quarta-feira, 29 de julho de 2020

Antilogia i-tradutória da poesia latina tardia [pt. 1] - Poetas Anônimos

Há um grande problema no estudo da literatura latina, um problema que é extremamente óbvio para qualquer um que pensa a seu respeito, mas por uma razão ou outra não pensamos. O latim foi sistematicamente usado como principal forma de expressão literária no ocidente desde os tempos clássicos até o renascimento, o que dá em torno de 1500 anos de literatura, mas quando falamos de "literatura latina" (particularmente poesia) quase sempre nos restringimos a um período de duzentos anos indo de Lucrécio a Marcial. O renascimento, a despeito de seu monumental esforço em resgatar e comentar os clássicos, é um dos principais culpados dessa negligência, por conta do desprezo geral que o período teve em relação à era medieval. Com isso surgiu uma ideia geral de decadência do "Latim de Ouro", para um inferior "Latim de Prata" e um deplorável e decadente "Latim Medieval", relegando o latim tardio a um irrelevante meio.

Antes de qualquer coisa, essa postagem não pretende criar uma revisão violenta de valor, alegando que o latim tardio (e seus autores) é, de algum modo, superior ao clássico, e não por concordar ou discordar com a periodização e o julgamento de valor recebido, mas unicamente porque o latim clássico tem Virgílio, o que faz qualquer disputa um caso perdido. Mas do mesmo modo que é necessário que nós estudemos não-Virgílios, pelas mais diversas razões, não é mais justificável, em nosso tempo, ignorar mais de mil anos de história literária baseado nos preconceitos de nossos avós intelectuais. Precisamos conhecer a literatura latina tardia, e precisamos conhecer a literatura latina medieval, seja para reforçar ou rejeitar os juízos recebidos. Não é possível avaliar propriamente algo que não conhecemos, e no presente momento conhecemos muito pouco.

Essa antilogia foi influenciada por dois livros que não poderiam ser mais díspares em seleção e método. O primeiro é o Medeias Latinas de Márcio Meirelles Gouvêa Júnior, que na minha opinião é o melhor livro de poesia latina publicado nos últimos anos (a despeito do latim horrendo e porcamente revisado da edição), que ao construir uma seleção baseada em tema deu espaço particular para a poesia da antiguidade tardia, o que me chamou atenção e me comoveu profundamente pela qualidade do que eu li, seja pelo talento do tradutor, seja pelo interessante valor agregado dos próprios textos escolhidos. O segundo foi o Poesia Tradução e Versão de Abgar Renault, que me ensinou duas coisas importantes para me encorajar a escrever e traduzir esses poetas, a de que mesmo uma tradução ruim é melhor do que tradução nenhuma, e que mesmo em poesia é possível que uma má tradução, que apaga muito da mágica positiva do poema, ainda traga um pouco do que é bom do poeta. Já informo que todas as traduções aqui que forem minhas provavelmente serão ruins, feitas um tanto às pressas e organizadas quase aleatoriamente por um amador sem amor ou talento, mas eu espero que a exposição ao menos sirva para criar um diálogo ou chamar atenção para o período. Se meu violento abuso e presunção na terra das musas ofenderem tanto o leitor, espero o encorajar a salvar a dignidade da língua latina oferecendo uma versão melhor, ou melhores poemas que os casualmente selecionados por mim.

Comecemos a jornada...


Manuscrito musical do Disticha, Sec. XIII
- Disticha Catonis (Sec. III-IV)
Se o objetivo for unicamente fazer as pessoas se interessarem pela poesia tardia, Disticha Catonis é um péssimo ponto de partida. A obra, atribuída tardiamente a um Dionísio Catão (porém o nome é um equívoco, por associação à Catão, o velho), não agrada mais nosso paladar moderno. A obra não é o que conhecemos hoje como poesia, sendo basicamente moral versificada, e embora as viradas dos séculos parecem reviver a preferência à leitura moralizante das obras, e embora nosso próprio século parece estar engajado em ler obras exclusivamente pelo "valor moral", ou pela "agenda" que o autor e obra trazem, "cancelando" tudo aquilo que for condenado, o nosso século não está muito apto a aceitar os valores morais de dos velhos latinos. A despeito de ser muito difícil hoje em dia de ver a Disticha como grande poesia ou mesmo grande moral, é muito importante lembrar que esse foi provavelmente o texto latino mais influente na educação medieval e mesmo na educação moderna. Todos leram os Dísticos, todos parafrasearam os Dísticos, e muitos autores genuinamente os consideravam grande poesia ou grande moral. De resto, vão umas versões:

Livro I. 21 (Trad: Ary de Mesquita)
Infantem nudum cum te natura crearit,
paupertatis onus patienter ferre memento.
Fazendo o homem nascer sem roupa, a natureza
Ensina a suportar o fardo da pobreza.
Livro II. 11 (Trad: Ary de Mesquita)
Aduersum notum noli contendere uerbis:
lis uerbis minimis interdum maxima crescit.

