Decimius Magnus Ausonius (310 - 395)
Se há um autor que deve ser individualmente analisado antes de qualquer julgamento de valor sobre a poesia tardia, esse autor é Décimo Magno Ausônio. Entre a morte de Juvenal e a obra de Ausônio há um grande vazio do nosso conhecimento, havendo poucos autores conhecidos e poucas obras sobreviventes (
Pervigilium Veneris é provavelmente a mais importante delas, se é que podemos realmente datar ela como pré-Ausoniana). A reputação de Ausônio contudo tem de lidar com o duro (e factualmente incorreto) julgamento de Gibbon de que "[a] fama poética de Ausônio condena o gosto de sua era", de modo que reabilitar a literatura da época envolve primeiramente reabilitar Ausônio. Contudo, deve ser bem lembrado que a fama do poeta na época se dava principalmente pela sua atuação como professor e gramático, seguido de amplo respeito pela sua atuação política (aparentemente ele não foi um grande político de fato, e como co-governador na Gália o filho dele deve ter feito a maior parte do trabalho), e havia na época poetas mais famosos, o que ele próprio reconhece em sua correspondência. A verdadeira fama poética de Ausônio veio no Renascimento Carolíngeo, com um segundo Boom no Renascimento Humanista, e ninguém jamais condenaria o gosto da época. Dentre os humanistas, Petrarca, Bocácio, Erasmo e todos os outros tinham a poesia ausoniana em alta estima; em Portugal Achiles Estaço possuía um manuscrito de
Cesares (Valicelliana ms.D 54) além de mencionar outros poemas de Ausônio em seus comentários (ex: menção ao poema
Oratio na página 14 de seu comentário sobre Horácio) e Camões imitou um poema que ele devia encontrar dentro das obras de Ausônio (
De Rosis Nascentibus, 15-16; comparar com
Lusíadas, IX 61 2-4... A obra entrou nas edições de Ausônio em 1511 e era a atribuição mais comum no XVI) e possivelmente teve influência de
Bissula, dos Idílios e talvez de
Cupido Cruciatus em alguns de seus poemas (Camões, contudo, parece tomar a descrição das musas de outra fonte clássica); além do mais, Ausônio é o grande modelo literário para os epigramas e epitáfios portugueses do XVI, muito mais que Marcial. Chaucer provavelmente usa Ausônio como autoridade para a função das musas Cleo e Calíope, já que não conhecia grego (comentário mais detalhado
aqui). Na Alemanha e França a fama literária de Ausônio nunca desapareceu completamente.
Mas por conta dos ataques ao valor do poeta, ataques esses que eu pessoalmente cheguei a repetir de modo pouco crítico, acho que devo falar um pouco das principais críticas que a ele são feitas antes mesmo de falar da vida e obra, já que tudo o que é dito contra Ausônio é, de algum modo, repetido ou modificado ao tratar da literatura latina tardia. As quatro principais queixas contra o Ausônio são as seguintes: 1) se removermos a dicção e versificação de Ausônio não sobra nada; 2) o poeta não tinha nada o que dizer (frequentemente em oposição); 3) o estilo dele é decadente e já não mais clássico; 4) os melhores momentos dele são nada mais que ecos da literatura anterior.
1) A primeira crítica é a mais comum, e também é a mais fácil de refutar. É o tipo de crítica que parece dizer alguma coisa, mas no fundo não diz nada. Se tirarmos a dicção e versificação (entendendo seja do ponto de vista mais estrito como mais amplo) de QUALQUER poeta, o que é que sobra? Talvez em alguns casos sobre uma filosofia ou crítica social pertinente ou história relevante, mas a poesia de qualquer poeta desaparece se dela removermos a dicção e versificação. Coleridge, um brilhante poeta e crítico, disse exatamente a mesma coisa de Virgílio, e se isso pode ser aplicado ao maior dos poetas latinos, o pode ser para qualquer um.
