terça-feira, 6 de janeiro de 2015

As traduções da Eneida de Virgílio, pt.I - João Franco Barrento

As traduções de Eneida em português são várias. Em verso, ao que eu saiba, são 5: a primeira, de João Franco Barrento, em oitava rima camoniana; a de Lima Leitão, em decassílabos heróicos;a terceira feita por um estudioso que não lembro o nome e concluída pelo poeta português José Maria da Costa e Silva, que lastimavelmente não pude conferir; a de Odorico Mendes, a primeira feita por um brasileiro, também em decassílabos, com a curiosidade de possuir menos versos que o original virgiliano; e por fim a de Carlos Alberto Nunes, curiosamente em hexâmetros dactílicos extremamente regulares. Há ainda várias traduções em prosa, e uma clássica adaptação em prosa por João de Barros, e uma tradução por João Felix Pereira que não sei se é em prosa ou verso. Três dos tradutores da Eneida (da Costa e Silva, Odorico Mendes e Carlos Alberto Nunes) também traduziram a Ilíada e a Odisséia, mas como não lá muito conhecimento de grego não tenho competência para falar muito delas, e deixo tal tarefa para uma alma gentil e que não tenha uma visão muito fechada de tradução e Homero.

Em primeiro lugar, as cinco traduções que foram feitas da Eneida provam o quanto os falantes de língua portuguesa não se importam com o passado tradutório em sua língua. Em língua inglesa as traduções clássicas de Chapman, Golding, Dryden, Pope e muitos outros (lembrando a Eneida de Gavin Douglas, tão elogiada por Pound) são sempre lidas, comentadas ou ao menos estudadas, enquanto por aqui, a exceção da já clássica versão de Odorico Mendes, não se edita nem se estuda qualquer outra tradução do livro, e a tradução de João Franco Barrento, intitulada Eneida Portuguesa, é uma prova de que essa ignorância pode nos trazer muitas perdas.

Meu contato com a Eneida se deu a partir da leitura da tradução de Odorico Mendes, por uma antiga edição da Jackson, sem as notas do tradutor, que provavelmente enriqueceriam muita a minha primeira leitura. Só recentemente tive contato com a versão de João Franco Barrento, que parece ser a primeira integral em verso realizada em português. A primeira parte, contendo os seis primeiros cantos, foi impressa em 1664, e não sei quando foi impressa a segunda (minha edição é de 1763, e não creio que seja a editio princeps), que contém os últimos seis cantos. A principal curiosidade dessa versão é a espécie de influência inversa dos Lusíadas de Camões nela. Como todos sabem, a Eneida de Virgílio é um dos modelos mais basilares para a composição dos Lusíadas, e na versão do João Franco Barrento temos uma inversão disso: é Os Lusíadas que, aqui, tem uma influência decisiva para a composição dessa versão da Eneida.

Logo nos primeiros versos da Eneida de João Barrento percebemos o quão similar ao texto de Camões, independente das similaridades naturais entre as duas ("Arma virumque cano, [...] Italiam fato profugus Lavinisque venit/litora" lembra muito "As armas e os barões assinalados,/ que da ocidental praia Lusitana"). Compare o início desta Eneida

As armas, e o varão canto piedoso,
Que primeiro de Troia desterrado
A Italia trouxe o Fado poderoso,
Às praias de Lavino veio armado:
Aquelle, que no golfo tempestuoso,
Nas terras foi muito contrastado,
Da violência dos Deuses, e excessiva
[?]brada ira de Juno vingativa.

Com o início dos Lusíadas:

As armas, e os barões assinalados,
Que da Ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca de antes navegados,
Passaram, ainda além da Taprobana,
Em perigos, e guerras esforçados,
Mais do que prometia a força humana.
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram.

 A primeira semelhança (um pouco óbvia até) é formal: os dois são decassílabos em oitava rima, desde Camões sendo modelar ao gênero épico. Os paralelismos sintáticos são bem visíveis, ainda mais quando se lê um verso junto do outro e quando se compara com o texto latino de Virgílio ou se compara com uma das outras traduções:

Arma virumque cano, Troiae qui primus ab oris
Italiam fato profugus Laviniaque venit
litora - multum ille et terris iactatus et alto
vi superum, saevae memorem Iunonis ob iram, (Texto da Loeb Classical Library, sem muito aparato crítico :( )
Também rapidamente damos conta do preço que se paga por uma tradução da Eneida em oitava rima: a tradução é bem maior que o texto original de Virgílio, o que implica no fato de que bastante coisa foi acrescentada em todo o poema, algumas bastante felizes, outras nem tanto. Há entre os críticos e teóricos de tradução moderna uma preferência (ditada pelos cânones poéticos próprios da modernidade mais que da lógica crítica) pela concisão e menor quantidade de informação: é preferível que uma tradução omita vários versos ou elementos importantes, mas acrescentar palavras ao autor original, hoje, é uma grave heresia. Mudar a forma dos versos brancos latinos para a oitava rima camoniana poderiam ser uma blasfêmia hoje, mas não eram na época, e não deixou de compor uma das mais curiosas e interessantes obras traduzidas, ao lado de algumas do classissismo português.




