quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

A Aplicação do Pensamento na Crítica Textual - A. E. Housman

Após o fim das minhas publicações clássicas, resolvi publicar um texto que é considerado fundamental até os dias de hoje, sobre o que é ser um crítico textual de textos clássicos. Embora a cultura portuguesa, e, por extensão, a brasileira, tenha um estudo filológico e de crítica textual sobre textos lusófonos (embora bem mais desenvolvidos em Portugal), os nossos estudos clássicos são altamente defectivos no âmbito textual. Muitas das nossas melhores versões dos clássicos ignoram as questões textuais, e quando não as ignoram, as fazem sem método. Os poucos classicistas nacionais que já dedicaram algumas páginas sobre tais questões realmente não tem o texto como preocupação. Não acho que um texto como esse vai fazer alguma diferença na mentalidade nacional, mas considerando que eu estou preparando uma "Obra" de Housman, contendo a "Poesia" (maior completude possível), "Prosa" (Seleção) e uma edição de estudo baseada no "Aparato Crítico do Culex", e acho que a seleção de prosa nunca vai encontrar casa publicadora de qualquer modo, apresento essa "primeira versão" da palestra de Housman intitulada "A Aplicação do Pensamento na Crítica Textual" (uma versão pode ser lida gratuitamente aqui. Minha edição é o do Classical Papers e da Prosa Seleta). A minha próxima postagem será uma anotação e explicação e exemplificação de alguns dos pontos tratados pelo autor. Vejo vocês lá.



A APLICAÇÃO DO PENSAMENTO NA CRÍTICA TEXTUAL
A seguinte leitura foi feita para o encontro da Classical Association em Cambridge, no dia 4 de agosto de 1921.

Ao começar a falar sobre a aplicação do pensamento na crítica textual eu não pretendo definir o termo pensamento, porque espero que o sentido que eu dou à palavra emergirá do que eu disser. Mas é necessário definir de cara o que é crítica textual, porque muitas pessoas, e mesmo algumas que professam ensinar isso para outras, não sabem o que é. Se veem livros que se chamam introduções à crítica textual que não contem nada do assunto do início ao fim; que são só sobre paleografia, manuscritos e colações, e não têm maior relação com crítica textual se fossem sobre sobre morfologia e sintaxe. Paleografia é uma das coisas com que o crítico textual precisa se familiarizar, mas gramática é outra, e é igualmente indispensável; e nenhuma quantidade de gramática ou de paleografia ensinará a um homem um fiapo de crítica textual.

Crítica textual é uma ciência, e, desde que abrange recensão e emenda, é também uma arte. É a ciência de descobrir o erro nos textos e a arte de os remover. Essa é a definição, ou seja, o que o nome denota. Mas eu também devo dizer algo sobre o que e o que não conota, que atributos implica e não implica; porque aqui também falsas impressões se propagam.

Primeiro, então, é que não é um mistério sagrado. É puramente uma questão de razão e senso comum. Exercitamos crítica textual sempre que reparamos e corrigimos uma impressão errada. Um homem que possui senso comum e o uso da razão não deve esperar aprender de tratados ou palestras sobre a crítica textual nada que ele não descobriria por conta própria, com tempo livre e diligência. Que palestras e tratados podem fazer por ele é poupar tempo e esforço ao apresentar imediatamente considerações que, de qualquer modo, ocorreriam a ele cedo ou tarde. E, sempre que ele lê sobre crítica textual em livros, ou ouve em leituras, deve testar pela razão e senso comum, e rejeitar tudo o que entra em conflito com qualquer uma delas como mero hocus-pocus.

Segundo, crítica textual não é um ramo da matemática, nem, de fato, uma ciência exata de todo. Ela lida com um assunto que não é rígido e constante, como linhas e números, mas fluido e variável; a saber, as fragilidades e aberrações da mente humana, e de seus insubordinados servos, seus dedos. Por conta disso não é suscetível a regras estritas. Seria muito mais fácil se assim fosse; e eis o porque que pessoas tentam fingir que o é, ou ao menos se comportarem como se assim fosse. Claro que vocês podem ter regras estritas se quiserem, mas então terão regras falsas, e elas os levarão ao erro; porque a simplicidade delas se mostrará então inaplicável aos problemas que não são simples, mas complicados pelo drama da personalidade. Um crítico textual engajado em seu ofício não é como Newton investigando o movimento dos planetas: ele é muito mais como um cão caçando pulgas. Se um cão caçar pulgas baseado em princípios matemáticos, embasando suas pesquisas em estatísticas de área e população, ele nunca irá pegar uma pulga, exceto por acidente. Elas precisam ser tratadas como indivíduos; e cada problema que apresenta-se para o crítico textual deve ser considerado como possivelmente único.

Crítica textual, portanto, não é nem mistério nem matemática: ela não pode ser aprendida seja como catecismo ou como tabela de multiplicação. Esta ciência e arte exige mais do aprendiz que uma mente simplesmente receptiva; e o fato é que ela não pode ser ensinadas: criticus nascitur, non fit. Se um cão quer caçar pulgas com sucesso ele deve ser rápido e sensível. Não faz bem para um rinoceronte caçar pulgas: ele não sabe onde elas estão, e sequer poderia pegá-las se soubesse. As vezes se diz que a crítica textual é a coroa e ápice de todo o saber. Isso não é evidentemente ou necessariamente verdade; mas é verdade que as qualidades que fazem um crítico, sejam elas transcendentes ou não, são raras, e um bom crítico é coisa muito menos comum do que, por exemplo, um bom gramático. Eu tenho em mente um artigo de um estudioso famoso sobre certo escritor latino, e metade do estudo trata da gramática e a outra metade de crítica. A parte gramatical é excelente; mostra ampla leitura e observação precisa, e contribuiu com coisas que eram tanto novas como de valor. Na parte textual o autor não parecia melhor que uma criança malcriada interrompendo a conversa dos adultos. Se era possível cometer um erro na questão tratada ele errava. Se os argumentos de um oponente eram contidos em algum livro que ele não tinha a disposição, não tentava encontrar o livro, mas adivinhar os argumentos; e ele sempre falhava. Se tinha acesso ao livro e leu os argumentos, não os compreendia; e representava seus oponentes como se falassem o oposto do que falaram. Se outro estudioso já havia removido uma corrupção ao alterar o texto ligeiramente, ele propunha removê-la alterando o texto violentamente. Assim, é possível ser um homem inteligente e admirável em outros departamentos, e ainda assim não ter em si sequer a sombra de um crítico.

Mas a a aplicação do pensamento na crítica textual é uma ação que deve estar dentro das possibilidades de qualquer um que pode aplicar o pensamento em qualquer coisa. Não é, como o talento para a crítica textual, um dom da natureza, mas um hábito; e, como outros hábitos, pode ser formado. Desse modo, quando formado, embora não substitua um talento ausente, pode modificar e minimizar os efeitos ruins de tal ausência. Porque um homem não é um crítico nato, e, portanto, ele não precisa agir como um tolo nato; mas quando se engaja em crítica textual, isso acontece frequentemente. Para tudo há razão, e há razões para isso; e agora vou mostra a principal das razões. O fato de que o pensamento não é suficientemente aplicado, e devo demonstrar em breve com exemplos; mas no momento considerarei as causas que disso resultam.

Primeiramente é que não é somente a aptidão natural para o estudo que é rara, mas também é o interesse genuíno nele. Muitas pessoas, e muitos estudiosos entre elas, acham um tanto árido e tedioso. Agora, se um assunto nos aborrece, é nosso direito não querer nos dar ao trabalho de pensar sobre ele; mas se assim fizermos, seria melhor continuar e evitar nos darmos ao trabalho de escrever sobre também. E isso foi o que os estudiosos ingleses frequentemente faziam na metade do século XIX, quando ninguém na Inglaterra queria ouvir falar sobre crítica textual. Isso não é uma condição ideal das coisas, mas teve sua compensação. Quanto menos se fala sobre um assunto que não se entende, menos se fala estupidez sobre o mesmo; e quanto a isso, a opinião pública permitia aos editores ficarem calados se assim escolhessem. Mas a opinião pública agora se deu conta que crítica textual, embora repulsiva, é, não obstante, indispensável, e editores acham que alguma pretensão de lidar com o assunto é obrigatória; e em tais circunstâncias eles não aplicam o pensamento, mas palavras, na crítica textual. Eles obtém regras de rotina sem compreender as realidades das quais essas regras são meros emblemas, e as recitam em ocasiões inapropriadas ao invés de pensar seriamente em cada problema que surge.

Segundo, é que apenas uma minoria dentre aqueles que engajam em tal estudo são sinceramente inclinados em descobrir a verdade. Nós todos sabemos que a descoberta da verdade é raramente o objetivo principal de escritores políticos; e o mundo crê, com ou sem justiça, que nem sempre é o único objetivo de teólogos: mas a quantidade de desonestidade subconsciente que permeia a crítica textual de clássicos greco-latinos é pouco suspeita, exceto por aqueles que tiveram a ocasião de analisar. Pessoas iniciam no campo trazendo com elas predisposições e preferências; elas não desejam olhar todos os fatos de frente, nem extrair a conclusão mais provável, exceto quando é também a conclusão mais agradável. A maioria dos homens é um tanto estúpida, e muitos daqueles que não são estúpidos são, consequentemente, um tanto vãos; e dificilmente é possível escapar da busca pela verdade sem cair vítima ou de sua estupidez ou de sua vaidade. Estupidez então os prenderá em opiniões recebidas, e vão ficar na lama; ou vaidade os porá a caçar novidades, e terão descobertas ilusórias. Somam-se a essas armadilhas e impedimentos as várias formas de partidarismo: sectarismo, que te algema em tua própria escola, professores e associados, e patriotismo que te algema em teu próprio país. Patriotismo teve um grande nome como uma virtude, e em assuntos cívicos, no atual estágio da história do mundo, é possível que ainda faça mais bem que mal; mas na esfera do intelecto é praga não mitigada. Eu não sei qual compõe a pior figura: um estudioso alemão encorajando os seus a acreditar que 'wir Deutsche' nada têm a aprender de estrangeiros, ou um inglês demonstrando a unidade de Homero zombando os 'Teutonic professors', que sua audiência supõe ter olhos arregalados por trás de largos óculos, e bigodes irregulares saturados com muita cerveja, consequentemente sendo incapazes de formar julgamentos literários.

