segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Duas frustrações pueris - não-traduções de Catulo e Lucano

10 anos atrás, em 2009, estava iniciando o curso de Letras na Universidade Federal do Pará. No primeiro semestre de curso estudei meu primeiro nível de Latim. A professora da disciplina, Zilda Paiva, não era latinista ou classicista (de fato, ela é da linguística aplicada), e portanto era uma amadora, mas uma amadora no seu sentido mais puro: alguém que ama. Fiquei apaixonado pela disciplina e pela língua latina, que já tinha algum interesse antes mas não a ponto de querer aprender. De lá para cá colecionei textos e materiais da língua, e aos poucos tentei aperfeiçoar-me nela, sem exatamente grande sucesso.

Com apenas uma disciplina e apenas uma cópia do Gradus Primus I e de um mini-léxico latino, o meu eu de 10 anos ingenuamente achou que seria o bastante para iniciar projetos. Foi da língua latina meus dois primeiros projetos de tradução (já havia casualmente traduzido os Sonetos I, V e X de Shakespeare em verso livre... minha tradução rimada de O Corvo é de 2010). Pensava tinha o bastante para traduzir o "Livro" de Catulo e a "De Bello Civili" (que conhecia apenas como Pharsalia) de Lucano. Devo ter iniciado a traduzir ambos simultaneamente, e fiz pouco mais de 2 versos e umas palavras soltas de cada, perdendo os arquivos com o texto latino e a tradução no início de 2010 (perdi também uma narrativa curta). Nunca mais voltei para esses textos, e lembrei apenas agora que penso em não mais traduzir do latim, e portanto resolvi publicar no blog todo o que fiz na língua (em breve um pouco de Marcial, versos dos imperadores, além de mais 4 linhas de Manílio... acho que é tudo).

Acho que pode ser um pouco instrutivo relatar minha experiência de não-tradução do Carmen 2 de Catulo e do início de Lucano. Além da ampla incompetência com a língua, eu tinha uma visão muito ingênua a respeito da tradição e transmissão dos textos clássicos, e uma reflexão pode ser útil.


Caio Valério Catulo (Gaius Valerius Catullus, ~84 a.C. - ~54 a.C.) foi um importantíssimo e influente poeta romano do período republicano. Como poeta maior da língua, seria natural que sua obra fosse amplamente lida e, por conta disso, preservada. Contudo, isso não foi o caso, e um grande exemplo da minha ignorância a respeito do poeta tinha a ver com a condição em que o "Livro" de Catulo chegou até nós.

Nenhum poeta latino chegou tão perto da destruição quase completa quanto Catulo. Os poetas "neotéricos", em geral, foram muito pouco preservados (Hélvio Cinna, por exemplo, sobrevive em apenas 14 fragmentos, totalizando menos de 20 versos), e Catulo, esquecido durante quase toda a idade média, sobreviveu miraculosamente graças a um único manuscrito encontrado em Verona (V) nos fins do século XIII ou início do XIV, contendo o moderno Corpus do poeta (um segundo manuscrito, T, é um testemunho independente, porém contém apenas o poema 62).

Para quem vive na era da impressão e, mais recentemente, na era do texto eletrônico, é difícil imaginar a natureza complicada da transmissão dos clássicos. Como aluno de graduação, eu acreditava que ao lermos a vulgata comum de um texto latino eu estaria lendo "certamente" a "obra original" do autor. Hoje em dia é até absurdo imaginar que eu já pensei assim, então quando "estabeleci" meu texto de Catulo (i.e. copiei e colei de algum lugar online) não tinha pensado a respeito da natureza do texto, ou suas implicações para a interpretação. De fato, eu não tenho bem certeza de como era tal texto.

Como disse, todo o corpus de poemas de Catulo provém de um único manuscrito (V) que temos por milagre. Esse manuscrito, contudo, era absolutamente horrendo: recensão mal feita, altamente corrupto e interpolado, mal escrito e mal dividido. Mesmo os primeiros copistas sabiam que o texto que eles tinham em mãos era bem ruim, de modo que um manuscrito antigo (G, copiado de X, copiado de V ou uma cópia deste) escreve um parágrafo apontando que não é o copista a quem se deve culpar pela má qualidade do texto, mas o texto já chegou corrupto nas mãos deste. Considerando a proximidade dos manuscritos, é bastante simples e razoável se chegar a leitura de V mesmo após o desaparecimento do texto, contudo, V é tão ruim que o único jeito de se chegar a algo minimamente legível é por uma série de adivinhações mais ou menos arbitrárias.