2) A segunda crítica é ligeiramente mais útil para compreender o poeta e a posição dele na poesia latina, mas dificilmente é algo que vai determinar o valor por si só. A primeira coisa é que ela não é completamente verdade, e a respeito disso a carta para o São Paulino de Nola, o Protrepticus ad Nepotem, sua pro fissão de fé em Ephemeris (embora pode não ter sido planejado nesse caso) e muitos poemas de Parentalia são poemas que definitivamente mostram inteligência ao falar de algo relevante para a ocasião e para o poeta. Contudo, em muitos dos poemas de Ausônio, incluindo seu famosíssimo Mosella, não há um "tema" de discussão, mas o tema é circunstancial e Ausônio usa seu talento na composição, não no desenvolvimento de uma ideia ou argumento. De fato, comparado com as críticas sociais dos satiristas Pérsio e Juvenal, dos epigramas de Marcial, da composição da ideia nacional de Virgílio ou da filosofia e retórica de Lucrécio e Lucano, Ausônio parece não ter muito sobre o que falar. Mas ter o que falar não é o bastante para ser poeta, como vimos no Disticha Catonis, que nem é mais lido como poesia hoje em dia, e se a ausência de uma "tese" ou "temática relevante" predica a má qualidade de um poeta, muito da melhor poesia moderna tem de ser jogada na lata de lixo também, incluindo grande parte da literatura neoclássica e quase toda a poesia simbolista. Se não me engano, Manuel Bandeira disse de Mallarmé que a maior de suas qualidades era que quase todos os seus poemas eram "de circunstância", e o mesmo pode ser dito seguramente de Ausônio, e é nisso que provavelmente jaz o apelo que o autor pode ter nos nossos dias.
3) A terceira crítica é completamente estúpida e sem sentido, mas exatamente essa estupidez que pode nos ajudar a compreender o nosso erro em lidar tanto com a poesia de Ausônio como com a poesia tardia em geral. Se assumimos que "poesia latina" é a "linguagem clássica de Virgílio", qualquer coisa que não é Virgílio vai ser sem refinamento (como Ênio e Lucrécio) ou decadente (como Estácio ou Ausônio) em comparação (e, paradoxalmente, tudo o que soar virgiliano será imitação barata ou fraude); contudo, se alterarmos o padrão, apenas como experiência, e dizermos, por exemplo, que a "poesia latina" é o "estilo de Estácio", a coisa vai repentinamente mudar de figura: o uso de linhas espondaicas em hexâmetros em palavras não gregas de Juvenal e Horácio (Ars 467), e os hiatos na Eneida (e em Catulo, se Catulo tiver, de fato, hiatos) vão parecer bárbaros, e a sintaxe de quase todos os poetas vai parecer muito pouco variada. Podemos fazer essa experiência em qualquer língua: se "poesia inglesa" é o "estilo de Dryden", Shakespeare e Spencer vão parecer bárbaros, e os românticos completamente afetados; se a "poesia brasileira" é o "estilo de Bilac", Varella e Gonçalves Dias vão parecer preguiçosos (o que não são), Alberto de Oliveira simplório, Augusto dos Anjos obscuro e Jorge de Lima simplesmente errado. Não é só injusto comparar um autor e época no padrão inalcançável de outro, mas não faz o menor sentido e não tem o menor valor crítico. Se toda a literatura representar uma decadência em relação ao padrão inalcançável de outrem, o fazer literário em si não tem sentido. Além do mais, o próprio latim "clássico" de Cícero e Virgílio foi condenado como já decadente por Fronto, em comparação com o "mais puro" latim pré-clássico.
4) A última crítica parece ser feita por pessoas que não conhecem a literatura latina ou não sabem como a própria literatura funciona, mas curiosamente é feita por latinistas e críticos literários competentes. Se esse padrão é levado a sério, Virgílio, Dante, Camões, Shakespeare, Tennyson e Machado estão todos no mesmo barco, já que o melhor de suas obras ecoa as obras de seus antepassados. O que é relevante é como o autor em si desenvolve esses temas e técnicas em sua obra como um todo e em seus poemas isoladamente. O julgamento deve ser específico, nunca geral.