Terceiro, as causas internas de erro e tolice são raramente sujeitas à oposição ou correção de fora. O leitor médio dificilmente sabe algo de crítica textual, e portanto não pode exercer um controle vigilante sobre o escritor: o cabeça-oca é livre para divagar e o impostor para mentir. E, o que é pior, o leitor frequentemente compartilha os preconceitos do escritor, e está mais que satisfeito com as conclusões dele para examinar, sejam suas premissas, seja sua razão. Fiquem em pé num barril nas ruas de Bagdá, e gritem alto, 'Dois mais dois são quatro, e gengibre arde na boca, por isso mesmo Maomé é o profeta de Deus', e sua lógica provavelmente não será criticada; ou, se alguém por acaso criticá-la, poderão facilmente silenciar esse alguém chamando-o de cachorro cristão.

Quarto, as coisas sobre as quais o crítico textual fala não são coisas que apresentam a si própria de modo tão claro e agudo na mente; e é fácil dizer e imaginar que se pensa, o que realmente não se pensa, e mesmo que, caso realmente se pense, que descobre impensável. Por isso são cometidos erros que não se cometeriam se o assunto em questão fosse qualquer objeto corpóreo, tendo qualidades perceptíveis aos sentidos. Os sentidos humanos têm uma história mais longa que o intelecto humano, e têm sido levados mais próximos da perfeição: eles são mais agudos e mais difíceis de enganar. A diferença entre um sincelo e um atiçador em brasa é, em verdade, muito menor que a diferença entre verdade e falsidade, ou sentido e nonsense; ainda é notado de modo muito mais imediato e universal, porque o corpo é mais sensitivo que a mente. Portanto, acho que um bom modo de expor a falsidade de uma afirmação, ou o absurdo de um argumento, em crítica textual é o de transpor em termos sensíveis, e ver como eles se parecem. Se os nomes que usamos são nomes de coisas que podem ser manuseadas ou provadas, diferindo entre si sendo quentes ou frias, doces ou azedas, então nos damos conta do que estamos dizendo e tomamos cuidado com o que falamos. Mas os termos da crítica textual são deploravelmente intelectuais; e provavelmente em nenhuma outra área homens contam tantas mentiras, na vã esperança de que estejam dizendo a verdade, ou falam tanto nonsense na vaga crença de que estejam fazendo sentido.

Isso é particularmente lamentável, e particularmente repreensível, porque não há ciência em que seja mais necessário tomar precauções contra erro que surgem de causas internas. Aqueles que seguem as ciências físicas aproveitam a grande vantagem de poder constantemente trazer suas opiniões ao teste do fato, e verificar ou falsificar suas teorias pelo experimento. Quando um químico misturou enxofre, salitre e carvão, em certas proporções, e deseja confirmar se a mistura é explosiva, precisa apenas acender um fósforo. Quando um médico fez a composição de uma droga nova e deseja descobrir para quais doenças, se para alguma, ela serve, precisa apenas dar para todos os seus pacientes e notar quais morrem e quais se curam. Nossas conclusões em relação à verdade ou falsidade da leitura de um MS. nunca podem ser confirmadas ou corrigidas por um teste igualmente decisivo; pois o único teste igualmente decisivo seria a produção do autógrafo do autor. A mera descoberta de MSS. melhores ou mais velhos que os anteriormente conhecidos não é igualmente decisivo; e mesmo essa verificação inadequada não deve ser esperada com muita frequência ou em larga escala. É, portanto, uma questão de prudência e decência comuns que não devemos negligenciar nenhuma garantia dentro de nosso alcance; que devemos ser perspicazes por conta própria; que devemos escrutinar minuciosamente nossos próprios procedimentos, e analisar rigorosamente nossas fontes de ação. O quanto esses requisitos elementares são satisfeitos aprenderemos agora por exemplos.

Logo de cara, para ver que irrelevância pura, que tolice quase incrível, encontra seu caminho na imprensa, tome este caso. Se tem suposto por muitos séculos que o nome de Plauto era M. Accius Plautus, quando Ritschl, em 1845, apontou que no palimpsesto Ambrosiano, descoberto em Maio de 1815, escrito no quarto ou quinto século, e, portanto, o mais velho dos MSS. de Plauto, o nome aparecia no genitivo como T. Macci Plauti, então ele realmente se chamava Titus Maccius (ou Maccus) Plautus. Um estudioso Italiano, um Vallauri, contestou a tal inovação baseado no fato de que em todas as edições impressas dos séculos XVI-XIX o nome era M. Accius. Ele foi para Milão ver o palimpsesto, e lá, decerto, encontrou T. Macci escrito de modo bem legível. Mas observou que muitas outras páginas do MS. eram quase ilegíveis, e que o livro inteiro estava muito desgastado e esfarrapado; daí disse que não podia suficientemente imaginar ninguém dando qualquer peso para um MS. que estivesse em tais condições. Há alguma outra ciência, algo chamando a si mesmo de ciência, em que tais intelectos invadem e conduzem tais operações em público? Mas talvez vocês pensem que o Sr. Vallauri é um fenômeno único. Não: se vocês se engajarem em crítica textual devem encontrar um segundo Sr. Vallauri a qualquer momento. Os MSS. de Catulo, nenhum deles anterior ao século XIV, apresentam em 64.23 o verso:
heroes saluete, deum genus! o bona mater!
A scholia Veronense de Virgílio, um palimpsesto do século V ou VI, em Aen. v80, 'salue sancte parens', tem a nota: 'Catullus: saluete, deum gens, o bona matrum | progenies, saluete iter[um]'—dando gens no lugar de genus, matrum no lugar de mater, e adicionando meio verso ausente nos MSS. de Catulo; e estudiosos têm, naturalmente, preferido uma autoridade muito mais antiga. Mas se encontra um editor para contestar: 'o peso da scholia Veronense, imperfeita e cheia de lacuna como é, não deve ser posta contra nossos MSS'. Aqui é o Sr. Vallauri novamente: porque o palimpsesto tinha grandes buracos aqui e ali e porque muito dele pereceu, o que resta, embora de escrita tão antiga quanto o século VI, tem menos autoridade que MSS. escritos no XIV. Se, contudo, qualquer um tiver posse desses MSS. do século XIV, destruir páginas deles e criar buracos nas páginas que não destruir, a autoridade dessas partes que sobreviverem irão, presumivelmente, deteriorar, e devem mesmo afundar tanto quanto a do palimpsesto.

Novamente. Existem dois MSS. de um certo autor, que chamaremos A e B. Desses dois se reconhece que A é o mais correto porém o menos sincero, e que B é o mais corrupto porém menos interpolado. Se deseja saber qual MS., se algum, é melhor que o outro, ou se ambos são iguais. Um estudioso tenta determinar tal questão pela coleção e comparação dos exemplos. Mas outro pensa que conhece um caminho mais curto que esse; e que consiste em dizer 'o MS. mais sincero deve ser, para qualquer crítico que entende de seu ofício, o melhor MS.'.

Cito isto como um espécime das coisas que pessoas devem dizer se não pensam no significado daquilo que dizem, e especialmente como um exemplo do perigo de se lidar em generalizações. O melhor meio de tratar tais inanidades pretensiosas é transferi-las da esfera da crítica textual, onde a diferença entre verdade e falsidade, ou entre o sentido e nonsense, é pouco considerada, e raramente sequer percebida, para uma esfera em que homens são obrigados a usar termos concretos e sensíveis, o que os força, mesmo que relutantemente, a pensar.

Eu questiono esse estudioso, tal crítico que sabe seu ofício, e que diz que o MS. mais sincero dos dois é e deve ser o melhor—pergunto que me diga quem pesa mais, um homem alto ou um gordo. Ele não pode responder; ninguém pode; todo mundo vê num instante que a questão é absurda. Alto e gordo são adjetivos que transportam mesmo o crítico textual do mundo da farsa para o da realidade, um mundo habitado por pessoas comparativamente profundas, como açougueiros e doceiras, que dependem de seus cérebros para ter o pão de cada dia. Aqui ele deve entender que para tais questões gerais qualquer resposta deve ser falsa; que julgamento só pode ser pronunciado em espécimes individuais; que tudo depende do grau de altura e do grau de gordura. Pode ser que uma polegada de circunferência adicione mais peso que uma polegada de altura, ou vice versa; mas que altitude é incomparavelmente mais pesada que obesidade, ou obesidade que altitude, e que uma polegada de um afeta a balança mais que uma jarda de outro, nunca foi mantido. O modo de descobrir se este homem alto pesa mais ou menos que aquele homem gordo é os pesando; e o modo de descobrir se este MS. corrupto é melhor ou pior que aquele interpolado é reunindo e comparando as leituras dos mesmos; não saltar prontamente numa generalização falsa e ridícula de que o MS. mais sincero é e deve ser melhor.

Quando se chama um MS. sincero, instantaneamente se engaja favoravelmente a simpatia moral do sem cérebro: simpatia moral é uma linha em que eles são bem fortes. Eu não pretendo excluir moralidade da crítica textual; eu desejo, de fato, que algumas qualidades morais fossem mais comuns em crítica textual do que são; mas não vamos beneficiar nossas emoções morais contra a razão. Pode ser que um escriba que interpola, que cria mudanças deliberadamente, é culpado de perversidade, enquanto um escriba que muda acidentalmente, porque está com sono, não sabe ler ou está bêbado, não tem tal culpa; mas isso é questão que será determinada por uma autoridade competente no Dia do Juízo, e não nos diz respeito. Não nos diz respeito o destino eterno do escriba, mas a utilidade temporal do MS.; e um MS. é útil ou o oposto disso em proporção à quantidade de verdade que revela ou oculta, não importa quais possam ser as causas da revelação ou ocultação. É um erro supor que mudanças deliberadas são sempre ou necessariamente mais destrutivas que mudanças acidentais; e mesmo se fossem, a questão principal, como eu já disse, é de grau. Um MS. em que 1% das palavras foram viciosamente e intencionalmente alteradas e 99% está certo não é um MS. tão ruim quanto um em que 1% está correto e 99% foi alterado virtuosamente e sem intenção; e se vocês perguntarem a um crítico questão vaga como qual dos dois MSS., o 'mais sincero' ou o 'mais correto', é melhor, ele responderá, 'Se eu vou responder tal questão, mostre-me primeiro os dois MSS.; por tudo o que sei até o momento, dos termos da questão, qualquer um pode ser melhor que o outro, ou ambos podem ser iguais'. Mas isso é o que os intrusos incompetentes em crítica nunca podem admitir. Eles precisam ter um MS. melhor, existindo ou não; porque eles nunca podem avançar sem um. Se a Fortuna permitir que dois MSS. sejam iguais, o editor terá de escolher entre suas leituras por considerações de mérito intrínseco, e para fazer isso ele teria de adquirir inteligência, imparcialidade, e desejo de tomar as dores, e todo tipo de coisas que ele não tem ou não deseja; e ele tem certeza que Deus, que tempera o vento para o cordeiro tosquiado, nunca poderia colocar sobre os ombros dele um fardo assim.