A primeira dificuldade já vem com a divisão dos poemas. V não deveria ter os poemas divididos, ou não deveria dividir a maioria, e as cópias dele apontam ao menos os poemas atualmente estabelecidos como 2, 2b e 3 como um único poema. Logo de início, já se percebe que algo está errado. O poema deve aparecer mais ou menos assim em V:

 Passer deliciae meae puellae,
quicum ludere, quem in sinu tenere,
qui primum digitum dare at petenti
ea acris solet incitare morsus,
-------- Catullus, V, 2.1-4
Que "qui" e "ea" estão errados é bem simples de notar. Mesmo os antigos copistas corrigem frequentemente "qui" para "cui" e "ea" para "et". Lachmann não acreditou na correção "cui", sugerindo "quoi", que foi seguido por dois outros editores da década de 20 (Kroll de 1922 e Lafaye de 1923), mas no geral todos os outros editores, mesmo os mais excêntricos, imprimem "cui". No entanto, o final do terceiro verso é ligeiramente mais problemático: "at petenti" parece inapropriado. Os primeiros copistas sabiam disso, e emendaram para "patenti", "ac appetenti" e "appetenti", que é a que muitas edições modernas aceitam. A outra solução é "adpetenti". Desconsiderando os dois erros claros, esse é um que não muda tanto o sentido, mas ainda assim parece impossível saber qual a forma original que foi usada no terceiro verso, se é que o erro não é mais profundo.

Contudo, o início parece litigar apenas em detalhes ("adpetenti" e "appetenti" significam o mesmo, embora não está fora de questão uma corrupção maior na construção)... Mais grave, contudo, é a passagem que em V deve-se ler:
et solaciolum sui doloris,
credo ut cum gravis acquiescet ardor,
tecum ludere[m] sicut ipsa possem
et tristis animi levare curas.
Tam gratum est mihi quam ferunt puellae
pernici aureolum fuisse malum,
quod zonam soluit diu negatam.
-------- Catullus, V, 2.7-13 [2b.1-3]
Aqui o problema mais visível é que a construção e concatenamento de ideias é impossível. Além de uma terceira pessoa no fim, comparado com a segunda do resto do poema, há essa alusão mitológica (Atalanta) parece vir de lugar nenhum. Desde edições muito antigas, "quod zonan soluit diu negatam" vem separada de "Lugete, o Veneres Cupidinesque," (como aparece em V, onde os versos são parte de um mesmo poema) como Carmen II e III, mas a relação entre essas duas partes de 2 é puramente especulativa. Hoje em dia, a maioria dos editores considera os versos 11-13 como parte do mesmo poema, mas com uma lacuna entre, enquanto outros alegam que deve ser parte de um poema diferente (Kroll, por exemplo). Uns poucos sustentam que os três versos fazem parte desse mesmo poema, mas para isso ser possível alguma corrupção mais grave aconteceu com os versos, de modo que uma emenda mais severa precisa ser feita. Vale lembrar que a tradução mais famosa do poema em português considera toda a passagem um mesmo poema:
A Morte do Passarinho

Gracioso passarinho,
Delícias da minha amada;
Tu que tens parte em seus brincos,
Em seu regaço pousada;

Que o dedinho lhe provocas,
E a quem ela, com prazer,
O dedinho logo entrega,
Excitando-te a morder!

Quando está de mim saudosa,
E então lhe dá na vontade
Buscar em brincos mais ternos
Alívio à dura saudade,

Por calmar, segundo eu cuido,
Do seu peito o amante ardor,
E dar um consolozinho
Solitária à sua dor,

Contigo brinca. Esses brincos
Não os poder eu brincar!
Ai! tivesse-te como ela,
Que me rira do penar!

O bem, o bem, passarinho,
Que eu te havia de querer!
O tal fruto douradinho
Que a moça do bom correr

O virgíneo esquivo cinto
Se diz ter soltado enfim,
Certo não lhe era mais grato
Do que tu o foras a mim!


Trad: José Feliciano de Castilho (não o Antônio, como se afirma por aí)
Isso é uma paráfrase bastante livre, mas é a mais famosa, e provavelmente a melhor, tradução do poema 2 de Catulo, para a vergonha de todos os que vieram depois. É verdade que Castilho tinha algumas vantagens comparado aos contemporâneos, a tendência a paráfrase o livrou de seguir à risca e literalmente um texto latino defectivo (mais a frente), o desrespeito ao metro deu uma fluidez natural ao verso. Lexicalmente, hoje em dia seria inaceitável vulgaridades como "os brincos" (as brincadeiras), "consolozinho", "douradinho" e "calmar", além do que se um tradutor moderno traduzisse "dolor" por "saudades" seria atacado por uns duzentos fanáticos, mesmo sendo bem provável ser essa a mais correta tradução dentro do contexto. Castilho também pôs o "Tam gratum est mihi quam" para o fim e entende como se referindo à segunda pessoa, o que parece demonstrar que ele sentia que "algo errado aí não estava certo", e a facilidade da paráfrase deu uma fluência notável ao poema. A preocupação com o texto ruim parece ter prejudicado mais os tradutores posteriores.