Considerando a ignorância geral a respeito de quem foi o poeta e suas obras, é importante falar um pouco sobre ele e sobre sua obra, o que eu definitivamente não quero fazer nem tenho qualquer competência. Ausônio nasceu na Gália, de família cristã provavelmente falante de grego (ao menos a família da mãe era tradicionalmente da região desde os tempos do império gaulês, a estirpe do pai, contudo, é um mistério... a educação de Ausônio foi em grego, assim como a do filho dele, e o neto, Paulino de Pella, aprendeu latim já quase adulto), e bem jovem se tornou famoso pela sua inteligência como gramático e passou a lecionar em Bordeux por volta de 330-334 (ao menos 30 anos antes de ser convocado a Trier, na metade de 360... a data 334 é a mais provável), o que é uma idade excepcionalmente baixa para lecionar em universidades. Contudo, um pouco antes da carreira de Ausônio decolar, uma grande amargura provavelmente se sucedeu, já que Juliano famosamente baniu todos os cristãos de lecionarem em escolas e universidades por todo o império, e havia um confronto entre as facções cristã e pagã em Bordeaux. No meio de 360 (após 364, mas antes de 368, quando Ausônio acompanhou Graciano nas campanhas germânicas) Ausônio foi convocado para ser tutor do futuro imperador Graciano, e assumiu diversos cargos políticos desde então. Aqui, vale a pena apontar que a grande maioria da obra Ausoniana é posterior a esse período, e de fato não temos nenhuma obra indisputavelmente genuína que deve ter sido escrito antes de 345, embora sem dúvidas ele escreveu muitos poemas desde o início de sua carreira de grammaticus e mesmo antes. Algumas obras disputáveis, contudo, podem ser de período anterior, mas é difícil de acreditar na maioria dessas atribuições, seja porque elas são muito estúpidas mesmo para um poeta jovem, mas que conhecia bem o grego (como Periochae Homeri), ou são simplesmente muito boas para um poeta amador cujo ápice de escrita se deve a um período bem posterior (De Rosis Nascentibus, que como imitação virgiliana deve ser necessariamente de um período anterior).
Quanto ao cristianismo de Ausônio, algo mais precisa ser dito por conta de confusões que ainda permanecem a respeito do mesmo. Em matéria de estudo da literatura, Ausônio certamente não é um "poeta cristão" (como são, por exemplo, Prudêncio, Paulino, Venâncio, etc...), mas apenas no sentido de que a maior parte de sua obra é profana. Com tudo, é um erro crasso seguir Gibbons ao dizer que ele era "declaradamente pagão", o que definitivamente não é verdade, nem seguir Chisholm (para a Enciclopédia Britânica) em dizer que ele foi convertido ao cristianismo tardiamente e não era um grande entusiasta. Como já foi dito, Ausônio foi confessadamente Critão, e, de fato, professou sua fé em mais de uma ocasião dentro de sua poesia (Ephemeris 3 [Oratio], Versus Paschales), possui linguagem marcadamente cristã (gentes com sentido de "gentil", sanctius...reverentia... ambas em textos seculares), diversas vezes apresenta valores marcadamente cristãos, particularmente nos epitáfios. Não temos nenhuma evidência de que Ausônio sequer foi pagão em qualquer momento de sua vida, e muitas evidências do contrário, dentre as quais eu cito apenas duas. 1) a conversão ao cristianismo era matéria de orgulho entre autores antigos, de modo que os convertidos faziam questão de descrever sua conversão, e aqueles que sempre foram cristãos (como Paulino de Nola ou Paulino de Pela) costumam descrever suas experiências em termos de conversão também... Ausônio, que como dizia Symmachus, era incapaz de mentir mesmo em verso, nunca usa esse tipo de linguagem nem figurativamente, assumindo o pensamento e prática cristãs como algo "garantido"; 2) a família de Ausônio certamente apresenta comportamentos e valores que só podem ser explicados em contexto cristão, como a opção da tia de Ausônio (que o criou... ver Parentalia VI, que traduzo aqui) pelo celibato, e a conquista de status por parte da mulher através do celibato é algo que só pode existir dentro do contexto da antiguidade cristã, já que até mesmo a excessão romana (as Virgens Vestais), que assumem uma função mandatória para a sociedade, e por isso mesmo são tidas como "aberração" (Cf. Mary Beard e Peter Brown), ao ponto de que um dos ataques feitos à cristandade era exatamente a presença e aceitação dessas mulheres virgens, e a maior frequência (segundo os opositores) de mulheres celibatárias que casadas entre os cristãos (Cf. Santo Agostinho, Contra Faustum), de modo que numa sociedade e família cristã se esperava que Hilária casasse para garantir o seu status e o do marido e não ficasse "pra titia" cuidando do filho dos outros, o que é razoável e louvável num contexto cristão do IV século.