Esta é a falta de pensamento na esfera da recensão: segue agora para a esfera da emenda. Aqui há um tipo tolo de conjectura que parece ser mais comum nas Ilhas Britânicas que em qualquer outro lugar, embora também seja praticada no exterior, e nos últimos anos especialmente em Munique. A prática é, se já te convenceste que um texto é corrupto, altere uma letra ou duas e veja o que acontece. Se o que acontecer é algo que a mais branda boa fé pode se equivocar como tendo sentido e gramática, chama isso de emenda; e depois chama tal jogo estúpido de método paleográfico.

O método paleográfico sempre foi o deleite dos novatos e o escárnio dos críticos. Haupt, por exemplo, costumava alertar seus pupilos contra confundir tal coisa com emenda. 'O primeiro requisito de uma boa emenda', disse, 'é que deve iniciar do pensamento; e somente depois que outras considerações, como as de metro, ou possibilidades, como a troca de letras, devem ser consideradas'. E novamente: 'Se o sentido exigir, estou preparado para escrever Constinopolitanus onde os MSS. tem a interjeição monossilábica o'. E novamente: 'Partindo da exigência que se deve começar sempre pelo pensamento, aqui resulta, como é auto-evidente, o aspecto negativo do caso, que não se deve, no início, considerar que mudança de letras deve possivelmente ter criado a corrupção da passagem com que se está lidando'. E adiante, em sua oração sobre Lachmann como crítico: 'Algumas pessoas, se percebem que algo em um texto antigo precisa de correção, imediatamente se lançam na arte da paleografia, investigam as formas das letras e as formas de abreviação, e tentam um ardil depois do outra, como se fosse um jogo, até que acertam algo que eles pensam poder substituir a corrupção; como se a verdade fosse realmente descoberta por lances dessa estirpe, ou como se emenda pudesse surgir de algo que não uma consideração cuidadosa do pensamento'.

Mas mesmo quando paleografia é mantida em seu lugar próprio, como serva, e não se permitir que ganhe ares de senhora, ela pode se sobrecarregar. Existe aqui uma preferência por conjecturas que pedem o auxílio da paleografia, e que assumem, como causa do erro, a mudança acidental de letras ou palavras similares, embora sabe-se que existem outras causas de erro. Uma é apresentada, por exemplo, com a seguinte máxima:
Interpolação é, geralmente falando, uma fonte de alteração comparativamente incomum, e nós devemos, portanto, ser relutantes em assumi-la em um determinado caso.
Todo caso é um determinado caso; então o que a máxima realmente quer dizer é que devemos sempre ser relutantes em assumir interpolação como fonte de alteração. Mas é certo, e admitido pelo escritor quando ele usa a frase 'comparativamente incomum', que interpolação ocorre; então ele está nos dizendo que devemos ser relutantes em assumir interpolação mesmo quando essa suposição é verdadeira. E a razão porque devemos nos comportar de modo ridículo assim é porque interpolação é, geralmente falando, uma fonte de alteração comparativamente incomum.

Agora detectar um non sequitur, a menos que leve a uma conclusão indesejável, está além do poder do leitor comum e está além do poder do escritor médio atribuir ideias para suas próprias palavras quando tais palavras são termos de crítica textual. Eu irei, portanto, substituir os termos, termos para os quais ideias devem ser atribuídas; e eu convido consideração de tal máxima e seu raciocínio:
Tiro é, geralmente falando, uma causa de morte comparativamente incomum, e nós devemos, portanto, ser relutantes em assumi-la em um determinado caso.
Devemos? Devemos ser relutantes em assumir morte por tiro se o determinado caso for morte no campo de batalha? e devemos ser relutantes pela razão alegada, de que tiro é, geralmente falando, uma causa de morte comparativamente incomum? Devemos então assumir a causa de morte mais comum, e declarar uma morte no campo de batalha por tuberculose? O que se pensaria de um advogado que apreciasse esse modo de proceder? Bem, provavelmente se pensaria que ele era um crítico textual retirado de seu lar.

Porque interpolação é comparativamente incomum? Pela mesma razão que tiros são: porque a oportunidade para sua ocorrência é comparativamente incomum. Interpolação é provocada por dificuldades reais ou supostas, e não se voluntaria frequentemente onde é tudo navegação simples; enquanto alteração acidental pode ocorrer em qualquer lugar. Cada letra de cada palavra está exposta a ela, e esta é a única razão porque mudança acidental é mais comum. Em um dado caso em que ambas as suposições são possíveis, a suposição de interpolação é igualmente provável, ou ainda mais provável; porque ação motivada é mais provável que ação sem motivo. A verdade, portanto, é que em tal caso devemos ser relutantes em assumir acidente e devemos então assumir interpolação; e o fato de que tais casos são comparativamente incomuns não é razão para se comportar irracionalmente onde eles ocorrem.

Existe uma província especial da crítica textual, uma grande e importante província, que lida com o estabelecimento das regras de gramática e metro. Tais regras são, em parte, tradicionais, dadas a nós pelos gramáticos antigos; mas em parte são formadas pela nossa própria indução do que achamos nos MSS. de autores Gregos e Latinos; e mesmo as regras tradicionais devem, claro, ser testadas por comparação com os testemunhos dos MSS.. Mas cada regra, seja ela tradicional ou construída por indução, é algumas vezes quebradas pelos MSS.; pode ser por alguns, pode ser por muitos; pode ser raridade, pode ser frequente; e críticos devem dizer então que os MSS. estão errados, e devem corrigi-los de acordo com a regra. Esse estado das coisas é aparentemente, ou mesmo evidentemente, paradoxal. Os MSS. são os materiais sobre os quais baseamos nossas regras, e então, quando nós temos nossas regras, nos voltamos contra o MSS. e dizemos que a regra, baseada neles, os incrimina por erro. Estamos assim trabalhando em círculo, o que é um fato que não se pode negar; mas, como Lachmann diz, a tarefa do crítico é exatamente essa, andar sobre o círculo com habilidade e cautela; e é isso, precisamente, que eleva o trabalho do crítico acima do mero labor mecânico. A dificuldade é aquela que jaz na natureza do caso, e isso é inevitável: e o único modo de o superar é sendo um crítico.

O paradoxo é mais formidável em aparência que em realidade, e há muitas analogias na vida diária. Em um julgamento ou processo, o veredito do júri é principalmente baseado na evidência das testemunhas; mas isso não impede o júri de decidir por si, de que uma ou mais testemunhas são culpadas de perjúrio, ou que a evidência delas deva ser desrespeitada. É bem possível induzir do testemunho geral do MSS. uma regra suficientemente correta para convencer da falsidade de seu testemunho excepcional, ou de probabilidade suficiente para gerar dúvidas. Mas tal testemunho excepcional deve ser considerado em cada caso. Deve ser reconhecido que há duas hipóteses entre as quais temos de decidir: a questão de se as exceções vêm do autor, e assim quebram a regra, ou se vêm do escriba, e devem ser corrigidas: e para decidir isso temos de abrir os olhos para qualquer peculiaridade que devem as caracterizar.

Uma das formas em que a falta de pensamento assumiu na crítica textual é a tendência, agora predominante, especialmente entre alguns estudiosos do continente, de tentar quebrar regras aceitas da gramática ou metro pela mera coleção e enumeração de exceções apresentadas pelos MSS.; Agora isso nunca pode quebrar uma regra: o mero número de exceções não é nada; o que importa é o peso delas, e isso só pode ser determinado por classificação e escrutínio. Se eu tivesse anotado cada exemplo que eu encontrei, eu deveria ter agora uma grande coleção de MSS. latinos em que o substantivo orbis, que nossas gramáticas e dicionários declaram ser masculinos, tem um adjetivo feminino ligado a ele. Mas eu não irei, por causa disso, propor a revisão da regra de sintaxe, pois o estudo mostraria que tais exemplos, embora numerosos, não tem força. Muitos deles são lugares em que o sentido e contexto mostram que orbis, em qualquer caso ou número que seja, é meramente uma corrupção do caso e número correspondente de urbs; e nos casos restantes é natural supor que o escriba tenha sido influenciado e confundido pela grande semelhança de uma palavra pela outra. Ou novamente, leiam Madvig, Adu. Crit., vol. I, liv. i, cap. iv, em que ele filtra as evidências para a opinião de que o aoristo infinitivo Grego pode ser usado após verbos de dizer e pensar no sentido do futuro do infinitivo ou do aoristo infinitivo com ἄν. A lista de exemplos em MSS. é, de fato, bem longa; mas no momento em que se começa a classificá-las e examiná-las então o choque é menos quanto ao número que quanto a restrição de seu escopo. Quase todas elas são coisas como δέξασθαι usada por δέξεσθαι, em que a diferença entre as duas formas é de apenas uma letra; um número menor é de formas como ποιῆσαι por ποιήσειν, em que a diferença, embora maior, é ainda mínima; outros exemplos são ἥκιστα ἀναγκασθῆναι por ἥκιστ' ἂν ἀναγκασθῆναι, onde, novamente, a diferença é quase nenhuma. Agora, se os MSS. estão certos nos casos citados, e os autores Gregos usaram tal construção, como se explica tal limitação extraordinária no uso? Não há nenhuma diferença sintática entre o primeiro e segundo aoristo: porque então eles usam o 1º aoristo tão frequentemente para o futuro e o 2º tão pouco? Porque eles dizem δέξασθαι ao invés de δέξεσθαι dezenas de vezes e λαβεῖν ao invés de λήψεσθαι nenhuma? Apenas perguntar a questão basta para revelar a realidade do caso. O fato bruto de que os aoristos usados assim nos MSS. são aoristos de forma similar ao futuro, enquanto aoristos de forma dissimilar não são usados desse jeito, prova que o fenômeno tem sua causa nos olhos do copista e não na mente do autor, que não é uma variação no uso gramatical, mas um erro de transcrição. O número de exemplos não é nada; tudo depende de seu caráter; um único exemplo de λαβεῖν com sentido de futuro teria muito mais peso que uma centena de δέξασθαι.

