Assim começa um artigo de autoria de Gisele Dionísio da Silva. Apesar de não discordar totalmente da pesquisarora, afinal, a grande mania dos sonetos só iniciou-se na segunda metade do século XX tendo atualmente os Sonetos possuem mais de 50 tradutores (alguns traduziram um único soneto, outros todos), todos de 1950 até 2011. Péricles Eugênio e Samuel Mac-Dowell Filho foram os primeiros grande tradutores dos sonetos, sendo que PESR traduziu 4 sonetos em 1950, seguido pela Pequena Sequencia Shakespeariana de Mac-Dowell em 1952, para em fim publicar seus 33 sonetos em 1953.
Entretanto, anteriormente os sonetos já haviam dado as caras no Brasil num livrinho chamado Opalas (2ª ed de 1905) do poeta Fontoura Xavier, um dos precussores do parnasianismo. Fontoura Xavier traduziu 4 sonetos de Shakespeare: XIV (Eu não sei ler a sorte em astrolábios,), XVII (Assim queiram em época futura), XXI (Não sou daqueles que, exaltando aquela) e LIX (Se tudo quanto existe antes tinha existido); os três primeiros em decassílabos e o último em dodecassílabo com censura no meio.
Ao que me consta, Fontoura Xavier foi o primeiro tradutor dos Sonetos (e considerando um soneto como obra completa, o primeiro tradutor de uma obra de Shakespeare, já que precede o Hamleto de Tristão Cunha), e também o único até a publicação dos primeiros sonetos de Péricles Eugênio (XV, LXXI, LII e CXXX).
O procedimento tradutório de Fontoura Xavier é interessante. A tradução faz parte da produção poética do tradutor, e Xavier procura "adaptar" o pensamento e fala do traduzido para a sua poética particular. Ao traduzir Sully Prudhomme por exemplo, transforma "Errante, elle demande aux enfants d'alentour" em "Sei de um louco embalde, incessante, à porfia" mudando o sexo da figura sem motivo explicável (não é plausível o engano de elle, afinal, pelo amor de Deus, quem não sabe que elle é ela e não ele). Traduzindo Shakespeare, Fontoura Xavier não é muito diferente:
SONETO XIV
Eu não sei ler a sorte em astrolábios,
E nem predigo pela astrologia
A fome e a peste como uns tantos sábios,
Mas entretanto sei astronomia.
Um destino qualquer eu não leria;
Se houvesse por ventura o estranho fado
A ler de um rei ou príncipe de estado,
Bofé! que ao certo ler não saberia.
É que em duas estrelas eu resumo
(Teus olhos) toda a minha astronomia;
E tanto leio neles, que presumo
Que foste filha de um cinzel antigo,
E o dia em que morreres, nesse dia
Morre na terra a plástica contigo.
trad: Fontoura Xavier
Algumas escolhas são marcantes. O maior problema dessa tradução é o mesmo problema que consta em toda a poética de Fontoura Xavier: o verso pouco natural. Na primeira estrofe temos um "astrolábios" que rima com "sábios", "sábios" esse que está em tom notadamente irônico (inexistente no poema em inglês), que é mais próprio da poesia "socialista" (o termo não é meu) de Fontoura Xavier.
Os dois argumentos principais do soneto estão nos versos de nº 12 e 14. No verso nº 12 o poeta tenta convercer o interlocutor a procriar, para que a beleza permaneça, e de certo modo, sabe que não acontecerá, o interlocutor não terá filhos e no verso nº 14 o poeta afirma que quando o interlocutor morrer morre toda a beleza e verdade junto com ele. Fontoura Xavier retira de seu poema o argumento da procriação, substituindo por um "Que foste filha de um cinzel antigo", que é completamente nonsense em relação ao próprio poema traduzido. Não parece ser o caso de um equívoco, já que a presença do "filha" indica que fontoura captou o sentido (já que não existe a palavra "filho" ou "filha" no texto em inglês) mas o modificou (com eficiência questionável).