Em matéria de obra, uma coisa completamente externa mas que chama atenção é o fato de que Ausônio era quase certamente falante nativo de grego (a despeito do comentário do próprio de que os estudos dele de grego [i.e.: homérico] não avançaram de modo desejado, grego era a sua língua familiar, a língua de sua educação e da educação de seus familiares...), e isso é curiosamente persistente entre os melhores autores da antiguidade tardia: Amiano e Claudiano eram gregos, Luxório vivia num lugar de fala grega (e provavelmente o latim era puramente literário), e Paulino de Pela relata em seu poema-biografia o quão difícil foi aprender latim.
De resto, acho que muitas vezes os poemas falam por si só. Uma lista de obras interessantes do poeta talvez não seja muito relevante, visto que pouco se traduziu dele. Devo mencionar que o Gouvêa Júnior traduziu o Cento Nuptialis, que pode ser lido
aqui, e que Daniel da Silva Moreira traduziu alguns epigramas
aqui. O volume mais recente do Augusto de Campos aparentemente contém versões de Ausônio, mas não sei quais textos, mas de qualquer modo não espero muito do Augusto quando o assunto é latim. O Matheus de Souza está traduzindo todo o
Parentalia, todos os domingos, no seu
blog pessoal, e pode ser acessado pelo marcador Ausônio (
aqui). O Matheus também foi bem generoso em contribuir com a tradução de um dos meus epigramas favoritos, que eu vou apresentar aqui na versão dele e na versão do João Ângelo.
Por fim, algo precisa ser dito quanto ao texto e numeração. Numeração de texto e verso, na maioria dos autores clássicos, é na maioria das vezes padronizado mesmo quando não faz o menor sentido (por exemplo, Catulo não tem poemas de número 18-20, de modo que em linhas gerais a numeração posterior não faz o menor sentido, mas permanece para evitar confusões), tudo isso para facilitar referência. Ausônio, contudo, é um daqueles raros poetas de corpus volumoso que não possui um sistema padronizado de numeração, de modo que ela é segue diferentes critérios e virtualmente todas as edições relevantes apresentam numeração diferente de uma para outra (excessão: Evelyn-White segue a mesma numeração de Peiper). O resultado disso é que dizer algo como "Epigrama 23" ou "Epigrama 90" não tem sentido por si só, sem fazer referência a edição em questão (o que, aqui no Brasil, ninguém faz), e pode ser ridiculamente difícil achar o texto em edições diferentes. Para a minha tradução eu vou usar a numeração que aparece na edição mais recente da obra, por Roger Green; a edição possui uma concordância (como todas as edições de Ausônio deveriam ter), mas eu vou apresentar os textos que possuem diferença em numeração do seguinte modo:
Epigr. 8G (Epit. 30S; Epit. 31Pe; Epit. 31Pr)
O que eu quero dizer com isso é que o poema seria o Epigrammata 8 na edição de Green, o Epitaphia 30 na edição de Schenkl (para o MGH, numeração idêntica à de Pastorino para as coleções, mas a organização geral das duas edições é distinta), Epitaphia 31 na edição de Peiper (Teubner... idêntica organização de Evelyn-White para a Loeb), e Epitaphia 31 na edição de Prete (organização parecida, mas não igual, à de Peiper nos epigramas e epitáfios, mas distinto nas cartas). Isso é uma bosta, mas é o melhor que posso fazer para garantir que os poemas sejam referenciados corretamente e qualquer um possa achar em sua própria edição ou versão favorita. Para os poemas que a numeração não varia (ou varia apenas se os prefácios são numerados), eu simplesmente seguirei Green. Para o poema que o Matheus e o Ângelo traduzem, eu vou seguir o texto que eles o Matheus usou (Evelyn-White... O Ângelo lê "ut" de T na primeira linha, porém não tenho ideia de onde ele tirou o número 50), mas vou manter o mesmo modelo de numeração (ou seja, o texto é da Loeb mas a numeração segue como Green, Schenkl, Peiper e Prete...). A ortografia é minha, que é a ortografia que acho mais fácil para transcrever. Em professores, a despeito de eu ler egregiam no texto (o manuscrito, aceito por Green e Pastorino) eu deixo a qualificação ambígua, aceitando ao menos tacitamente a opção egregia de Heinsius (como lido por Schenkl, Peiper) ou egregio de Holford-Strevens (que Green propõe mas não aceita no texto) como possibilidades implícitas. Não que importe com uma tradução dessa qualidade.
Parentalia VI [Trad: Raphael Soares]
Aemilia Hilaria matertera [uirgo deuota]
Tuque gradu generis matertera, sed uice matris
affectu nati commemoranda pio,
Aemilia, in cunis Hilari cognomen adepta
quod laeta et pueri comis ad effigiem;
reddebas uerum nom dissimulanter ephebum,
more uirum medicis artibus experiens.