Em particular, escribas alterarão formas menos familiares para uma mais familiar, se não virem nada que os impeça. Se o metro permitir, ou se eles não souberem que o metro proíbe, alterarão ἐλεινός para ἐλεεινός, οἰστός para ὀϊστός, nil para nihil, deprendo para deprehendo. Desde que o metro os incrimina de infidelidade em alguns lugares, eles perdem o direito à nossa confiança em qualquer lugar; se escolhemos acreditar neles, somos crédulos, e se construirmos nossas estruturas em nossas crenças não somos críticos. Mesmo se o metro não os incrimina, a razão às vezes o faz. Tomem a afirmação, repetidamente feita em gramáticas e edições, de que os Latinos algumas vezes usavam o mais-que-perfeito no lugar do imperfeito e do perfeito. Eles, de fato, usaram para o imperfeito; eles também usaram para o aoristo passado ou pretérito; mas para o perfeito eles não usaram; e isto se prova pelos próprios exemplos de uso como perfeito que se encontram em MSS.. Todos os exemplos conhecidos são da 3ª pessoa do plural. Por quê? Nós temos de escolher entre as duas hipóteses seguintes:
(a) que os Latinos usavam o mais-que-perfeito com o sentido de perfeito, mas apenas na 3ª pessoa do plural.
(b) que eles não usaram o mais-que-perfeito como perfeito, e que os exemplos são corruptos.
Se alguém adotou a primeira, ele terá de explicar que propriedade sintática, convidando o autor a usar o mais-que-perfeito como perfeito, a 3ª pessoa do plural possuía que as outras duas pessoas do plural e as três do singular não possuíam: e eu gostaria de ver alguém explicando isso.

Se adotamos a segunda, devemos mostrar que qualidade externa, convidando o escriba a escrever o mais-que-perfeito no lugar do perfeito, a 3ª pessoa do plural, e só ela, possui: e isso é bem fácil. A 3ª pessoa do plural é a única pessoa em que o perfeito e o mais-que-perfeito diferem meramente em uma letra. Além do mais, em verso, a terminação perfeita -erunt, sendo comparativamente pouco familiar para os escribas, é alterada por eles para a forma familiar mais próxima com a mesma escanção, às vezes -erint, às vezes -erant: em Heroides de Ovídio há quatro lugares em que o melhor MS. nos dá praebuerunt, steterunt, exciderunt, expulerunt, e os outros MSS. dão -erant ou -erint ou ambos. Do mesmo modo, quando o MSS. bem mais inferior de Propércio apresenta o mais-que-perfeito no lugar do perfeito em quatro lugares, fuerant uma vez, steterant uma vez, exciderant duas vezes, Escalíngero corrige para fuerunt, steterunt, exciderunt. Em seguida, um editor de sua era esclarecida toma a pena e escreve o seguinte: 'É bem errôneo remover os mais-que-perfeitos onde se pode agir sem grande custo da sagacidade conjectural (steterunt por steterant e outros), e não se incomodar com o fenômeno nos outros lugares'. Eu pergunto, como é possível se incomodar com o fenômeno nos outros lugares? Não existem outros lugares. Não há lugar em que os MSS. deem steteram no sentido do perfeito steti, nem steteras no sentido do perfeito stetisti. Sempre que se dão exemplos do mais-que-perfeito que não pode ser removido pela mudança de uma letra—como em pararat em i 8 36 ou fueram em i 12 11—são exemplos em que têm o sentido de imperfeito ou do pretérito, mas nunca do perfeito. E a inferência é clara: os Latinos não usaram o mais-que-perfeito com sentido de perfeito.

Escalíngero sabia disso no século dezesseis: o Sr. Rothstein, no dezenove e vinte, não sabe; ele gosta de um tipo de verborragia que o previne de sabê-lo, e pensa que está na frente de Escalíngero. Se supõe que exista progresso na ciência da crítica textual, e o mais frívolo fingidor aprendeu a falar superciliosamente sobre 'os velhos tempos acientíficos'. Os velhos tempos acientíficos são eternos; eles estão aqui e agora; são perenemente renovados pelo ouvido que recebe formulas, a língua que as propaga, e a mente que é, durante o processo, vazia de reflexão e estufada de autocomplacência. Progresso houve, mas onde? Em intelectos superiores: a turba não compartilha delas. Um homem como Escalíngero, vivendo em nosso tempo, seria um crítico melhor que Escalíngero foi; mas nós não devemos ser críticos melhores que ele pelo simples fato de vivermos em nosso próprio tempo. Crítica textual, como muitas outras ciências, é um afazer aristocrático, não comunicável a todos os homens, nem para a maioria deles. Não ser um crítico textual não é de se reprovar em nenhum homem, a menos que ele finja ser o que não é. Ser um crítico textual exige aptidão para o pensamento e o desejo de pensar; e embora exija outras coisas, tais coisas são suplementos e não podem ser substitutos. Conhecimento é bom, método é bom, mas uma coisa é necessária acima das outras; é ter uma cabeça, não uma abóbora, sobre os ombros, e cérebro, não pudim, na cabeça.

Trad: Raphael Soares

sábado, 21 de dezembro de 2019

Poema dos Imperadores

Segundo me consta, em 2014-2015 eu comecei a traduzir os fragmentos atribuídos aos imperadores. Meu interesse principal, adiantando, era a poesia de Nero, porém é triste o quão pouco sobreviveu da obra do imperador. Não sabia e não comparei na época, mas Márcio Meirelles Gouvêa Júnior traduziu ainda mais desses fragmentos, com destaque ainda maior para os poemas de Adriano, que, dos imperadores, é o que tem o maior Corpus, embora de autenticidade duvidosa. O artigo pode ser lido aqui.

Não há muito o que explicar que Meirelles Gouvêa não tenha explicado. Gostaria só de chamar atenção para o fato de que a tradução dele para o epigrama de Augusto está "errada" (atenuada), enquanto a minha tradução está mais de acordo com o texto latino. Também só chamaria atenção de que o poema do Nero é chamado de "Do Livro I" (in primo libro Nero), e não há nenhuma indicação de que livro em específico. Considerando que há testemunho de que Nero escreveu uma Troica, é possível assumir que seja esse o livro mencionado no escoliasta de Lucano, mas não é tão claro como Gouvêa diz, de que o escoliasta preservou os hexâmetros DE Troica. Sigo o texto da Teubner, Fragmenta Poetarum [etc], provavelmente... Com isso se o bloguinho tem tudo o que já fiz em matéria de interpretação de poemas latinos. Seguem os poemas:



[Frag]
[SUET. vita Ter. 7 (43 sq. Rost) post Cic. fr. 2: item C. Caesar:]
tu quoque, tu in summis, o dimidiate Menander,
poneris, et merito, puri sermonis amator.
lenibus atque utinam scriptis adiuncta foret vis
comica, ut aequato virtus polleret honore
cum Graecis, neve hac despectus parte iaceres!
unum hoc maceror ac doleo tibi deesse, Terenti.
1tu in summis, o Stephanus:tu in summisso A: tam submisso DEZ: non tam sum(m)isso BCFG|| 2 poneris] pond· eris Apost vis interp. Bentley || 5 neve Roth: neque codd. | despectus cum uno dett. R. Regius, ed. Terent., Venetiis 1473: despectus ex vel despecta ex cett.: despecte ex Baehrens, Courtney

[Frag.]
 Até tu, dentre os maiores, quase Menandro,
com méritos, amante dos límpidos discursos.
No entanto, se os escritos graciosos tivessem vigor
cômico, poderias ter força e honra igual
a dos Gregos, e não sofrerias desrespeito!
Me causa dor e mágoa essa tua falta, Terêncio.

Trad: Raphael Soares


Epigrama
[MART. 11, 20, 1 sq.: Caesaris Augusti lascivos, livide, versus,/ sex lege, qui tristis verba Latina legis:]
quod futuit Glaphyran Antonius, hanc mihi poenam
Fulvia constituit, se quoque uti futuam.
Fulviam ego ut futuam? quid, si me Manius oret
pedicem, faciam? non, puto, si sapiam.
‘aut futue aut pugnemus’ ait. quid quod mihi vita
carior est ipsa mentula? signa canant!
[absolvis lepidos nimirum, Auguste, libellos,/ qui scis Romana simplicitate loqui]

Epigrama
o fato é que Antônio fode Glafira, e como
pena Fúlvia deseja que eu a foda.
Eu devo foder Fúlvia? E se Manius implorasse
para o comer? Não, nem fodendo iria.
“Ou fode ou brigaremos” diz. Qual vale mais,
A vida ou o meu pau? Soem clarins.

Trad: Raphael Soares


LIBER PRIMUM [TROICA?]
        [Adn. Lucan. 3, 261: Tigrin ... de hoc ait in primo libro Nero:]
quique pererratam subductus Persida Tigris
deserit et longo terrarum tractus hiatu
reddit quaesitas iam non quaerentibus undas

LIVRO PRIMEIRO [TROICA?]
e quem em viagem atravessou a Pérsia o Tigre
desertou, e por longas terras transladou,
retorna às caras ondas, sem nenhum querer

Trad: Raphael Soares

sábado, 14 de dezembro de 2019

Marcial - 3 Epigramas

Sem muita disposição para blablablá, aqui vão 3 epigramas de Caio Valério Marcial que, todos eles um tanto "pesados"... O texto que uso é o de D. R. Shackleton Bailey para a Loeb, e são todos os poemas de marcial que lembro de ter traduzido, com exceção de um fragmento que hipoteticamente cita um poema de Augusto César. Também gostaria de comentar que não vou fazer uma nova postagem para os versos 7-10 de Astronômica de Manílio, de modo que podem acessar meu post anterior para ler os 10 primeiros versos, de modo que os 4 finais são a dedicatória do poema. Há em português uma tradução em prosa de Marcelo Vieira Fernandes (aqui), feita como tese na USP em 2006.



Marcus Valerius Martialis - Liber I.
73
Nullus in urbe fuit tota qui tangere vellet
uxorem gratis, Maeciliane, tuam,
dum licuit: sed nunc positis custodibus inges
turba fututorum est: ingeniosus homo es.

Liber II.
62
Quod pectus, quod crura tibi, quod bracchia vellis,
quod cincta est brevibus mentula tonsa pilis,
hoc praestas, Labiene, tuae - quis nescit? - amicae.
cui praestas, culum quod, Labiene, pilas?

Liber VI.
37
Secti podicis usque ad umbilicum
nullas reliquias habet Charinus,
et prurit tamen usque ad umbilicum.
o quanta scabie miser laborat!
culum non habet, est tamen cinaedus.




Marco Valério Marcial - Livro I.
73
Ninguém na terra iria querer ter,
Nem grátis, tua mulher, Meciliano,
Quando podiam, mas com grandes guardas
Todos a estão fodendo: sábio humano.

Trad: Raphael Soares

Livro II.
62
O peito, a perna tua, o braço então depila,
E bem curtinho apara os pelos da tua pica,
(Quem não sabe?) fazeis p'ra agradar tua menina.
Mas para quem, Labieno, o cu então depilas?

Trad: Raphael Soares

Livro VI.
37
O teu buraco afunda até o umbigo,
Carino, e sombra alguma dele resta,
E ainda tens coceira lá no umbigo.
Ó misero e doloso o teu labor!
Não tens mais cu, e ainda és um puto.