Além da divisão, temos um problema no verso 8: "credo ut cum gravis acquiescet ardor," lido em V não faz sentido e é sintaticamente problemático, já que "possem" no subjuntivo imperfeito governa o futuro do indicativo "acquiescet", além do "ut" aparentemente desnecessário. Aqui várias soluções "simples" já foram tentadas: "credo, tum gravis", "credo, ut tum gravis", "credo ut, cum gravis", "credo et tam gravis", "(credo tum gravis...)", e o que todas elas tem em comum é que não são satisfatórias nem no sentido, nem na sintaxe, geralmente exigindo a revisão de algum outro verso, e frequentemente mudando o sentido e interpretação geral do poema. Alguns como Goold fazem malabarismo com os versos para mantê-lo, enquanto Heyworth simplesmente remove o verso inteiro, mesmo sendo bem provável que o verso não seja interpolado (interpoladores tendem a acrescentar versos para remover as dificuldades, não para acrescentá-las). Ellis obelisa o verso, enquanto Eisenhut o chama de locus desperatus (passagem tão corrupta que é impossível chegar à verdade), e Mynors de locus nondum expeditus (passagem que ninguém explicou de maneira convincente). "Credo" apresenta suas próprias dificuldades, se o pardal (passer) é alívio à "saudade" (usando a solução de Castilho) da "amada" (puella), porque ele "acha" (credo) que alivia o "ardor" (e no que exatamente consiste a palavra ardor aqui... Castilho parece interpretar como "paixão", mas é bem razoável que seja "ira")?

Olzaniec, por exemplo, tenta ler os versos assim: "credo, cum gravis acquiescet ardor,/tecum ludere sicut ipsa posse/et tristis animi levare curas." que pode ser lido como "Creio que, quando a grave ira [dela] diminuir, possa [eu] brincar contigo e os tristes sentimentos possa acalmar". É uma leitura mais especulativa, mas ao menos tem algum sentido até o 10º verso.

Agora ao tentar dar coesão ao poema como um todo se precisa alterar a gramática do verso 9 e refazer algumas construções no poema. Para "tecum ludere[m] sicut ipsa possem" (fora a remoção do "m" que provavelmente estava no original e foi removida já por alguns copistas antigos), alguns corrigem a gramática com "posse" e "passer" (Housman). Heyworth usaa "posse" removendo o verso corrupto 7 e escrevendo o verso 8 como "ad solaciolum". Goold também usa "posse" e troca as relações entre os versos 7 e 8, escrevendo o oitavo verso como "sit solaciolum". João Ângelo segue a lição de Goold (na verdade, de Voss[ius]... cito Goold porque Ângelo atribui a emenda "posse" a ele, mas é importante que a leitura de Goold e de Ângelo da sintaxe e unidade do poema são diferentes... Também chamo atenção que Voss une os dois poemas como "prova" de que "passer" é o pênis de Catulo, e as 3 últimas linhas seriam referência à Atalanta praticando sexo oral ou masturbação [não estou inventando isso], de modo que Ângelo segue a sintaxe mas não a semântica) lendo "posse", sem fazer nenhuma outra alteração, porém traduz o poema de modo ligeiramente diferente, já que ele usa um infinitivo "poder" mais indeterminado; Castilho reconstrói, ao invés da potencialidade menciona o fato de "não os poder brincar".


Sem ter a menor ideia da natureza dos problemas do texto, e usando uma cópia que não me lembro, tentei traduzir na época e fiz dois versos e algumas palavras. Em 2009 e 2010 eu não tinha aquela preocupação com a forma, mas tentava já pegar o conteúdo "interpretativo" dos textos. Como já dito, os versos foram perdidos, mas eu lembro que a "tradução" era mais ou menos assim:

