sexta-feira, 16 de março de 2018

Os 10 primeiros versos de Astronomica, de Manilius

Imagem: Wikipedia

Um dia sem internet pode ser muito improdutivo ou bem produtivo, dependendo das circunstâncias... Depois de ficar desconectado do mundo um dia, fui ler um pouco, mas o livro que estava lendo era tão ruim que foi parar no meu "shitty bin", um grupo seleto de livros tão ruins, mas tão ruins que nem sequer fui capaz de concluir, por mais que tentasse... Aí fui fazer o que a maioria das pessoas normais entediadas não fazem, peguei minha gramática e dicionário de Latim, 3 edições de Manílio (Poetae Latini Minori, Housman e Goold) e comecei a tentar traduzir as primeiras linhas, afinal, por que não?

Por que Manílio? A pergunta aqui talvez seja difícil de responder... Talvez a morte recente do astrofísico Stephen Hawkins, comentada por todos, de modo que poderia fazer uma homenagem às raízes da busca pela verdade no espaço, na pretenciosa astrologia grega... Talvez pelo meu apreço ao poeta Housman (que nunca postei aqui, mas tenho 3 poemas dele publicados no meu livro, que vocês podem comprar aqui), editor de Manílio, dois poetas que tem muito a nos dizer sobre os "poetas menores"... Talvez porque o Matheus do blog Formas Fixas (que acompanho sempre) tem postado muito sobre os clássicos e não quero ficar atrás... Talvez simplesmente porque minha rotina é um caos e traduzo e leio as coisas quase que aleatoriamente... Por alguma razão, todas essas explicações parecem ser a nossa tentativa humana fútil de tentar dar razão para as coisas que não tem o menor sentido, e nisso talvez a obra de Manílio seja instrutiva, se eu fosse capaz de lê-la...

E aí vem a explicação fácil, que é porque (só) os 6 primeiros versos: a única coisa que eu tenho em comum com Shakespeare é que somos dotados de "small Latin and less Greek"... Desde que conheci o trabalho de Housman como Scholar, tive interesse na obra de Manílio, para compreender o que havia dentro do poeta latino que fez com que o inglês dedicasse mais de três décadas de árduo e ingrato trabalho de edição, ao invés de trabalhar num poeta mais congenial como Tíbulo ou Propércio... Mas alas, não tenho latim o bastante para ler e estudar Manílio dessa forma... Então permaneço sem saber completamente o que levou Housman e o igualmente brilhante (e arrogante) Bentley a gastar tanto esforço nessa obra, considerando que nenhum dos dois considerava-a de relevante qualidade literária...

A Astronomica é um poema didático sobre a astrologia clássica. Nele o poeta pretende apresentar o conhecimento dos astros e como ele influencia no destino humano, trata dos signos e explica a natureza do universo, que na época se pensava ser composto de basicamente duas esferas: o mundo (terra) e o firmamento, como na imagem... ou era algo assim, tirando a parte dos anjinhos e tudo... Os primeiros seis versos são típicos da poesia latina, o poeta apresenta o seu tema. O que é interessante desse tipo de apresentação é que os latinos pagãos (assim como os modernos) fazem questão de parecerem os "diferentões", afirmando ao apresentar em verso um tema que nunca foi exposto em verso antes (em oposição aos poetas cristãos de língua latina, que tem postura diferente em relação a arte e a criatividade, mas isso é para outro texto, provavelmente de outra pessoa). Manílo também tinha a absoluta convicção de que com a sua arte ele se imortalizaria, pois sobreviveria ao tempo com sua obra fantástica e inovadora... A grande ironia daqui é que malmente o poeta sobreviveu a idade média, mal foi conhecido e citado pelos sucessores, não é lido por quase ninguém mesmo hoje, parte da obra foi completamente perdida e os poucos que estudaram sua obra (em geral, classicistas frustrados, com 3 ou 4 exceções) chegaram a conclusão de que ele não é muito bom...

Há alguma lição a se tirar disso...

em algum lugar...

Por fim, para quem puder e ler inglês, recomendo a introdução de Housman à obra, que dá um bom apanhado do poeta, da tradição textual e recepção da obra... Embora seja um texto de estudioso para estudiosos (cheio de marcas, frases latinas, relações de manuscritos e variantes e tudo mais), a introdução é surpreendentemente hilária... Housman era foda... Não consigo deixar de, perversamente, imaginar o poeta inglês vivo nessa nossa era do Twitter, no momento de redescoberta dos clássicos, e sempre imagino ele trocando xingamentos com o professor Guilherme a respeito da edição de Propércio (esta aqui) no Facebook... We miss you, Mr. Housman...

Ah, a introdução do Housman vocês podem ler aqui, junto do texto completo do livro um, cujos primeiros versos são idênticos ao que eu uso aqui (Goold), que apenas usa o "v" no lugar de "u" para facilitar a leitura.

Fonte: Wikipédia

Astronomica: Liber I, 1-10 - Marcus Manilius

Carmine divinas artes et conscia fati
sidera diversos hominum variantia casus,
caelestis rationis opus, deducere mundo
aggredior primusque novis Helicona movere
cantibus et viridi mutantis vertice silvas
hospita sacra ferens nulli memorata priorum.
hunc mihi tu, Caesar, patria principesque paterque,
qui regis augustis parentem legibus orbem
consessumque patri mundum deus ipse mereris,
das animum viresque facis ad tanta canenda.


Aqui uma foto de Housman, porque não temos de Manílio e essa postagem quase virou sobre o inglês... Fonte: Wikipédia

Astronômica: Livro I, 1-10 - Marco Manílio

Canções, por diva mágica e ciente do destino,
Astros, diversifica os mais que humanos causos,
Da razão celeste obras; e extrair do mundo,
Ser o primeiro a vir com de Hélicon tais cantos
E as verdes matas, é o que desejo, esta
Estranha oferenda, outrora nunca vista.
Tu, César, para mim, líder e pai da pátria,
Que reges o orbe obediente à lei augusta
E ganhas, sendo deus, o mundo que é do pai,
Que anima e dá vigor a tais celebrações.

Tradução: Raphael Soares



Editado dia 10/12/2019: Originalmente a postagem era "Os 6 primeiros versos de Astronomica" como aparece no link. Acrescentei quatro versos (7-10) no original e na tradução, marcados em itálico e alterei o título. A postagem, contudo, permanece original, fazendo referência apenas aos 6 versos originalmente traduzidos, sem comentar a dedicatória a Augusto César, conteúdo dos 4 versos adicionais.