Trad: Raphael Soares

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Duas frustrações pueris - não-traduções de Catulo e Lucano

10 anos atrás, em 2009, estava iniciando o curso de Letras na Universidade Federal do Pará. No primeiro semestre de curso estudei meu primeiro nível de Latim. A professora da disciplina, Zilda Paiva, não era latinista ou classicista (de fato, ela é da linguística aplicada), e portanto era uma amadora, mas uma amadora no seu sentido mais puro: alguém que ama. Fiquei apaixonado pela disciplina e pela língua latina, que já tinha algum interesse antes mas não a ponto de querer aprender. De lá para cá colecionei textos e materiais da língua, e aos poucos tentei aperfeiçoar-me nela, sem exatamente grande sucesso.

Com apenas uma disciplina e apenas uma cópia do Gradus Primus I e de um mini-léxico latino, o meu eu de 10 anos ingenuamente achou que seria o bastante para iniciar projetos. Foi da língua latina meus dois primeiros projetos de tradução (já havia casualmente traduzido os Sonetos I, V e X de Shakespeare em verso livre... minha tradução rimada de O Corvo é de 2010). Pensava tinha o bastante para traduzir o "Livro" de Catulo e a "De Bello Civili" (que conhecia apenas como Pharsalia) de Lucano. Devo ter iniciado a traduzir ambos simultaneamente, e fiz pouco mais de 2 versos e umas palavras soltas de cada, perdendo os arquivos com o texto latino e a tradução no início de 2010 (perdi também uma narrativa curta). Nunca mais voltei para esses textos, e lembrei apenas agora que penso em não mais traduzir do latim, e portanto resolvi publicar no blog todo o que fiz na língua (em breve um pouco de Marcial, versos dos imperadores, além de mais 4 linhas de Manílio... acho que é tudo).

Acho que pode ser um pouco instrutivo relatar minha experiência de não-tradução do Carmen 2 de Catulo e do início de Lucano. Além da ampla incompetência com a língua, eu tinha uma visão muito ingênua a respeito da tradição e transmissão dos textos clássicos, e uma reflexão pode ser útil.


Caio Valério Catulo (Gaius Valerius Catullus, ~84 a.C. - ~54 a.C.) foi um importantíssimo e influente poeta romano do período republicano. Como poeta maior da língua, seria natural que sua obra fosse amplamente lida e, por conta disso, preservada. Contudo, isso não foi o caso, e um grande exemplo da minha ignorância a respeito do poeta tinha a ver com a condição em que o "Livro" de Catulo chegou até nós.

Nenhum poeta latino chegou tão perto da destruição quase completa quanto Catulo. Os poetas "neotéricos", em geral, foram muito pouco preservados (Hélvio Cinna, por exemplo, sobrevive em apenas 14 fragmentos, totalizando menos de 20 versos), e Catulo, esquecido durante quase toda a idade média, sobreviveu miraculosamente graças a um único manuscrito encontrado em Verona (V) nos fins do século XIII ou início do XIV, contendo o moderno Corpus do poeta (um segundo manuscrito, T, é um testemunho independente, porém contém apenas o poema 62).

Para quem vive na era da impressão e, mais recentemente, na era do texto eletrônico, é difícil imaginar a natureza complicada da transmissão dos clássicos. Como aluno de graduação, eu acreditava que ao lermos a vulgata comum de um texto latino eu estaria lendo "certamente" a "obra original" do autor. Hoje em dia é até absurdo imaginar que eu já pensei assim, então quando "estabeleci" meu texto de Catulo (i.e. copiei e colei de algum lugar online) não tinha pensado a respeito da natureza do texto, ou suas implicações para a interpretação. De fato, eu não tenho bem certeza de como era tal texto.

Como disse, todo o corpus de poemas de Catulo provém de um único manuscrito (V) que temos por milagre. Esse manuscrito, contudo, era absolutamente horrendo: recensão mal feita, altamente corrupto e interpolado, mal escrito e mal dividido. Mesmo os primeiros copistas sabiam que o texto que eles tinham em mãos era bem ruim, de modo que um manuscrito antigo (G, copiado de X, copiado de V ou uma cópia deste) escreve um parágrafo apontando que não é o copista a quem se deve culpar pela má qualidade do texto, mas o texto já chegou corrupto nas mãos deste. Considerando a proximidade dos manuscritos, é bastante simples e razoável se chegar a leitura de V mesmo após o desaparecimento do texto, contudo, V é tão ruim que o único jeito de se chegar a algo minimamente legível é por uma série de adivinhações mais ou menos arbitrárias.

A primeira dificuldade já vem com a divisão dos poemas. V não deveria ter os poemas divididos, ou não deveria dividir a maioria, e as cópias dele apontam ao menos os poemas atualmente estabelecidos como 2, 2b e 3 como um único poema. Logo de início, já se percebe que algo está errado. O poema deve aparecer mais ou menos assim em V:

 Passer deliciae meae puellae,
quicum ludere, quem in sinu tenere,
qui primum digitum dare at petenti
ea acris solet incitare morsus,
-------- Catullus, V, 2.1-4
Que "qui" e "ea" estão errados é bem simples de notar. Mesmo os antigos copistas corrigem frequentemente "qui" para "cui" e "ea" para "et". Lachmann não acreditou na correção "cui", sugerindo "quoi", que foi seguido por dois outros editores da década de 20 (Kroll de 1922 e Lafaye de 1923), mas no geral todos os outros editores, mesmo os mais excêntricos, imprimem "cui". No entanto, o final do terceiro verso é ligeiramente mais problemático: "at petenti" parece inapropriado. Os primeiros copistas sabiam disso, e emendaram para "patenti", "ac appetenti" e "appetenti", que é a que muitas edições modernas aceitam. A outra solução é "adpetenti". Desconsiderando os dois erros claros, esse é um que não muda tanto o sentido, mas ainda assim parece impossível saber qual a forma original que foi usada no terceiro verso, se é que o erro não é mais profundo.

Contudo, o início parece litigar apenas em detalhes ("adpetenti" e "appetenti" significam o mesmo, embora não está fora de questão uma corrupção maior na construção)... Mais grave, contudo, é a passagem que em V deve-se ler:
et solaciolum sui doloris,
credo ut cum gravis acquiescet ardor,
tecum ludere[m] sicut ipsa possem
et tristis animi levare curas.
Tam gratum est mihi quam ferunt puellae
pernici aureolum fuisse malum,
quod zonam soluit diu negatam.
-------- Catullus, V, 2.7-13 [2b.1-3]
Aqui o problema mais visível é que a construção e concatenamento de ideias é impossível. Além de uma terceira pessoa no fim, comparado com a segunda do resto do poema, há essa alusão mitológica (Atalanta) parece vir de lugar nenhum. Desde edições muito antigas, "quod zonan soluit diu negatam" vem separada de "Lugete, o Veneres Cupidinesque," (como aparece em V, onde os versos são parte de um mesmo poema) como Carmen II e III, mas a relação entre essas duas partes de 2 é puramente especulativa. Hoje em dia, a maioria dos editores considera os versos 11-13 como parte do mesmo poema, mas com uma lacuna entre, enquanto outros alegam que deve ser parte de um poema diferente (Kroll, por exemplo). Uns poucos sustentam que os três versos fazem parte desse mesmo poema, mas para isso ser possível alguma corrupção mais grave aconteceu com os versos, de modo que uma emenda mais severa precisa ser feita. Vale lembrar que a tradução mais famosa do poema em português considera toda a passagem um mesmo poema:
A Morte do Passarinho

Gracioso passarinho,
Delícias da minha amada;
Tu que tens parte em seus brincos,
Em seu regaço pousada;

Que o dedinho lhe provocas,
E a quem ela, com prazer,
O dedinho logo entrega,
Excitando-te a morder!

Quando está de mim saudosa,
E então lhe dá na vontade
Buscar em brincos mais ternos
Alívio à dura saudade,

Por calmar, segundo eu cuido,
Do seu peito o amante ardor,
E dar um consolozinho
Solitária à sua dor,

Contigo brinca. Esses brincos
Não os poder eu brincar!
Ai! tivesse-te como ela,
Que me rira do penar!

O bem, o bem, passarinho,
Que eu te havia de querer!
O tal fruto douradinho
Que a moça do bom correr

O virgíneo esquivo cinto
Se diz ter soltado enfim,
Certo não lhe era mais grato
Do que tu o foras a mim!


Trad: José Feliciano de Castilho (não o Antônio, como se afirma por aí)
Isso é uma paráfrase bastante livre, mas é a mais famosa, e provavelmente a melhor, tradução do poema 2 de Catulo, para a vergonha de todos os que vieram depois. É verdade que Castilho tinha algumas vantagens comparado aos contemporâneos, a tendência a paráfrase o livrou de seguir à risca e literalmente um texto latino defectivo (mais a frente), o desrespeito ao metro deu uma fluidez natural ao verso. Lexicalmente, hoje em dia seria inaceitável vulgaridades como "os brincos" (as brincadeiras), "consolozinho", "douradinho" e "calmar", além do que se um tradutor moderno traduzisse "dolor" por "saudades" seria atacado por uns duzentos fanáticos, mesmo sendo bem provável ser essa a mais correta tradução dentro do contexto. Castilho também pôs o "Tam gratum est mihi quam" para o fim e entende como se referindo à segunda pessoa, o que parece demonstrar que ele sentia que "algo errado aí não estava certo", e a facilidade da paráfrase deu uma fluência notável ao poema. A preocupação com o texto ruim parece ter prejudicado mais os tradutores posteriores.


Além da divisão, temos um problema no verso 8: "credo ut cum gravis acquiescet ardor," lido em V não faz sentido e é sintaticamente problemático, já que "possem" no subjuntivo imperfeito governa o futuro do indicativo "acquiescet", além do "ut" aparentemente desnecessário. Aqui várias soluções "simples" já foram tentadas: "credo, tum gravis", "credo, ut tum gravis", "credo ut, cum gravis", "credo et tam gravis", "(credo tum gravis...)", e o que todas elas tem em comum é que não são satisfatórias nem no sentido, nem na sintaxe, geralmente exigindo a revisão de algum outro verso, e frequentemente mudando o sentido e interpretação geral do poema. Alguns como Goold fazem malabarismo com os versos para mantê-lo, enquanto Heyworth simplesmente remove o verso inteiro, mesmo sendo bem provável que o verso não seja interpolado (interpoladores tendem a acrescentar versos para remover as dificuldades, não para acrescentá-las). Ellis obelisa o verso, enquanto Eisenhut o chama de locus desperatus (passagem tão corrupta que é impossível chegar à verdade), e Mynors de locus nondum expeditus (passagem que ninguém explicou de maneira convincente). "Credo" apresenta suas próprias dificuldades, se o pardal (passer) é alívio à "saudade" (usando a solução de Castilho) da "amada" (puella), porque ele "acha" (credo) que alivia o "ardor" (e no que exatamente consiste a palavra ardor aqui... Castilho parece interpretar como "paixão", mas é bem razoável que seja "ira")?