Evita discutir com pessoas amigas:
De tolas discussões, às vezes, surgem brigas.
Livro III. 3 (Trad: Ary de Mesquita)
Productus testis, saluo tamen ante pudore,
quantumcumque potes, celato crimen amici.

Obrigado a depor contra um amigo, evita
Mostrar-lhe a falta enquanto a honra to permita.
Livro III. 4 (Trad: Raphael Soares)
Sermones blandos blaesosque cauere memento:
simplicitas ueri forma est, laus ficta loquentis.

Cuidado com lisonja indiscriminada:
Louvores faz o falso, franqueza a verdade.
Livro IV. 5 (Trad: Raphael Soares)
Cum fueris locuples, corpus curare memento:
aeger diues habet nummos, se non habet ipsum.
Quando te enriquecer da saúde vá cuidar:
Ou adoecer, tendo vinténs para gastar.
Livro IV. 19 [?] (Trad: Ary de Mesquita)
Disce aliquid; nam cum subito Fortuna recessit,
ars remanet uitamque homnis non deserit umquam.
Deve ter profissão a própria gente rica:
Os bens se podem ir, mas a profissão fica.
Bônus Round:
Livro I. 17
Ne cures, si quis tacito sermone loquatur:
conscius ipse sibi de se putat omnia dici.
Chaucer (Trad: José Francisco Botelho)
Aproximou-se. Disse assim Catão:
Quem tem culpa a pesar no coração
Suspeita sempre da conversa alheia.
A diferença do original para a "tradução" Chauceriana se dá pela leitura medieval de "conscius ipse sibi" (consciente de si, que conhece bem a si) como pessoa culpada, com senso de culpa. Mas isso é assunto para outra ocasião.


Cópia do livro disponível para a leitura aqui.

- Epigrammata Bobiensia (~400 A.D.)
Essa coleção da antiguidade tem uma boa e longa história, do tipo WTF... Essa coleção de poemas foi produzida ainda na antiguidade, no início do século V (Naucellius, autor de alguns poemas da coleção, ainda estava vivo, e possivelmente Claudiano também), e o livro sobreviveu à idade média até que uma cópia dele (possivelmente do século VII), a única, foi encontrada em Bobbio em 1493. Até então, os editores só se interessaram por um poema atribuído a Sulpícia, e por alguma razão aleatória e inexplicável Avantius resolveu atribuir vários dos poemas Anônimos à pena de Ausônio, e depois disso o manuscrito se perdeu. Como o livro havia se perdido e não sabíamos exatamente quais os critérios para a atribuição dos poemas, esses poemas permaneceram sendo editados como se fossem de Ausônio até que no meio do século XX Augusto Campana encontrou uma cópia (aparentemente com algumas omissões) da coleção em meio aos manuscritos do Vaticano (Vat. Lat. 2836), e então a obra inteira pode ser lida, avaliada e as atribuições de autoria confirmadas ou questionadas.

A Epigrammata Bobiensia (que não é uma coleção de epigramas, e ironicamente sobrevive em um manuscrito do Vaticano, não de Bobbio) é uma miscelânia antiga, construída por poetas competentes, embora muito da coleção é tradução de poemas da Antologia Grega, alguns dos poemas (como o 6, o 36-37 ou 70) só podem ser latinos; além do mais, uma das traduções é muito interessante também, como veremos, por "traduzir" a primeira linha da Ilíada como "arma virumque". Aqui vão alguns poemas da Bobiensia, que certamente não são de Ausônio. Apenas mencionando que Bob. 53, em tradução do Gouveia, é referido por ele como Ausônio Ep. 129, baseado na edição bipontina (o poema certamente não é de Ausônio, mas circulou com os textos do poeta até a redescoberta do codex), porém estou apresentando uma versão mais correta, já que a edição Medeias Latinas apresenta non digna est no verso 7, que na verdade é um erro de digitação para nan digna da edição Bipontina, que o tradutor usa, enquanto eu imprimo o indigna (-a sensum 'valde digna' attribuentes, ThLL) do manuscrito, que não me convence muito, mas pode justificar melhor a tradução.