Feminei sexus odium tibi semper, et inde
creuit deuotae uirginitatis amor,
quae tibi septenos nouies est culta per annos;
quique aeui finis, ipse pudicitiae.
Haec, quia uti mater monitis et amore fouebas,
supremis reddo filius exsequiis.
E tu, que é tia em grau, porém és vice-mãe
Em afeto o filho deve celebrar,
Emília, cujo nome Hilaro lhe é apenso
Porque no berço qual menino é alegre;
Sem dissimulação vera feição de um jovem,
Qual homem experiente em artes médicas.
Teu sexo feminino odiaste sempre, e assim
Veio o amor da devota virgindade,
Que mantiveste por nove sétimas de anos;
E o fim da vida é o fim da castidade.
Aqui, quem como mãe mantém amor, lições,
O filho a retornar ritual extremo.
Professores XVIII [Trad: Raphael Soares]
Marcello Marcelli filio grammatico Narbonensi
Nec te Marcello genitum, Marcelle, silebo,
aspera quem genetrix urbe, domo pepulit,
sed fortuna potens cito reddidit omnia et auxit;
amissam primum Narbo dedit patriam.
Nobilis hic hospes Clarentius indole motus
egregiam natam coniugio attribuir;
mox schola et auditor multus praetextaque pubes
grammatici nomen diuitiasque dedit.
Sed numquam iugem cursum fortuna secundat,
praesertim praui nancta uirum ingenii.
Verum oneranda mihi non sunt, memoranda recepi
fata; sat est dictum cuncta perisse simul,
non tamen et nomen, quo te non fraudo, receptum
inter grammaticos praetenuis meriti.
Nem esqueço a ti, Marcelo, herdeiro de Marcelo,
Áspera mãe forçou-te a outras plagas,
Tudo e mais a fortuna então te restaurou;
Assim, primeiro em Narbo, achaste pátria.
Aqui Clarêncio, nobre, a ti concedeu sua
Filha p'ra desposar, egrégia índole;
A seguir tuas lições atraíram mil jovens
Pela fama e carreira do gramático.
Mas a fortuna, embora longa, não prossegue,
Principalmente em depravada índole.
Não é o meu dever dar peso, mas lembrar
Do fado; basta lembrar: perdeu tudo
Só não renome, não te roubo, recebido
Qual gramático de mísero mérito.
Epigr. 20G (Epigr. 18S; Epigr. 40Pe; Epigr. 40Pr)
[AD VXOREM]
Vxor, uiuamus quod uiximus, et teneamus
nomina, quae primo sumpsimus in thalamo:
nec ferat ulla dies, ut commutemur in aeuo;
quin tibi sim iuuenis tuque puella mihi.
Nestore sim quamuis prouectior aemulaque annis
uincas Cumanam tu quoque Deiphoben;
nos ignoremus, quid sit matura senectus.
Scire aeui meritum, non numerare decet.
Trad: Matheus de Souza
Vivamos, minha esposa, tudo o que vivemos,
guardando ainda o nome de casados.
Que eu seja o teu rapaz e tu a minha garota
sem que um dia a velhice nos ocorra.
Mais velho que Nestor eu seja e muito embora
emules a Sibila pela idade,
desconheçamos o que seja a senectude,
sabendo os dons do tempo sem contá-lo.
Trad: João Ângelo de Oliva Neto
Mulher, vivamos qual vivemos e tenhamos
os nomes que à primeira noite usamos.
Não haja um dia só, bem que mudemos sempre,
Que não me digas "jovem" e eu, "menina".
Mais velho embora que Nestor, rival que venças
em anos a Deífobe de Cumas,
a velhice madura ignoremos: o mérito
convém saber do tempo, não a soma.
Um epigama Jurídico comentado:
Epigr. 99
[Trad: Raphael Soares]
Iuris consulto, cui uiuit adultera coniux,
Papia lex placuit, Iulia displicuit.
Quaeritis, unde haec sit distantia? semiuir ipse
Scantiniam metuens non metuit Titiam.
Advogado que tem esposa adúltera,
lei Pápia aceita, a Júlia lei deplora.
Qual é a diferença? o imoral
Scantínia teme mas não teme a Titia.