Olzaniec, por exemplo, tenta ler os versos assim: "credo, cum gravis acquiescet ardor,/tecum ludere sicut ipsa posse/et tristis animi levare curas." que pode ser lido como "Creio que, quando a grave ira [dela] diminuir, possa [eu] brincar contigo e os tristes sentimentos possa acalmar". É uma leitura mais especulativa, mas ao menos tem algum sentido até o 10º verso.

Agora ao tentar dar coesão ao poema como um todo se precisa alterar a gramática do verso 9 e refazer algumas construções no poema. Para "tecum ludere[m] sicut ipsa possem" (fora a remoção do "m" que provavelmente estava no original e foi removida já por alguns copistas antigos), alguns corrigem a gramática com "posse" e "passer" (Housman). Heyworth usaa "posse" removendo o verso corrupto 7 e escrevendo o verso 8 como "ad solaciolum". Goold também usa "posse" e troca as relações entre os versos 7 e 8, escrevendo o oitavo verso como "sit solaciolum". João Ângelo segue a lição de Goold (na verdade, de Voss[ius]... cito Goold porque Ângelo atribui a emenda "posse" a ele, mas é importante que a leitura de Goold e de Ângelo da sintaxe e unidade do poema são diferentes... Também chamo atenção que Voss une os dois poemas como "prova" de que "passer" é o pênis de Catulo, e as 3 últimas linhas seriam referência à Atalanta praticando sexo oral ou masturbação [não estou inventando isso], de modo que Ângelo segue a sintaxe mas não a semântica) lendo "posse", sem fazer nenhuma outra alteração, porém traduz o poema de modo ligeiramente diferente, já que ele usa um infinitivo "poder" mais indeterminado; Castilho reconstrói, ao invés da potencialidade menciona o fato de "não os poder brincar".


Sem ter a menor ideia da natureza dos problemas do texto, e usando uma cópia que não me lembro, tentei traduzir na época e fiz dois versos e algumas palavras. Em 2009 e 2010 eu não tinha aquela preocupação com a forma, mas tentava já pegar o conteúdo "interpretativo" dos textos. Como já dito, os versos foram perdidos, mas eu lembro que a "tradução" era mais ou menos assim:

Pássaro, delícias de minha amada
Com quem gracejas, que tem no seio,
digitum = no dedo / dare = ousa ou provoca
E isso foi tudo. Performance vergonhosa, admito. E logo percebo que uma de minha escolha implica uma interpretação diferente da que eu tinha (passer = pássaro) e outra implica uma interpretação que era minha (ludere = gracejas), mas que não é convincente. Usei "pássaro" para traduzir "passer" unicamente pela similaridade sonora, mas isso aparentemente coaduna com aquela interpretação imbecil de alguns poetas (entre os quais Salvatore Quasimodo e Décio Pignatari) em decidir que um pardal não é um animal de estimação adequado. Mesmo se desconsiderarmos a tradicional associação do pardal com Vênus, o στρουθοι no poema de Safo (fr.1), ainda resta o fato de que nada impede um animal de estimação como um pardal. No caso de gracejas, eu estava lendo "ludere" de modo sexual (fazer "gracinha", "gracejar", no sentido de fazer sexo), que remonta ao debate um pouco menos estúpido de se o "passer" do poema referir ao pênis de Catulo. Enquanto o primeiro caso ("passer" não sendo um pardal, mas um outro pássaro "melhor") pode ser simplesmente tratado como imbecilidade sem base, o segundo é mais complicado e não tenho nem competência necessária para debater. O caso é que hoje em dia essa interpretação não me convence mais.



Sem ter muita noção das minhas próprias limitações, também havia decidido traduzir "na íntegra" o poema "Sobre a Guerra Civil" (De Bello Civili), mas que conhecia apenas pelo título popular de Farsália (Pharsalia). Não conhecia a tradução do Filinto Elíseo, mas curiosamente minha versão dos dois primeiros versos ficou um tanto parecida. Lucano tem uma história textual complicada (como todos os clássicos) por outras razões, mas sobreviveu em vários manuscritos diferentes. Acredito que o início do poema não tem grandes problemas textuais pontuais, exceto pela possibilidade (não convincente) de que os 8 primeiros versos foram adicionados por um editor, e o poema começa com "Quis furor" (ou tinha um começo distinto que foi substituído).
Bella per Emathios plus quam ciuilia campos
iusque datum sceleri canimus, populumque potentem
in sua uictrici conuersum uiscera dextra
cognatasque acies[,] et[,] rupto foedere regni
certatum totis concussi uiribus orbis
in commune nefas, infestisque obuia signis
signa, pares aquilas et pila minantia pilis.
 Minha performance foi algo como isso:
As guerras mais que civis nos Emátios campos
e julgo dado ao ímpio canto, e o povo potente
em sua [...]
dextra = destra / uiscera = viscera
cognatasque acies = e o exército parente
Apenas para apresentar uma versão, a tradução do Filinto Elíseo:
Guerras mais que civis, no Emátio campo,
O jus dado à maldade canto, e o povo
Poderoso, que contra as entranhas suas
Houve empregado a vingadora destra.
Co'as forças juntas do abalado mundo,
Hostes parentas, roto o nó do império,
Para um total desastre, combateram:
Pendões contra pendões, águias contra águias,
Dardo no encontro hostil dardo ameaça.
 A editora da Unicamp, em 2016, publicou a primeira metade do poema em edição Bilíngue, com tradução, introdução e notas de Brunno V. G. Vieira. Por hora, não temos a segunda parte, os livros VI-X, mas ao que tudo indica é apenas uma questão de tempo. Gostaria de chamar também a atenção para o fato de que Bocage traduziu uma passagem descritiva da Farsália, intitulada "O Bosque de Marselha" (do Livro III), que pode ser lida aqui.



Edit 11/12/2019: Esqueci de mencionar outra particularidade do manuscrito Catuliano. A última palavra do manuscrito V é "negatam", mas a grande maioria dos editores escreve "ligatam" (incluindo João Ângelo, que traduz "zonam ... diu ligatam" para "o cinto atado há muito", ao invez de "negatam"="negado"... o cinto de Castilho é "esquivo", que talvez indique uma leitura diferente de "negatam" [como "rejeitado"?] ou improviso). O texto "quod zonam soluit diu ligatam" é a forma que era conhecida por Prisciano (Inst. 1.22) no século VI.

Também acrescento a tradução de Castilho para o início da Farsália:
Guerras mais que civis no emátio campo;
O crime alçado a jus; um grande povo,
que as armas triunfais crava em si próprio;
Hostes parentas; alianças rotas;
O globo todo em bélica vertigem
Para comum flagício; em campo e campo
Signas, águias iguais; pilos os mesmos,
A florear, embaterem-se, a esgrimirem;
Eis de meus versos o tremendo assunto!
Trad: José Feliciano de Castilho/ Ed: Renata Gurgel de Oliveira
Uma outra tradução do livro 1 pode ser achada aqui. Gostaria de saber porque diabos tanta gente se interessou por Lucano ao mesmo tempo.

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Santo Oriêncio - Commonitorium, V.1-4

Santo Oriêncio, bispo de Auch (não confundir com Santo Oriêncio, o mártir) foi um poeta cristão do Século V, durante a transição da época clássica para a época medieval, período conhecido como antiguidade tardia. No geral, os escritores tardios são muito pouco lidos e estudados, contudo, no caso de Santo Oriêncio, a negligência talvez seja um tanto maior. Os poucos comentaristas "modernos" da obra do autor admitem que Oriêncio não é um autor tão grandioso como os autores da era dourada da latinidade, porém dentre os escritores da antiguidade tardia está entre os melhores. Enquanto alguns escritores como Nono e Dracôncio são relativamente mais estudados por seus méritos (em termos relativos) histórico-literários, e Paulino de Nola pela sua teologia, e Prudêncio um tanto por ambas as razões (embora Prudêncio não fosse teólogo), Oriêncio vem sido amplamente ignorado tanto pelos estudos patrísticos quanto pelos estudos literários.

O poeta Santo Oriêncio merece essa negligência, ou merece ser lido atualmente? Essa é uma resposta difícil, tanto pelo fato de que meu latim é uma droga, quanto pelo fato de que a sociedade do início do XXI parece um tanto impaciente e implicante com tudo o que tem haver com o cristianismo, de modo que não apenas a poesia religiosa está em ampla decadência como críticos podem olhar para clássicos recentes da literatura (como os poemas de Christina Rossetti) e do cinema (como Ben Hur) e questionarem seu status como clássicos em bases de que são "pios" demais. A ideia de um poema didático do V que conta os desafios para se alcançar os "céus" (no sentido do paraíso cristão) me parece, contudo, interessante.

Lastimavelmente, meu latim é tão ruim que eu não consigo ler mais de quatro linhas seguidas sem minha cabeça explodir. A "melhor edição moderna" ainda é a do Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum Latinorum (1888, Vol. XVI: "Poetæ Christiani minores", I, 191-261. Acesso no link ao lado), editado por Ellis em 1888. Outra edição popular mas que unicamente trás o texto do manuscrito é a do Patrologia Latina (Vol. 61. Oriêncio aparece ao lado de dois outros poetas, Paulino de Nola e Auspício de Toul). Minha tradução é feita em alexandrinos arcaicos (6' + 6' sílabas, na contagem moderna), seguida de uma versão "quebrada" (6' + 4') no verso seguinte; talvez não seja a melhor forma de verter o dístico elegíaco em português, mas, bem, eu não ligo.


Representação da Abadia de Auch. Especula-se que Oriêncio tenha sido bispo aí.

Orientius - Commonitorium, Liber Primus, V.1-4

Quisquis ad aeternae festinus praemia uitae,
perpetuanda magis quam peritura cupis,
quae caelum reseret, mortem fuget, aspera uitet,
felici currat tramite, disce uiam.


A melhor a mais moderna edição do poeta tem mais de 130 anos de idade

Santo Oriêncio - Commonitorium, V. 1-4

Aqueles que, ansiosos, dos dons da vida eterna
E mais perpétuas, que perenes, querem,
Que redescobre os céus, e põe a morte em fuga,
percorre a rota alegre, aprende a via.