Há na Eneida uma passagem que é, particularmente, a minha favorita: os versos 807-828 do último canto. Em latim:

sic dea submisso contra Saturnia voltu:
"Ista quidem quia nota mihi tua magne, voluntas,
Iuppiter, et turnum et terras invita reliqui:
nec tu me aeria solam nunc sede videres
digna indigna pati, sed flammis cincta sub ipsam
starem aciem traheremque inimica in proelia Teucros.
Iuturnam misero (faetor) succurrere fratri
suasi et pro vita maiora audere probavi,
non ut tela tamen, non ut contenderet arcum;
adiuro Stygii caput implacabile fontis,
una superstitio superis quae reddita divis.
et nunc cedo equidem pugnasque exosa relinquo.
illud te, nulla fati quod lege tenetur,
pro Latio obtestor, pro maiestate tuorum:
cum iam conubiis pacem felicibus, esto,
component, cum iam leges et foedera iungent,
ne vetus indigenas nomem nutare Latinos
neu Troas fiere iubeas Teucrosque vocari
aut vocem mutare viros aute vertere vestem,
sit Latinum, sint Albani per saecula reges,
sit Romana potens Itala virtute propago;
occidit, occideritque sinas cum nomine Troia." (Texto da Loeb Classical Library, outra vez)
 Nesse momento, Juno (a melhor das personagens da Ilíada, mais que Eneias, Dido ou qualquer outro) dá sua última palavra em relação aos conflitos na Itália, mesmo sendo um discurso de "derrota" (sua ira se aplaca e desiste de ajudar seus protegidos, sob ordem de Jove e apelo de Vênus) continua sendo impressionante e imponente, digno de Juno. Essa passagem será usada para comparar as diversas versões da Eneida, e tenho de afirmar que ela não ajuda muito a versão de João Franco Barrento: essa versão tem o grande mérito de dar dignidade e poesia para as passagens mais fracas da Eneida, mas costuma ser meio "rasa" nos momentos mais altos como este. Comento melhor de acordo com as novas traduções que forem aparecendo aqui.

[…] e a divina
Juno, assim respondendo, o rosto inclina!
191
Ó Júpiter, depois que conhecida
Foi de mim tua grande, e alta vontade,
De todo as terras, bem que constrangida,
E a Turno deixei logo na verdade:
Nem tu me ora verias na subida
Região aérea em tanta soledade,
Cousas dignas, e indignas padecendo,
Mas põe entre as esquadras discorrendo.
192
De coruscantes flamas rodeada
A inimigas batalhas moveria
A Teucra gente, para que assolada
Pudesse toda ser por esta via.
Confesso que de mim aconselhada,
Que socorresse o irmão, que perecia,
Juturna foi, e lhe hei também louvado
De inda mais por sua vida haver tentado.
193
Mas não a aconselhei que o dardo duro,
Nem a frecha ligeira, ou arco usasse:
Pela implacável fonte assim to juro,
Donde o rio do negro Estige nasce.
Juramento mui valido, e seguro,
Que não sei que algum Deus violar ousasse:
E te obedeço agora, renuncio
As contendas, de que hei já grão fastio.
194
Um só favor agora, que sujeito
Não é à lei do Fado, te demando
Em prol de Itália, e prol do gão respeito,
Que aos teus é devido: este é que, quando
Tenha, assim seja, a paz de todo efeito
Por algum casamento venerando,
E os pactos já, e as leis se estipularem,
E em perpétua concórdia se ajuntarem,
195
Não mandes que os Latinos aqui nados
O antigo nome deixem, que é grã míngua,
Por Troianos, e Teucros ser chamados,
Nem permitas mudarem traje, ou língua.
Seja Lácio, e seus Reis por dilatados
Séculos, por mostrar que em cada míngua,
Albanos, e mais célebre o Romano
Linhagem co'o valor Italiano.
196
Acabou Tróia, acabe, se és fervido,
Com seu nome a memória juntamente.
[…]
 No próximo episódio vou comentar a tradução de Lima Leitão, neste mesmo canal, no horário que achar melhor.

3 comentários: