpadas de perjúrio, ou que a evidência delas deva ser desrespeitada. É bem possível induzir do testemunho geral do MSS. uma regra suficientemente correta para convencer da falsidade de seu testemunho excepcional, ou de probabilidade suficiente para gerar dúvidas. Mas tal testemunho excepcional deve ser considerado em cada caso. Deve ser reconhecido que há duas hipóteses entre as quais temos de decidir: a questão de se as exceções vêm do autor, e assim quebram a regra, ou se vêm do escriba, e devem ser corrigidas: e para decidir isso temos de abrir os olhos para qualquer peculiaridade que devem as caracterizar.

Uma das formas em que a falta de pensamento assumiu na crítica textual é a tendência, agora predominante, especialmente entre alguns estudiosos do continente, de tentar quebrar regras aceitas da gramática ou metro pela mera coleção e enumeração de exceções apresentadas pelos MSS.; Agora isso nunca pode quebrar uma regra: o mero número de exceções não é nada; o que importa é o peso delas, e isso só pode ser determinado por classificação e escrutínio. Se eu tivesse anotado cada exemplo que eu encontrei, eu deveria ter agora uma grande coleção de MSS. latinos em que o substantivo orbis, que nossas gramáticas e dicionários declaram ser masculinos, tem um adjetivo feminino ligado a ele. Mas eu não irei, por causa disso, propor a revisão da regra de sintaxe, pois o estudo mostraria que tais exemplos, embora numerosos, não tem força. Muitos deles são lugares em que o sentido e contexto mostram que orbis, em qualquer caso ou número que seja, é meramente uma corrupção do caso e número correspondente de urbs; e nos casos restantes é natural supor que o escriba tenha sido influenciado e confundido pela grande semelhança de uma palavra pela outra. Ou novamente, leiam Madvig, Adu. Crit., vol. I, liv. i, cap. iv, em que ele filtra as evidências para a opinião de que o aoristo infinitivo Grego pode ser usado após verbos de dizer e pensar no sentido do futuro do infinitivo ou do aoristo infinitivo com ἄν. A lista de exemplos em MSS. é, de fato, bem longa; mas no momento em que se começa a classificá-las e examiná-las então o choque é menos quanto ao número que quanto a restrição de seu escopo. Quase todas elas são coisas como δέξασθαι usada por δέξεσθαι, em que a diferença entre as duas formas é de apenas uma letra; um número menor é de formas como ποιῆσαι por ποιήσειν, em que a diferença, embora maior, é ainda mínima; outros exemplos são ἥκιστα ἀναγκασθῆναι por ἥκιστ' ἂν ἀναγκασθῆναι, onde, novamente, a diferença é quase nenhuma. Agora, se os MSS. estão certos nos casos citados, e os autores Gregos usaram tal construção, como se explica tal limitação extraordinária no uso? Não há nenhuma diferença sintática entre o primeiro e segundo aoristo: porque então eles usam o 1º aoristo tão frequentemente para o futuro e o 2º tão pouco? Porque eles dizem δέξασθαι ao invés de δέξεσθαι dezenas de vezes e λαβεῖν ao invés de λήψεσθαι nenhuma? Apenas perguntar a questão basta para revelar a realidade do caso. O fato bruto de que os aoristos usados assim nos MSS. são aoristos de forma similar ao futuro, enquanto aoristos de forma dissimilar não são usados desse jeito, prova que o fenômeno tem sua causa nos olhos do copista e não na mente do autor, que não é uma variação no uso gramatical, mas um erro de transcrição. O número de exemplos não é nada; tudo depende de seu caráter; um único exemplo de λαβεῖν com sentido de futuro teria muito mais peso que uma centena de δέξασθαι.

Em particular, escribas alterarão formas menos familiares para uma mais familiar, se não virem nada que os impeça. Se o metro permitir, ou se eles não souberem que o metro proíbe, alterarão ἐλεινός para ἐλεεινός, οἰστός para ὀϊστός, nil para nihil, deprendo para deprehendo. Desde que o metro os incrimina de infidelidade em alguns lugares, eles perdem o direito à nossa confiança em qualquer lugar; se escolhemos acreditar neles, somos crédulos, e se construirmos nossas estruturas em nossas crenças não somos críticos. Mesmo se o metro não os incrimina, a razão às vezes o faz. Tomem a afirmação, repetidamente feita em gramáticas e edições, de que os Latinos algumas vezes usavam o mais-que-perfeito no lugar do imperfeito e do perfeito. Eles, de fato, usaram para o imperfeito; eles também usaram para o aoristo passado ou pretérito; mas para o perfeito eles não usaram; e isto se prova pelos próprios exemplos de uso como perfeito que se encontram em MSS.. Todos os exemplos conhecidos são da 3ª pessoa do plural. Por quê? Nós temos de escolher entre as duas hipóteses seguintes:
(a) que os Latinos usavam o mais-que-perfeito com o sentido de perfeito, mas apenas na 3ª pessoa do plural.
(b) que eles não usaram o mais-que-perfeito como perfeito, e que os exemplos são corruptos.
Se alguém adotou a primeira, ele terá de explicar que propriedade sintática, convidando o autor a usar o mais-que-perfeito como perfeito, a 3ª pessoa do plural possuía que as outras duas pessoas do plural e as três do singular não possuíam: e eu gostaria de ver alguém explicando isso.