Trad: Raphael Soares

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Como resenhar a crítica? Uma resenha de A. E. Housman


Eis aqui um texto que achei interessante por diversas razões. A. E. Housman (1859-1936), poeta vitoriano bastante popular (A Shropshire Lad é de 1896, com quase 100 edições e diversas musicalizações já em 1911) e também scholar clássico de prestígio comentando sobre uma publicação acadêmica monumental para a época, o The Cambridge History of English Literature (em 14 volumes), que basicamente é, como o próprio intitula, um comentário Georgiano sobre a literatura vitoriana (os dois últimos volumes). Por motivos óbvios o livro não menciona Housman (nenhum autor vivo é tratado, de modo que a geração mais "jovem" tratada é dos contemporâneos de Housman que morreram antes), de modo que o autor da resenha pode tratar do livro sem lidar com interesses pessoais.

Há muito mais interesse a se tirar da publicação: Housman é bem sagaz mesmo em seus equívocos (e meus comentários seguem abaixo), e já nos introduz a diferença que é entre a leitura dos "georgianos" e a "moderna" (a nossa, em certo sentido, mas que provavelmente será sucedida por uma "mais-moderna"), nos aponta diversos vícios de crítica, que ainda grassam nas publicações crítico-acadêmicas e um apelo para olharmos para a crítica, em suas qualidades e defeitos, vendo o que ela realmente é. Um apelo à sanidade, de certo modo. Também uma boa lição do que é e o que deve ser a crítica e comentários sobre a crítica.

Os dois volumes tratados:
The Cambridge History of English Literature Vol. 13
The Cambridge History of English Literature Vol. 14

O ensaio foi originalmente publicado em The Cambridge Review (23 May 1917), p. 358. O meu texto provém de Selected Prose of A. E. Housman (uma cópia pode ser alugada aqui, e outra aqui.)



A. E. Housman - Uma História Georgiana da Literatura Vitoriana (The Cambridge History of English Literature, Vols. XII e XIV)

Estes dois volumes completam a Cambridge history of English literature e abarcam aquele período que é comumente e quase precisamente chamado era Vitoriana. Os nomes inclusos variam de Carlyle, que nasceu antes de Keats e começou a escrever no reinado de George IV, a Meredith e Swinburne, que sobreviveram e, ó dor, persistiram escrevendo durante maior parte do reinado do Rei Eduardo; nas todos os principais nomes são de homens que escreveram sua principal obra entre 1837 e 1901. Newman não está aqui, mas provavelmente encontrou um espaço anterior em algum capítulo consagrado à religião: os vivos também são ausentes, e o mais jovem escritor de mérito que é mencionado é Francis Thompson, nascido em 1859*.

A era Vitoriana na literatura tem sido criticada, como de costume, por "ces enfants drus et forts d'un bon lait qu'ils ont sucé, qui battent leur nourrice"*, e como muitas outras eras, foi assiduamente depreciada por alguns de seus próprios ornamentos principais. "É ímpar que os últimos 25 anos", escreve Macaulay em 1850, "dificilmente produziu um volume que será lembrado em 1900"; e em 1855 "a esterilidade geral, o estado da literatura miseravelmente enervado" ainda prevalecia. Mas agora é seguro dizer que o reinado da Rainha foi uma grande era das letras Inglesas, ainda mais notável porque sucedeu quase sem interrupção uma maior*. França nos mesmo período produziu uma colheita talvez tão boa quanto a Inglaterra, mas o campo seguiu alqueivado por uma geração inteira. Uma grande era literária exauriu a Alemanha; uma era literária nem sequer grande exauriu a América; mas nunca, desde a derrota da Armada, uma grande literatura deixou de florescer e renovar-se na ilha que é terra da ineficiência.

Se já chegou o tempo de pesar um autor Vitoriano contra o outro, ou uma obra contra outra do mesmo autor, não é tão certo.
Os sonoros quartos de Southey já são um pouco melhor que madeira:‒e as ricas melodias de Keats e Shelley,‒ e a fantástica ênfase de Wordsworth,‒e o pathos plebeu de Crabbe, estão derretendo rapidamente para além de nosso campo de cisão. Os romances de Scott têm extinguindo sua poesia. Mesmo os esforços de Moore estão desaparecendo em distância e obscuridade, exceto onde tem se casado com música imoral; e a estrela flamejante do próprio Byron se recende de ser espaço de orgulho.... Os dois que mais longamente suportaram tal rápido murchar da láurea, e com menores marcas de decadência em seus ramos, são Rogers e Campbell.*
Assim escreveu o primeiro crítico profissional de seu tempo, quando a maior era da literatura inglesa acabara de chegar ao fim; e tal julgamento reimprimiu em 1843, e outra vez em 1846, mais de vinte anos do final da era e quase cinquenta de seu começo. Mas aqui há uma razão pela qual podemos esperar julgar escritores Vitorianos menos perversamente que Jeffrey aparenta ter julgado seus predecessores. Jeffrey era um pouco mais jovem que Wordsworth, e formou seu gosto antes do ano de 1798, quando o Lorde criou uma nova coisa na terra. Todos os críticos que contribuem para estes volumes foram criados na tradição Vitoriana, e muitos deles nasceram muito depois que os autores a eles designados para a crítica. A era Vitoriana, ademais, não introduziu grande e desconcertante mudança; o que fez foi desenvolver e modificar tendências existentes, com algum progresso e alguma recaída*. A pausa após 1824 não foi nada, exceto uma escassez momentânea de grandes escritores, nenhum prelúdio a qualquer maré de revolução ondulando sob a respiração de um Wordsworth, ou carregando um Dryden em sua crista. As mais salientes novidades da literatura vitoriana não foram duráveis e agora perderam voga*; exceto que em alguns anos um romancista ou dois ainda pode ostentar um terno de buckram que Meredith encomendou de seu alfaiate para disfarçar o fracasso de seu gênio. Nenhum autor do período exerceu a influência permanente de Keats ou Scott. Browning não teve sucessores, Tennyson não teve um que nos interessa*, e o esforço de Carlyle em naturalizar, na Inglaterra, o estilo de Jean Paul Richter está muito longe da realização de seu desejo em substituir um Hindenburg pela constituição Britânica. Nos anos sessenta pareceu, de fato, que houvesse surgido um bando de escritores que lançariam a poesia em uma nova carreira; mas o tempo mostrou que eles estavam navegando em uma água represada, não achando um canal para o fluxo principal, e em vinte anos todo o coração se foi junto da empresa. As modas desse interlúdio já são tão antigas que o Sr. Gilbert Murray pode adotá-las em sua interpretação de Eurípides; e receberam agora aprovação acadêmica, que é a segunda morte.

É provável que estes volumes refletem com devida fidelidade a estima atual dos autores Vitorianos e suas obras. Se a posteridade se surpreender em encontrar dez páginas sobre William Morris e menos que duas sobre Coventry Patmore*, ela também será instruída; pois a escala inquestionavelmente corresponde a opinião que prevalece em 1916 e mesmo 1917. Mas uma lista de "Poetas Menores" composta de Dobell e Francis Thompsom assim como Patmore pode provocar algum questionamento mesmo agora, se vier a mente que "Menores" significa menores que Clough, James Thomson e O'Shaughnessy*. Que Carlyle tenha vinte e duas páginas enquanto Macaulay oito reflete mais, talvez, a estima de três anos atrás, desde que a reputação de Carlyle foi trivialmente prejudicada por nossas relações temporais com a terra espiritual dele*. E a posteridade provavelmente estará errada se inferir que a maioria dentre nós pensa que basta duas páginas para Stevenson em uma obra em que George Gissin tem mais de sete, ou uma página e pouco o bastante para Pater, um verdadeiro homem das letras, embora não um grande, em uma obra em que Froude, que foi inteiramente metal básico, teve três e meia.

A crítica dos vinte e quatro contribuidores é sóbria, e na maior parte é competente, mas nem todo assunto é judiciosamente distribuído. Por exemplo, um escritor que é qualificado para tratar Thackeray pode estar mal arranjado com "Os Rossettis, William Morris, Swinburne e outros". O capítulo sobre Tennyson, embora um tanto toscamente escrito, é talvez o melhor, e faz igual justiça tanto à grandeza quanto à mesquinharia do tema. O pior capítulo, sem nenhum talvez, é aquele sobre literatura Anglo-Irlandesa, em que o pensamento é tão flácido quanto a escrita.
Mas agora parece bem certo, na opinião de Windisch e outros estudiosos celtas, incluindo Quiggin, que alguns dos rapsodistas galeses aparentemente devem um tipo de aprendizado com seus irmãos Irlandeses.
Na mesma página é sugerido que Shakespeare deve ter tido o que Matthew Arnold chama sua nota de magia celta "de segunda mão, através de Edmund Spencer, ou seu amigo Dowland, o alaudista, que, se não foi Irlandês, tinha uma associação Irlandesa". Vamos todos buscar a sociedade do Sr. A. P. Graves e então talvez devamos escrever coisas como "Narcisos/ Que ousam vir antes da andorinha, e tomam/Os ventos de Março com beleza”*; embora seja verdade que o próprio Sr. Graves, como Dowland e Spenser, não o façam.