Outras traduções do mesmo veso em ordem cronológica:
Samuel Mac-Dowell Filho [1952]: "Em conúbbio nativo com o honesto." (???)
Jerónimo de Aquino [1956]: "Se o tesouro que ela é em ti, multiplicares."
Jorge Wanderley [1991]: "Se deres fruto de ti mesmo, um dia."
Marcos Beltrão [1998]: "Se de te guardares só pra ti te convertesses:"
Renata Cordeiro [2003]: "Se a reserva que tens, passares ao herdeiro;"
Milton Lins [2005]: "Se por ti mesmo os bens os converteres?"
Thereza Christina [2009]: "Se de teu próprio ser verteres o teu alento;"
Lázaro Ramos e Jorge Furtado [2010]: "Se tu concederes dar-lhes lastro"
É um verso, de fato, difícil, pois quase todos se confundiram ou alteraram tanto sua forma que seu sentido principal se perdeu. Desconsiderando as escolhas absurdas de Samuel Mac-Dowell Filho e Milton Lins (que são comuns), as traduções em verso livre cometeram erro de interpretação (Marcos Beltrão e Thereza Christina). As demais traduções estão bem de acorddo. Interessante também é a escolha de Ivo Barroso: "Que a verdade e beleza darão frutos/se em ti deixas de tanto reservar-te", essa escolha não pode ser considerada infiel, mas também não é tão direta assim: só sei que se trata da procriação porque li o texto em inglês.
A escolha de Fontoura Xavier para o 12º verso sem dúvida não teve preocupação nenhuma com o texto de origem, e foi opcionalmente feita para retirar a ideia de procriação do poema. No 14º verso, a opção do tradutor é de criar um texto com uma linguagem menos subjetiva, transformando a "beleza" em "plástica", mudança que não me agrada nem um pouco, além da inversão incomum para manter a rima com o 12º verso.
Vejamos outras traduções:
Samuel Mac-Dowell Filho: "Que em teu fim terá fim Kalokagatos." (???)
Jerónimo de Aquino: "Perdida a tua beleza, estarás tu extinto."
Ivo Barroso: "Teu fim põe termo ao verdadeiro e ao belo"
Jorge Wanderley: "Belo e verdade findam com teu fim"
Marcos Beltrão: "Que o teu fim será o término e a catacumba da verdade e da beleza"
Renata Cordeiro: "Com verdade e beleza, encontrarás a morte."
Milton Lins: "A verdade é teu fim como beleza" (???)
Thereza Christina: "Em ti toda a verdade e beleza findam."
Lázaro Ramos e Jorge Furtado: "Tua morte, o belo e o justo finda"
Verso também de difícil compreenção, que fez Renata Cordeiro, Thereza Christina e Jerónimo de Aquino confundirem-se pela inversão. Novamente, as escolhas de Samuel Mac-Dowell e Milton Lins dispensam comentários. Fontoura Xavier acertou o sentido do verso e do poema, mas o plasticizou. Falando do poema como todo, essa tradução é um pouco "forçada", apesar de alguns bons momentos. A modificação voluntária do sentido do poema não é exatamente um defeito, mas uma diferente concepção de tradução (como parte da obra criativa do tradutor). O mesmo faz nos outros sonetos, onde remove ou acrescenta ideias a partir dos ideais do tradutor/autor. No soneto nº XVII por exemplo Fontoura Xavier remove todo o conteúdo do dístico final (com o argumento da procriação e imortalização através do verso) deslocando o conteúdo dos outros versos, criando assim um poema completamente novo:
O mesmo ocorre nos outros dois sonetos traduzidos, assim como em praticamente todas as traduções do escritor.
SONETO XVII
Assim queiram em época futura
Crer nos versos que faço às minhas penas,
E aonde como num sepúlcro apenas
Guardo parte de tua formosura.
Pois se eu dissesse de tu'alma pura
E de teu corpo como os tenho em mente
Diriam: "Qual, este poeta mente,
Nunca existiu tão bela escultura!"