Se adotamos a segunda, devemos mostrar que qualidade externa, convidando o escriba a escrever o mais-que-perfeito no lugar do perfeito, a 3ª pessoa do plural, e só ela, possui: e isso é bem fácil. A 3ª pessoa do plural é a única pessoa em que o perfeito e o mais-que-perfeito diferem meramente em uma letra. Além do mais, em verso, a terminação perfeita -erunt, sendo comparativamente pouco familiar para os escribas, é alterada por eles para a forma familiar mais próxima com a mesma escanção, às vezes -erint, às vezes -erant: em Heroides de Ovídio há quatro lugares em que o melhor MS. nos dá praebuerunt, steterunt, exciderunt, expulerunt, e os outros MSS. dão -erant ou -erint ou ambos. Do mesmo modo, quando o MSS. bem mais inferior de Propércio apresenta o mais-que-perfeito no lugar do perfeito em quatro lugares, fuerant uma vez, steterant uma vez, exciderant duas vezes, Escalíngero corrige para fuerunt, steterunt, exciderunt. Em seguida, um editor de sua era esclarecida toma a pena e escreve o seguinte: 'É bem errôneo remover os mais-que-perfeitos onde se pode agir sem grande custo da sagacidade conjectural (steterunt por steterant e outros), e não se incomodar com o fenômeno nos outros lugares'. Eu pergunto, como é possível se incomodar com o fenômeno nos outros lugares? Não existem outros lugares. Não há lugar em que os MSS. deem steteram no sentido do perfeito steti, nem steteras no sentido do perfeito stetisti. Sempre que se dão exemplos do mais-que-perfeito que não pode ser removido pela mudança de uma letra—como em pararat em i 8 36 ou fueram em i 12 11—são exemplos em que têm o sentido de imperfeito ou do pretérito, mas nunca do perfeito. E a inferência é clara: os Latinos não usaram o mais-que-perfeito com sentido de perfeito.

Escalíngero sabia disso no século dezesseis: o Sr. Rothstein, no dezenove e vinte, não sabe; ele gosta de um tipo de verborragia que o previne de sabê-lo, e pensa que está na frente de Escalíngero. Se supõe que exista progresso na ciência da crítica textual, e o mais frívolo fingidor aprendeu a falar superciliosamente sobre 'os velhos tempos acientíficos'. Os velhos tempos acientíficos são eternos; eles estão aqui e agora; são perenemente renovados pelo ouvido que recebe formulas, a língua que as propaga, e a mente que é, durante o processo, vazia de reflexão e estufada de autocomplacência. Progresso houve, mas onde? Em intelectos superiores: a turba não compartilha delas. Um homem como Escalíngero, vivendo em nosso tempo, seria um crítico melhor que Escalíngero foi; mas nós não devemos ser críticos melhores que ele pelo simples fato de vivermos em nosso próprio tempo. Crítica textual, como muitas outras ciências, é um afazer aristocrático, não comunicável a todos os homens, nem para a maioria deles. Não ser um crítico textual não é de se reprovar em nenhum homem, a menos que ele finja ser o que não é. Ser um crítico textual exige aptidão para o pensamento e o desejo de pensar; e embora exija outras coisas, tais coisas são suplementos e não podem ser substitutos. Conhecimento é bom, método é bom, mas uma coisa é necessária acima das outras; é ter uma cabeça, não uma abóbora, sobre os ombros, e cérebro, não pudim, na cabeça.

Trad: Raphael Soares

Um comentário:

  1. Grata. Me foi um bálsamo - não estou esquizóide nas minhas conjecturas.

    Sou do Polonês, iniciando jornada em tradução literária depois de dois anos de licença médica na UFPR e completamente anedônica com as dicussões institucionalizadas.


    Obrigada, de coração, Cavalheiro.
    Vou-me ao original.

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