Essa é uma pérola do humor jurídico da antiguidade, e um poema que sempre vale a pena apresentar para classes de latim e cultura romana. O conceito é bem simples, do advogado que é imoral e hipócrita: 4 leis são mencionadas, e o advogado se beneficia (lhe agrada) pessoalmente de duas delas, enquanto duas outras leis ele viola. O contexto das leis em si precisa ser mencionado. O advogado se beneficia pessoalmente da lei Pápia (Lex Papia Poppaea), que promove (basicamente força) o casamento, e se beneficia do status de casado por causa dela; contudo, lhe desagrada a lei Júlia, já que a sua esposa é adúltera e ele sabe disso (vive com esposa adúltera)... Para quem não sabe, ser corno manso em Roma era crime grave (Digesta 4, 4, 37). Porque ele aceita uma lei mas rejeita outra, sendo ele um advogado? Porque além de advogado ele é semiuir (a palavra é bem complicada em muitas situações... aqui, contudo, ela tem um sentido claro, que é o de pederasta... de fato, é o sentido usado por todos os apologistas cristãos do período, mas o sentido não é exatamente parte do vocabulário cristão... Cf. explicação de Servio Danielis para a palavra em Aen. IV 215: ab ipsis enim ferunt coepisse stupra puerorum), especificamente um pederasta. Por ser pederasta ele teme a lei Scantínia (ou Escantinia), que criminalizava o stuprum contra ingenui (o sexo com menores homens), porém ele se aproveita da lei Titia, que permitia que magistrados designassem tutores para jovens (o que, presumivelmente, o advogado em questão usa de algum modo para satisfazer seus desejos).
Por fim, recomendo que alguém tome ciência do poeta e traduza para nós Bissula, Mosela e Cupido Cruciatus... Eu não farei, decerto...
Sem fotos, bustos ou pinturas do autor.
Claudius Claudianus (c. 370 - 404 prob.)
Se é quase obrigatório começar a falar da antiguidade tardia com Ausônio, o passo seguinte é necessariamente falar de Claudiano. Claudiano, diferentemente de Ausônio, foi um poeta profissional, circulando a corte do imperador Honório após a morte de Teodósio. Enquanto Ausônio foi tomado como poeta nacional da França e nunca esquecido lá (Hugo, por exemplo, sabia versos dele de cor, e também escreveu Le Rhin, em prosa, mas de caráter similar ao Mosela) a reputação dele sofreu muita oscilação nos outros lugares; Claudiano, sendo lembrado como "o último pagão de Roma", "o último grande poeta latino" tendeu a ser visto em geral com simpatia, embora eu duvido muito que ele tenha tido quantidade significativa de leitores em qualquer época. Hoje em dia a crítica literária favorece o estudo de Claudiano, tendo em vista que a obra dele é em sua quase totalidade política, o que resultou em um grande número de dissertações de doutorado sobre obras específica.
Pouco sabemos da vida de Claudiano. O poeta era grego de Alexandria, numa época em que a intelectualidade da parte oriental do império era raramente bilíngue. Ele provavelmente escreveu sempre em grego, e de fato 7 epigramas dele da fase inicial sobrevivem em grego na Anthologia Palatina (I 19, 20; V 86; IX 139, 140, 753, 754), e um fragmento (Gigantomachia) sobrevive em tradição manuscrita isolada. Contudo, em 394 ele parte para a parte ocidental do império, e no ano seguinte escreve o poema mais antigo que chegou até nós: "Panegyricus fictus Olybrio et Probino consulibus", um elogio aos seus jovens patronos. Após o período ele escreveu diversos Panegíricos para seu mais poderosos patronos, Stilicho e Honorius, dois poemas para as núpcias de Honorius, invectivas contra inimigos dos mesmos, narrativa político-histórica e ensaiou a composição de dois épicos (De raptu Proserpinae e Gigantomachia); de resto, alguns poemas menores e de circunstância sobreviveram. A morte dele se presume pela ausência de qualquer texto ou alusão aos feitos de patronos após 404.