Os meus sonetos amarelecidos
Dormiriam nas eras esquecidas
Até que a crítica os tomasse amiga,
Não para a glória tua ou do poeta
Mas como norma rara ou obsoleta
Dos exageros de uma escola antiga.
trad: Fontoura Xavier
A obra Opalas de Fontoura Xavier encontra-se em Domínio Público, mas apesar disso, não é fácil de ser adquirida.
E quase ia me esquecendo, eis aqui os dois poemas transcritos em língua inglesa:
SONNET XIV - Shakespeare
Not from the stars do I my judgement pluck;
And yet methinks I have Astronomy,
But not to tell of good or evil luck,
Of plagues, of dearths, or seasons' quality;
Nor can I fortune to brief minutes tell,
Pointing to each his thunder, rain and wind,
Or say with princes if it shall go well
By oft predict that I in heaven find:
But from thine eyes my knowledge I derive,
And, constant stars, in them I read such art
As truth and beauty shall together thrive,
If from thyself, to store thou wouldst convert;
Or else of thee this I prognosticate:
Thy end is truth's and beauty's doom and date.
SONNET XVII - Shakespeare
Who will believe my verse in time to come,
If it were filled with your most high deserts?
Though yet heaven knows it is but as a tomb
Which hides your life, and shows not half your parts.
If I could write the beauty of your eyes,
And in fresh numbers number all your graces,
The age to come would say 'This poet lies;
Such heavenly touches ne'er touched earthly faces.'
So should my papers, yellowed with their age,
Be scorned, like old men of less truth than tongue,
And your true rights be termed a poet's rage
And stretched metre of an antique song:
But were some child of yours alive that time,
You should live twice, in it, and in my rhyme.
Caro professor!
ResponderExcluirTenho alguns livros do William S., publicados pela L&PM, que são o Hamlet, feita pelo Millôr Fernandes, que me parece muito boa; a Tempestade e o Ricardo III, feitas pela Beatriz Viégas-Faria, que também me parecem boas - para mim que sou um diletante ainda, na língua inglesa do teatro de Shakespeare. Mas essas traduções, apesar de boas, me parecem fugir um pouco ao inglês castiço do Will, isto é, são um pouco modernas, talvez...
Me disseram haver traduções um pouco mais fiéis ao inglês de Shakespeare, feitas pelo poeta Onestaldo de Pennafort. Eles traduziu as referidas? As traduções dele são mesmo as melhores? Quais outras o sr. poderia me indicar?
Veja que estou começando, e sei que ter uma biblioteca de traduções é como ter uma biblioteca de xerox borradas, mas meu inglês ainda é muito fraqueiro para correr aos originais. Por isso ficaria agradecido pelo tempo e pelos conselhos literários.
Gracias!
As traduções de Millôr Fernandes e Viégas-Faria são, de fato, exemplares. Ambos os tradutores optaram por modernizar a linguagem. Millôr se sai melhor nas comédias.
ResponderExcluirOnestaldo traduziu Romeu e Julieta, que sem dúvida nenhuma é a melhor tradução em português (ao menos na minha opinião). Onestaldo também traduziu, se não me engano, Otelo, mas não posso comentar pois não a vi.
Hamlet tem também uma grande tradução (praticamente clássica) de Péricles Eugênio, mas não sei se vais gostar do sabor meio parnasiano do texto.
Ricardo III é um caso um pouco mais complicado... você tem as seguintes opções viáveis: F.C.Almeida Cunha Medeiros (recomendada devido as notas de rodapé de Oscar Mendes, ideal para uma leitura pari passu ao original) e Beatriz Viégas-Faria (mais equilibrada e moderna, porém menos poética). Há também a tradução da Anna Amélia Carneiro de Mendonça, mas não a li.
Falando da tempestade, sei das traduções de Viégas-Faria, dos tradutores integrais de Shakespeare (Nunes, Medeiros e Heliodora) e de Geraldo Carneiro, mas li apenas a mesma que você leu, portanto não poso indicar nenhuma outra.
Não acho que ter uma biblioteca de traduções é o mesmo que ter uma biblioteca de Xerox. Algumas traduções merecem ser lidas mesmo conhecendo-se o original.