Bob. 7 [Trad: Raphael Soares]
[In marmoreum signum]
E marmore hanc me carneam effinxit Scopas,
Baccham euhiantem. tange: digito cesserim.
de mármore formastes a mim tal carne, Escopas,
Bacante boquiaberta!. Toque e eu recuarei.
Bob. 47 [Trad: Raphael Soares] 
De matrimonio grammatici infausto
"Arma uirumque" docens atque "Arma uirumque" peritus
non duxi uxorem, sed magis arma domum.
namque dies totos totasque ex ordine noctes
litibus oppugnat meque meumque larem
atque ut perpetuis dotata <a> matre duellis
arma in me tollit nec datur ulla quies.
iamque repugnanti dedam me, ut denique uictus
iurger ob hoc solum, iurgia quod fugiam.
"As armas e os barões" ensino, "As armas..." douto,
As armas, não mulher, à casa trouxe.
Pois todo santo dia e toda santa noite
assalta a mim e ao lar com seus litígios
Porque a mãe por dote deu duelos eternos
armada contra mim sem dar descanso.
Desisto de lutar, enfim, só assim que venço,
Só essa queixa: a de fugir das queixas.
Bob. 53 [Trad: Gouveia Jr.]
In Medeae imaginem
Medeam uellet cum pingere Timomachi mens
uoluentem in natos crudum animo facinus,
immanem exhausit rerum in diuersa laborem,
fingeret adfectum matris ut ambiguum.
ira subest lachrymis, miseratio non caret ira:
alternum uideas ut sit in alterutro.
cunctantem satis est: indigna* est sanguine mater
natorum, tua non dextera, Timomache. 
Quando Timômaco u'a Medeia quis pintar,
com crueldade intentando o crime contra os filhos,
realizou grande esforço em coisas diferentes,
para representar o ambíguo amor materno.
Há compaixão na ira, há ira sob as lágrimas -
o que vires em um, assim seja no outro.
Está muito exitante: a tua mão não merece
ó Timômaco, u'a mãe com o sangue dos filhos.

Bônus Round:
Bob. 70
In Romulum
M mutaris et R sedes si, Basse, notarum
nominis, altae Urbis moenia qui statuit,
alternasque ueli
s apicum †a se† scribere uoces,
Morulus hac fuerit, qui nunc est Romulus, arte.
 Assim na edição de Speyer, do link postado. Esse poema eu apresento como uma provocação e convite à leitura, tradução, e imitação. O poema é de cara interessante por gênero e estrutura: o gênero é um tipo de poema conhecido como lusus in nomine (lit.: brincadeira partindo do nome), havendo mais outros exemplos na própria Epigrammata, como Bob. 41 e Bob. 61, ou integrado em poemas maiores, como em Carmen Pascale de Sedulius (Convenit Heliae! meritoque et nomine fulgens | Hac ope dignus erat: nam si sermonis Achivi | Una per accentum mutetur littera, sol est. I. 185-7), em que Elias (lat. Heliae) se torna o próprio sol (gr. Helios) com a mudança de uma letra em pronúncia Argiva. A forma é um caso curioso de dois estilos métricos inseridos no poema, sendo um dístico elegíaco seguido de um dístico em hexâmetros. Por conta do conteudo do poema, podemos estar certos de que não é tradução ou imitação latina, mas uma composição nova dentro do gênero e que necessariamente foi composta em latim (mesmo que o autor seja grego ou falante primário do grego, como Claudiano ou Ausônio, a composição é original latina) por alguém que dominava a língua grega, já que o jogo de palavras envolve a alternância das letras M e R do nome Romulus, para construir a palavra grega Morulus (μωρός; Morulus é latinização, como se fosse um cognomen). Speyer sugere a autoria de Anicius Probinus, mas não possui qualquer base sólida, e embora esse é, de todos os epigramas da coleção, o mais "Ausoniano" deles, quase certamente não é de Ausônio também, ou ao menos não há qualquer base para essa atribuição, contudo, sendo de um poeta romano que não veio da Gália esse seria o único exemplo de poema polimétrico conhecido que não foi escrito por autor gálico. Vamos tentar falar dos versos.

1-2 "M mutaris et R sedes si...notarum | nominis": Basicamente qual o início do jogo do poema. Aqui eu vou chamar atenção primeiro para a prosódia, e o fato de que embora "m" e "r" sejam apenas consonantes e com a pronúncia com vogais curtas, o fato de serem consideradas "semivogais" (em terminologia latina) faz com que a pronúncia sega "em" e "er" (ao invés de "me" ou "re", ou os portugueses "eme" e "erre") tornando as vogais longas por posição. A construção "mutaris sedes" é algo relativamente simples de entender no discurso. De resto, "notarum" tem o sentido de "das letras".

2 "altae Urbis moenia": Construção poética tradicional, dando ênfase épica ou solene. Ex: "moenia mundi" + adj (Lucretius, repetidas vezes); "altae moenia Romae" e "incluta...moenia Dardanidum" e outras (Virgílio); "Romulus aeternae nondum formauerat urbis | moenia" (Tibullus); "Karthaginis alta moenia?" (Valerius Maximus).