Pássaro, delícias de minha amada
Com quem gracejas, que tem no seio,
digitum = no dedo / dare = ousa ou provoca
E isso foi tudo. Performance vergonhosa, admito. E logo percebo que uma de minha escolha implica uma interpretação diferente da que eu tinha (passer = pássaro) e outra implica uma interpretação que era minha (ludere = gracejas), mas que não é convincente. Usei "pássaro" para traduzir "passer" unicamente pela similaridade sonora, mas isso aparentemente coaduna com aquela interpretação imbecil de alguns poetas (entre os quais Salvatore Quasimodo e Décio Pignatari) em decidir que um pardal não é um animal de estimação adequado. Mesmo se desconsiderarmos a tradicional associação do pardal com Vênus, o στρουθοι no poema de Safo (fr.1), ainda resta o fato de que nada impede um animal de estimação como um pardal. No caso de gracejas, eu estava lendo "ludere" de modo sexual (fazer "gracinha", "gracejar", no sentido de fazer sexo), que remonta ao debate um pouco menos estúpido de se o "passer" do poema referir ao pênis de Catulo. Enquanto o primeiro caso ("passer" não sendo um pardal, mas um outro pássaro "melhor") pode ser simplesmente tratado como imbecilidade sem base, o segundo é mais complicado e não tenho nem competência necessária para debater. O caso é que hoje em dia essa interpretação não me convence mais.



Sem ter muita noção das minhas próprias limitações, também havia decidido traduzir "na íntegra" o poema "Sobre a Guerra Civil" (De Bello Civili), mas que conhecia apenas pelo título popular de Farsália (Pharsalia). Não conhecia a tradução do Filinto Elíseo, mas curiosamente minha versão dos dois primeiros versos ficou um tanto parecida. Lucano tem uma história textual complicada (como todos os clássicos) por outras razões, mas sobreviveu em vários manuscritos diferentes. Acredito que o início do poema não tem grandes problemas textuais pontuais, exceto pela possibilidade (não convincente) de que os 8 primeiros versos foram adicionados por um editor, e o poema começa com "Quis furor" (ou tinha um começo distinto que foi substituído).
Bella per Emathios plus quam ciuilia campos
iusque datum sceleri canimus, populumque potentem
in sua uictrici conuersum uiscera dextra
cognatasque acies[,] et[,] rupto foedere regni
certatum totis concussi uiribus orbis
in commune nefas, infestisque obuia signis
signa, pares aquilas et pila minantia pilis.
 Minha performance foi algo como isso:
As guerras mais que civis nos Emátios campos
e julgo dado ao ímpio canto, e o povo potente
em sua [...]
dextra = destra / uiscera = viscera
cognatasque acies = e o exército parente
Apenas para apresentar uma versão, a tradução do Filinto Elíseo:
Guerras mais que civis, no Emátio campo,
O jus dado à maldade canto, e o povo
Poderoso, que contra as entranhas suas
Houve empregado a vingadora destra.
Co'as forças juntas do abalado mundo,
Hostes parentas, roto o nó do império,
Para um total desastre, combateram:
Pendões contra pendões, águias contra águias,
Dardo no encontro hostil dardo ameaça.
 A editora da Unicamp, em 2016, publicou a primeira metade do poema em edição Bilíngue, com tradução, introdução e notas de Brunno V. G. Vieira. Por hora, não temos a segunda parte, os livros VI-X, mas ao que tudo indica é apenas uma questão de tempo. Gostaria de chamar também a atenção para o fato de que Bocage traduziu uma passagem descritiva da Farsália, intitulada "O Bosque de Marselha" (do Livro III), que pode ser lida aqui.



Edit 11/12/2019: Esqueci de mencionar outra particularidade do manuscrito Catuliano. A última palavra do manuscrito V é "negatam", mas a grande maioria dos editores escreve "ligatam" (incluindo João Ângelo, que traduz "zonam ... diu ligatam" para "o cinto atado há muito", ao invez de "negatam"="negado"... o cinto de Castilho é "esquivo", que talvez indique uma leitura diferente de "negatam" [como "rejeitado"?] ou improviso). O texto "quod zonam soluit diu ligatam" é a forma que era conhecida por Prisciano (Inst. 1.22) no século VI.

Também acrescento a tradução de Castilho para o início da Farsália:
Guerras mais que civis no emátio campo;
O crime alçado a jus; um grande povo,
que as armas triunfais crava em si próprio;
Hostes parentas; alianças rotas;
O globo todo em bélica vertigem
Para comum flagício; em campo e campo
Signas, águias iguais; pilos os mesmos,
A florear, embaterem-se, a esgrimirem;
Eis de meus versos o tremendo assunto!
Trad: José Feliciano de Castilho/ Ed: Renata Gurgel de Oliveira
Uma outra tradução do livro 1 pode ser achada aqui. Gostaria de saber porque diabos tanta gente se interessou por Lucano ao mesmo tempo.

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