Se Claudiano era realmente pagão ou cristão é algo de debate e provavelmente não pode ser definida para além da incerteza, ao menos com base nas informações que temos. Dois poemas cristãos são atribuídos a Claudiano: Laus Christi e Miracula Christi, mas o primeiro também é atribuído a Merobaudes em melhores bases, e o segundo foi atribuído tardiamente sem bases manuscritas. Mesmo considerando que os poemas fossem de Claudiano, não há nada nos mesmos que não possa ser feito com base em conhecimento superficial das histórias e crenças cristãs, e naquele período não as conhecer era praticamente impossível: Miracula Christi, em particular me parece simplesmente muito apressado (cada dístico um milagre, e de fato o presente dos reis magos no segundo distico não é um... há um possível mal entendimento também no 7º). O que ainda se pode dizer é que autores antigos como Agostinho e Orósio afirmavam que Claudiano sempre fora pagão e nunca se converteu; Scourfield escreve que "como um poeta em uma corte fortemente cristã, é improvável que ele tenha sido pagão", contudo outros estudiosos têm notado que a época em que ele se mudou para o ocidente é extremamente suspeita. Em 393 Teodósio eliminou toda a legalidade dos ritos pagãos, e em 394 massiva perseguição e destruição ocorreu na parte oriental do império (é incerto se o imperador promoveu tais perseguições pessoalmente, mas é certo que ele permitiu que elas ocorressem), então é bastante razoável que o poeta esteja seguindo a tendência da intelectualidade pagã do período e escapando à perseguição.
Como eu já mencionei aqui e na postagem sobre Amiano, é algo bem notável que os melhores autores latinos do período eram falantes de grego. Com tudo, o que é fascinante em Claudiano é o quão "latina" é a sua dicção. Amiano deve ter usado muito latim no período do exército, e Ausônio teve educação bilíngue, ao mesmo tempo que ambos os autores escrevem com muita excentricidade de dicção, sintaxe ou semântica baseado no grego; Ausônio, em paticular, aprecia a escrita macarrônica. Claudiano, contudo, é possivelmente o mais "latino" de todos os autores latinos, ou, ao menos de todos os autores da antiguidade tardia latina. Pelo fato de que ele era grego, muita gente, inclusive eu, tem procurado marcas de grecismo e excentricidades na dicção do poeta, e as poucas que alguns tem identificado parecem ser todas falsas. Aqui eu vou dar os exemplos que eu conheço:
Panegyricus Dictus Olybrio et Probino Consulibus:
122. "in hastam"
Segundo Dewar in hastam tem sentido modal, e por isso seria grecismo. Contudo, Hall e Charlet pensam que in hastam tenha sentido final, portanto é latim natural. De qualquer modo, mesmo esse grecismo é poético desde o período augustano.
De Consulato Stilich. Lib I:
29. Sed pacem foedat vitiis; hic publica felix,
Burman, Heinsius, Dietrich consideram que publica é grecismo (hic ad quod publica). Hic publica com sentido de hic in publica já aparece em Plínio contudo, e publica aqui é por antimetria lugares/ambientes públicos, não exatament "em público".
De Consulato Stilich. Lib II:
389. Depulsa terris iterum regnare dedisti.
Lemaire diz que dedisti é grecismo, e tem o sentido de fecisti. Eu não sei nem mesmo se pode-se dizer que do com sentido de facio é grecismo, mas isso é irrelevante aqui de qualquer modo. Em linguagem militar, do pode significar conceder (permissão, segurança, prêmio), devolver ou restaurar, todos sentidos mais adequados que criar ou produzir.
Panegyricus dictus Honorio sextum consuli
361. dissimulata diu tristes in amore repulsas
Eu não entendo o bastante de grego para saber exatamente porque dissimulata tristes repulsas seria graecismo eleganti (Gesner). Contudo, Birt deve estar certo em interpretar dissimulata com o sentido de neglecta (usado por Ausônio e por Claudiano em outra passagem), e construir repulsas como acusativo de queror.
Por fim, traduzo duas passagens curtas, com base no texto estabelecido por John Barrie Hall. Claudiano é um pouco mais difícil de traduzir, porque a melhor poesia dele é significamente grande em tamanho, por isso eu vou traduzir o trecho mais curto da Fescennina e um poema da Carmina minora, que me parece interessante pelo contexto de divulgação de poemas na época. Até onde sei, há apenas uma tradução de Claudiano para o português europeu, do De Raptu Proserpinae, e em prosa.
Fescennina Dicta Honorio Augusto et Mariae [Trad: Raphael Soares]
III (13)
Solitas galea fulgere comas,
Stilicho, molli necte corona.
Cessent litui saeuumque procul
Martem felix taeda releget.
Tractus ab aula rursus in aulam
redeat sanguis. Patris officiis
iunge potenti pignora dextra.