Em um interessante capítulo sobre "mudanças na língua desde os tempos de Shakespeare" é dito que o temor da degeneração, expressa por Johnson no prefácio de seu dicionário, não fora ainda justificado. Mas o foi; e estes volumes são uma parte da justificação. "Em prosa," escreveu Coleridge um século atrás, "eu duvido sequer ser possível preservar nosso estilo não mesclado pela viciosa fraseologia que nos encontra em todo canto. Nossas correntes chacoalham, mesmo quando reclamamos delas". E a língua inglesa, desde a escrita de Coleridge, continuou a deteriorar em fibra. Existe, pode existir, palavra como purposive? Existe: foi inventada por um cirurgião em 1855; e ao invés de ser mantida na estante superior de um museu anatômico, é exibida nestes dois volumes. E o declínio não está somente na nossa língua, mas em nossa habilidade de usá-la. Antes da metade do século dezoito a escrita de bom inglês cessou de vir naturalmente, mas foi amplamente, e de modo bem sucedido, praticada como arte. O estoque comum de palavras já estava empobrecido e contaminado, mas havia uma alta e estrita tradição de elegância em estilo. Isso se extinguiu, e nossa alvenaria não é melhor que nossos tijolos. Agora é possível (não, usual), gastar uma vida inteira no estudo da literatura sem sequer aprender o seu feitio, e nenhum leitor abrindo esse livro irá sequer esperar achar a mão do artesão subjugada ao que opera. Duzentos anos atrás, John Dennis era um notório jumento; mas nenhum capítulo aqui se compara ao seu Remarks upon Cato pela raça e sabor da dicção, ou pela energia e concisão do estilo. Soame Jenys era uma velhota e seu vocabulário era tão banal como podia ser; e ainda, porque ele escreveu no século dezoito, pôs palavras e pensamentos pobres em sentenças bem formadas. Mas o Inglês escrito é agora inerte e inorgânico: sem caule e folha e flor, sem alvenaria acabada e bem conectada, mas uma borra de argamassa mal-temperada. As seguintes passagens, é justo dizer, não são exemplos típicos da obra; mas a aparência delas em uma história da literatura é notável e significante.
Não houve, contudo, tanta diferença nesse caso entre o público e, a princípio, uns tantos, mas, recentemente, quase todos, críticos como aconteceu no caso de Lewis Morris, que, também, foi tornado cavaleiro depois.
O toque um tanto epiceno (reconhecido logo depois de ter sido reconhecido por alguns sob o pseudônimo de Fiona Macleod, bem guardado por um longo tempo) de William Sharp não pode receber extensivo comentário aqui.
O editor do quase acabado (quarto) volume deixado para trás por Gairdner de suas Lollardy and the Reformation considera que, ao escrever a seção em The History of the English Church, dos quais a obra tardia de Gairdner era um alargamento inacabado, ele (embora já em avançada idade) acreditava estar cumprindo um dever; e ele, certamente, tinha a causa da verdade em seu coração.
Desde então, em 1786, ele tinha (embora assuntos financeiros nunca foram muito de seu gosto) em uma fala de menina admirada atacado os tratados comerciais de Pitt, ele nunca vacilou, mesmo nos dias do eclipse do partido whig, ou naqueles de emancipação católica (em que apresentou um discurso que Stanley (Derby) disse que ele preferiria ter feito que quatro de Brougham) e de reforma.
Nem emendam-se as coisas espetar em ramos de ornamento.
Tudo... paga espontânea honra a celebração de Swinburne de seus ideais de liberdade e justiça, vestida em música que é levada sobre as asas do vento e geme e se alegra, agora alto em deleite de sua beleza e força, e agora ameaçadora ou lamuriosa em sua raiva ou tristeza, como as vozes do mar.
Uma retórica pueril assim, como crítica, é nada. É como o que o Daily Chronicle disse quando Matthey Arnold morreu; e que vale mencionar para aqueles que ainda não conhecem.
Sua música montada além com pensamentos brilhantes, do mesmo modo que a cotovia sacode as gotas de orvalho de sua asa enquanto canta nos "Portões do Céu", ou como um ribeiro da montanha carregando muitas flores silvestres em suas ondulações, sua melodia fluiu alegremente. Algumas vezes a música dele cresce como a daquele oceano misterioso lançando pérolas enquanto se revolve.
O valor de uma obra como repertório de informação não é afetada pela escrita tosca e nem mesmo por julgamentos questionáveis, e esta é certamente uma ampla e provavelmente confiável coleção de fatos. Existe contudo um departamento em que não se pode falar muito. Sobre quais princípios e de quais materiais a bibliografia foi compilada, está longe de ser claro; mas não parece que seja o Dictionary of National Biography ou o catálogo geral da University Library foi consultado. Completude não deve ser esperada ou mesmo desejada num livro desse alcance; mas a informação fornecida é, em muitos casos, nem adequada nem precisa, e mesmo a memória de um leitor familiarizado com o período irá permitir corrigir erros e reparar omissões. Aqui vão três entradas na "Tabela de Datas Importantes", vol. xiii, p.576. '1863 Book of Nonsense de Lear': a data correta é 1846. '1877 Golden Treasure de Palgrave': é de 1861. '1908 The Hound of Heaven de Thompson': é de 1893, e Thompson morreu em 1907.

Trad: Raphael Soares


Notas:

* mais jovem escritor de mérito que é mencionado é Francis Thompson, nascido em 1859: Mesmo ano de nascimento de Housman, sendo de fato mais velho que este (Thompson nasceu em dezembro, e Housman em Março). Vale notar que embora o livro não possa ter grande conhecimento da poesia de Hopkins (Poems of Gerard Manley Hopkins é de 1918, do ano seguinte à publicação do último volume), o livro o trata como um poeta menor, usando apenas uma nota de rodapé entre Lang e as formas francesas (antes de Henley) na página 210.

* "ces enfants drus et forts d'un bon lait qu'ils ont sucé, qui battent leur nourrice": frase de Jean de lá Bruyère. Significa: "estas crianças grandes e fortes por conta do bom leite que beberam, e que espancam suas amas de leite".

* ainda mais notável porque sucedeu quase sem interrupção uma maior: Por "quase sem interrupção" presume-se que Housman fale de uma interrupção inferior a uma geração. Adiante ele reconhece que houve uma, mas as datas parecem um tanto confusas na cabeça de Housman. Ele deve ter como marco algo como a morte de Byron (1824) e pelo menos Poems (1844) de Tennyson, se é que não assume uma data posterior. 20 anos inteiros separam os dois eventos, de modo que fico meio receoso de dizer "quase sem interrupção". Considerando que Victor Hugo Morreu em 1885 (de modo que os franceses ao menos ainda tinham Hugo nos anos 70 e 80) e desde lá a literatura francesa tem um desenvolvimento constante, a pausa pós-romântica inglesa parece bem mais longa.

são Rogers e Campbell: Passagem de Francis Jeffrey, Lord Jeffrey, crítico literário escocês (1773-1850). É bem difícil estar mais errado que isso.

* A era Vitoriana, ademais, não introduziu grande e desconcertante mudança; o que fez foi desenvolver e modificar tendências existentes, com algum progresso e alguma recaída: Para nós é difícil engolir um argumento como esse, considerando que toda "renovação desconcertante" (seja a romântica, a moderna e possivelmente a pós moderna) é, em algum grau, "apenas" desenvolver e modificar tendências existentes: até mesmo a mais radical de todas as revoluções literárias, a passagem do medieval tardio para o renascimento, toma como base práticas literárias existentes. Contudo, devemos também lembrar que era o pensamento padrão da época, que não apenas considerava o romantismo uma revolução muito maior do que é, como considerava o período vitoriano algo bem menos inovador do que pensamos atualmente. Essa ideia era comum, e contaminou a crítica moderna, que visava e superestimava a "inovação" (seja lá o que significava para eles) e a "nova crítica", que via fraqueza nos procedimentos e formas literárias do período. Apenas como uma nota histórica, foi apenas em 1957 (com o livro The Poetry of Experience: The Dramatic Monologue in Modern Literary Tradition de Robert Langbaum) que houve uma profunda alteração no modo como vemos a literatura do período, num contínuo de inovações que antecede o romantismo e atravessa o período vitoriano e moderno.

* As mais salientes novidades da literatura vitoriana não foram duráveis e agora perderam voga: Duvidoso, embora tenho de verificar datas para confirmar se, no início do período georgiano, isso mantém-se como verdadeiro. O "monólogo dramático", "nonsense", "simbolismo sonoro", "romance em verso", o "longo poema fragmentário" e a "colagem/medley" são todas "salientes novidades da literatura vitoriana" que permanecem até hoje como formas padrões extremamente usadas na literatura da língua, embora eu realmente não me lembre tanto de longos poemas e monólogos dramáticos na literatura georgiana, enquanto até mesmo a ultra-sonoridade swinburniana parece ter agradado muito mais o paladar americano. Ao menos os principais escritores georgianos (Edward Thomas, os Sitwell e mesmo o próprio Housman tardio) não parecem imitar as inovações de seus avós. Talvez essas esquisitices soassem muito ultrapassadas para os leitores dos anos 10, mas muito moderna para o dos 20. Até mesmo a mais estrambólica prática poética vitoriana, as traduções browningianas "grotescas" (Prometeus de EBB, Agamemnon de Robert) e mesclas de material traduzido e autoral (Balaustion's Adventure, Aristophanes' Apology) ganhou nova vida no século XX (penso aqui em An Oresteia e Antigonik de Anne Carson, como exemplo de ambas as práticas, mas a obra da Carson como toda leva essas práticas a outro nível).

* Browning não teve sucessores, Tennyson não teve um que nos interessa: Aqui é difícil estimar o quanto esse julgamento é errado em 1917. Tirando o fato de que Dante Gabriel é um sucessor de ambos, o que por si só desqualifica o comentário, algumas coisas ainda devem chamar atenção. Primeiro que os mais notáveis sucessores de ambos vieram depois ou em outra língua: Baudelaire e os Simbolistas são tennysonianos via Poe, enquanto Eliot e Auden são legítimos herdeiros de Tennyson mas posteriores ao período Georgiano, enquanto Browning influenciou Gide, Borges, Pound, Larkin e por aí vai; Fernando pessoa foi grande leitor de ambos, e tomou suas lições de ambos. Mas mesmo para aquela época, há ainda correções. Browning teve muitos sucessores: Meredith, Wilde e James na prosa literária, Lubbock e Chesterton na crítica, Gilbert & Sullivan e Bernard Shaw no drama, e o que todos tem em comum é que ou não são poetas ou não são browningianos em seus versos; por alguma razão a influência de Browning fora imediatamente gigantesca entre os prosadores, mas nenhum poeta tentou copiar seu estilo, exceto como paródia (John Jones's Wife de Swinburne, parodiando James Lee's Wife de Browning), e não devia ser aparente para muitos leitores da época o débito de Yeats. Quanto a Tennyson, não sei se Housman ignora a influência sobre os americanos Longfellow, Poe e Withman, ou considera os três como não relevantes. As imitações de Lear e Swinburne do estilo de Tennyson deviam contar também. O fato é que a influência de Browning e Tennyson não é inferior a de seus antecessores (Shelley e Keats), mas se projeta de modo bem particular.

* Se a posteridade se surpreender em encontrar dez páginas sobre William Morris e menos que duas sobre Coventry Patmore: Exatamente no ponto. A posteridade se surpreende, ao menos quanto à proporção.

* significa menores que Clough, James Thomson e O'Shaughnessy: Quem diabos é O'Shaughnessy???

* prejudicada por nossas relações temporais com a terra espiritual dele: A "terra espiritual" de Carlyle é a Alemanha, e as relações temporais da ocasião a primeira guerra mundial, iniciada em 1914 e que ainda estava acontecendo quando Housman escrevia (o texto é de 1917, enquanto a guerra terminaria em 1918).

* "Narcisos/ Que ousam vir antes da andorinha, e tomam/Os ventos de Março com beleza”: William Shakespeare, Winter's Tale, IV, 3. Traduzido por Carlos Alberto Nunes (Conto de Inverno) como: "Os narcisos que a aparecer se atrevem antes das andorinhas, e que os ventos de março enleiam no seu grande encanto".