3 "alternasque uelis apicum †a se† scribere uoces". O manuscrito apresenta "velit", que é facilmente corrigido para "velis". "uox" significa novamente as letras, a pronúncia, escrita. O texto da tradição permanece extremamente complicado, por conta de que "a si" não chega a trazer exatamente um sentido, e, de fato, as vozes escreverem "a si" parece muito mais indicar a forma "correta", ou sendo tautológico ao se referir à forma alternada. Zicàri propôs "apicum has excribere", que é paleologicamente provável e em teoria tem um bom sentido, contudo, embora a alegação do comentarista de que "excribere" como composto pode significar algo como "inverter" (referindo-se a has, "tais letras em específico") é algo que faz sentido e há paralelos, mas todos esses paralelos sempre fazem referências ao fato de copiar diretamente um texto, produzir uma cópia. A solução mais simples me parece ser a de Courtney "apicum rescribere", que tem o sentido atestado que parece correto. Deixo, claro, para o leitor decidir. Minha intuição, provavelmente falsa é que ao invés de †a se† devêssemos ler "nam" (porque, porque está scribere), e "scribere" com o sentido de "registrar", oficializar, fazemos com que Morulus, o idiota, se torne Romulus, o rei e imperador de Roma; contudo devo estar lendo Anne Carson demais.



Anthologia Latina, Riese. Cópia aqui.
- Anthologia Latina
A única coleção conhecida da antiguidade que chegou ao nosso tempo foi a Epigrammata Bobiensia, e, portanto, não existe uma "Antologia Latina" no mesmo sentido que existe uma "Antologia Grega". Contudo, várias antologias, florilégios e coleções foram feitas durante o período medieval, com diversas finalidades (quase nunca puramente artísticas), e por conta da parca sobrevivência dos textos clássicos, quando os críticos modernos começaram a organizar os textos latinos (como Veterum Poetarum Catalecta do Scaliger, até a Anthologia de Burmann) o objetivo não foi o de preservar o que de melhor existia em matéria de poesia latina para a posteridade, mas coligir tudo o que fosse possível de encontrar para preservar, mesmo que não fosse de grande valor literário. A consequência disso é óbvia, e faz com que, em termos gerais, a Anthologia Latina não seja nem de longe comparável em valor que a contraparte grega, e de certo modo não podemos nem mesmo chamá-la de antologia. Alexander Riese publicou a primeira recensão e organização crítica dos textos, e até o presente momento é ainda a única (não vamos falar da tentativa de Shackleton Bailey... Podemos fingir que ela simplesmente nunca aconteceu, para não manchar a imagem do grande crítico). Porque não podemos falar de uma Anthologia Latina, eu decidi então falar de um único poema, Anônimo, da mesma.

O poema que vou traduzir é o 130 (Riese, III. 171 de Burman), que está presente num dos mais antigos códices que temos (Codex Salmasianus, ou Codex Parisinus Lat. 10318), é um poema que antecede o 5º século (se crê que a coleção de poemas do Codex seja cópia de uma coleção composta na África por volta de 534), devendo ter sido escrito entre os tempos de Hosídio Gueta e Luxorius, sendo portanto do período tratado. O poema é bem interessante quando você desconsidera a misoginia, típica dos latinos, e trata de uma prostituta de nome Caballina, que não apenas tem nome equino como comporta-se como tal. Do ponto de vista linguístico, é um dos primeiros casos de bestialização violenta da linguagem, pois "iunctas" do último verso só pode se referir a um animal (e foi a mesma razão para Bailey tentar remover a palavra, substituindo por "pugnas"), e, de fato, se omitirmos o título do poema é possível lê-lo sem se dar conta de que o mesmo trata-se de uma mulher, já que fremebat intransitivo é geralmente usado para animais (e, de fato, Virgílio usa para cavalos, frementem equum nas Geórgicas). Por conta disso, o poema tem, de acordo com o meu conhecimento, sido tratado como que "demasiadamente obscuro", o que, a meu ver, não é preciso, já que a obscuridade é mais aparente que real. Segue o texto e versão. Só mencionando que "Parium nitens colorem" (que traduzi como "Alva cor de Paros") se refere ao mármore de Paros, famoso pela brancura e semi-transparência.

Anth. Lat. 130 R (Trad: Raphael Soares)
De Caballina meretrice
Caballina furens amanda nulli
Excussis modo calcibus fremebat;
Quae quamuis facie micet rubenti
Et uibret Parium nitens colorem,
Hirsutis tamen est petenda mullis,
Qui possint pariles citare iunctas.
A puta Cavalina
Cavalina loucaça e não amada,
como ela relinchava e dava coices;
Mesmo a vibrar rubor da sua face,
E vibrando sua alva cor de Paros,
Porém é duro o ataque de uma mula
Que pode se jungir nesse andamento.

Um comentário:

  1. Seu blog é incrível. Seus comentários sobre as traduções de Eneida são muito boas. Se pudesse terminar aquela série iria ser muito útil para os estudantes da cultura latina.

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