Gener Augusti pridem fueras,
nunc rursus eris socer Augusti.
quae iam rabies liuoris erit?
uel quis dabitur color inuidiae?
Stilicho socer est, pater est Stilicho.
Sobre o cabelo brilha o elmo em luz,
Stilicho, e brando pões o louro à testa.
Cessem trompetes, e que o sevo Marte
Seja afastado pela tocha fértil.
Que se una a real com a real
Estirpe. O ofício que é do pai
Junge os amantes com potente destra.
Genro de Augusto outrora o foste tu,
E em retorno agora és sogro Augusto.
Que espaço há p'ra raivas da inveja?
Ou o que é que justifica a cor da inveja?
Stilicho é sogro, e pai é Stilicho.
Carmina Minora [Trad: Raphael Soares]
19 - Epistula ad Gennadium ex Proconsule
Italiae commune decus, Rubiconis amoeni
incola, Romani fama secunda fori,
Graiorum popules et nostro cognite Nilo
(utraque gens fasces horret amatque tuos),
carmina ieiunas poscis solantia fauces?
testor amicitiam nulla fuisse domi.
Nam mihi mox nidum pinnis confisa relinquunt
et lare contempto non reditura uolant.
Da itália gente orgulho, e em Rubicão ameno
habita, e em fama lácia o segundo,
Famoso à gente grega e alcança até o Nilo
(Que amaram e odiaram teu ofício),
Me pedes versos para alentar tua garganta?
Tenho nenhum, te digo como amigo.
Quando confiam nas suas asas os meus versos
Fogem de case e nunca mais se voltam.
[Avianus] (~400)
Nada sabemos sobre quem escreveu as fábulas geralmente conhecidas pelo nome autoral "Avianus". As 42 fábulas em dístico elegíaco foram certamente escritas por uma só pessoa, para um Teodósio (presumivelmente Macrobius Ambrosius Theodosius, o que coloca a construção da coleção por volta do ano 400). Se ele é o poeta que Teodósio menciona posteriormente, seu nome era Avienus. Os manuscritos não concordam em nome (Avianus, Avianius, Avienus... o nome Flávio é invenção posterior baseado em má identificação), e aparentemente o autor foi confundido com o outro poeta, Avienius (conhecido no período medieval como Avieno), o que abre a possibilidade para o fato de que o poeta tinha qualquer nome.
As fábulas de "Aviano" gozaram popularidade imensa no período medieval, o resultado é que a tradição textual do poeta é muito contaminada e interpolada (há enormes séries de finais distintos entre os manuscritos) e muitos manuscritos apresentam scholia, comentários e glosas. Robert Gregory Risse editou um desses comentários, e eu recomendo que todo mundo leia porque ele é hilário... Aquele tipo de comentário e leitura que é tão ruim, mas tão ruim, que chega a ser até bom e divertido... Eu iria apresentar uma tradução minha para a Fábula 2, contudo ainda há muitos outros escritores de maior interesse e mérito que precisam ser comentados, e se eu dedicar tanto tempo assim para cada um a série nunca acaba. Também preciso revisar minhas escolhas textuais: no verso 10 eu li excidit com Baehrens, que é a expressão correta e adequada, mas depois de ver como alguns classicistas (que são poetas muito melhores que "Aviano") lidam com substituições por sinônimos e cometem algumas falhas e absurdos de expressão, referência ou fato bem piores que occidit, me parece hoje que a pior forma é legítima, se tratando de uma versão indireta por um versificador que demonstra pouca riqueza de vocabulário.
"Aviano" recebeu uma tradução integral, disponível livremente na internet: a versão de Jorge Manuel Tribuzi Correia de Melo, que preparou uma versão e notas para a sua dissertação (aqui).
Bônus: Publilius Optantianus Porfirius (336+)
Por fim, apresento alguns poemas de Optantianus (que antecede Ausônio) e que não requerem tradução. Optantianus era um político romano, e poeta diletante, que após ser banido em algum momento da carreira escreveu elogios e bajulações para Constantino e foi permitido retomar postos políticos. O que é particularmente notável desse poeta é como a má qualidade e diletantismo podia se passar por poesia que presta, numa época de baixo nível cultural... Como muitas pessoas sabem, a história tende a se repetir, porque aparentemente o ser humano não aprende de verdade com ela. O "texto" é retirado da Patrologia Latina.
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