Ammianus é um caso diferente. Primeiro que, escrevendo no IV século, ninguém espera muito de tais escritores, e talvez por essa mesma razão eles nos surpreendem. Do mesmo jeito que Ausônio, que em meio a muita vulgaridade consegue ser incrível (como em Mosella) mesmo quando não tem ideia do porquê (cf. cartas para Paulino de Nola), Amiano deve garantir sua imortalidade pelo seus escritos mais que pelas próprias informações nele contidas, e, diferentemente de Ausônio, não significa que suas informações sejam irrelevantes tampouco. Como professou Ernst Stein, "Amiano é o maior gênio literário que o mundo produziu entre Tácito e Dante", e a despeito do exagero hiperbólico (há muitos grandes autores e obras entre o período; de pronto citaria Venâncio Fortunato na poesia e Gregório Magno e Agostinho na prosa) deve ser bem considerado, particularmente pela situação linguística particular do autor.
Amiano não era um falante nativo do latim, e isso é mais curioso do que aparenta a primeira vista. Numa época em que os escritores latinos faziam questão de escrever em grego, Amiano, que era grego, preferiu escrever em latim, uma língua que sequer dominava, aparentemente porque queria ser o "historiador romano depois de Tácito". Por servir no exército, o autor devia ser fluente no latim vulgar falado no exército na região do mediterrâneo, que era uma língua completamente diferente não apenas da escrita latina, como não usada pelo próprio exército para a comunicação (os documentos existentes do período são escritos em grego). O resultado foi uma artificialidade deliberada, apenas muito ligeiramente "contaminada" (não uso o termo no sentido negativo) pelo grego nativo e o vulgar falado que compôs o estilo do poeta. Mesmo um zero à esquerda de uma sequência de zeros no latim, que sou eu, consegue perceber o quão deliberado e elegante é o latim do poeta, e eu tentei manter esse ritmo e artificialidade poética na minha tradução. A conclusão é que eu falhei miseravelmente, e desisti de tentar traduzir a prosa latina também...
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Mas se falho no estilo, ainda temos o texto. Amiano fala aqui de uma praga que assolou os já terríveis males de uma campanha militar. Não foi o primeiro caso em que o Marcellinus comentou sobre uma grande praga, já que a Praga de Antonino é parte de sua história, porém esta se perdeu e só é recontada por comentaristas posteriores. O que me interessou nessa notícia, é que, a despeito de uma época de ampla superstição e disputas entre crenças e ideologias, o autor demonstra uma excepcional sobriedade de julgamento. Muito do que ele nos fala sobre a doença e sobre doenças em geral pode parecer datada, errada ou ridiculamente expeculativa, mas ele soube, na medida de suas capacidades, com base em todas as fontes e comentários que tinha a sua disposição (que nem sequer eram muitos), construir o melhor panorama e a representação mais "correta" das causas que era possível para um homem da sua época. Ele tomou as palavras dos "especialistas" do período ao invés das "opiniões" e "superstições", e aplicou a elas um senso comum que, para qualquer estudioso da antiguidade, parece notável. Hoje em dia, com todo o desenvolvimento científico e facilidade de informação, julgar entre o senso e o nonsense deveria ser tarefa fácil, porém o tempo nos mostrou que, por mais que zombemos da "ignorância" dos antigos, eles operavam muito melhor com o que eles tinham do que nós com o que temos.
Ammianus Marcellinus - Rerum Gestarum XIX. 4
1. Sed in ciuitate, ubi sparsorum per uias cadauerum multitudo humandi officia superaret, pestilentia tot malis accessit, uerminantium corporum lue tabifica, uaporatis aestibus uarioque plebis languore nutrita. quae genera morborum unde oriri solent breuiter explicabo.
2. Nimietatem frigoris aut caloris, uel umoris aut siccitatis, pestilentias gignere philosophi et illustres medici tradiderunt. unde accolentes loca palustria uel umecta, tusses et oculares casus et similia perferunt, contra confines caloribus, tempore febrium aresc[unt frequ]entis¹. sed quanto ignis materies ceteris est efficacior, tanto ad perimendum celerior siccitas.
3. hinc cum decennali bello Graecia desudaret, ne peregrinus poenas dissociati regalis matrimonii lucraretur, huius modi grassante pernicie, telis apollinis periere conplures (qui sol aestimatur).
4. atque ut Thucydides exponit, clades illa quae in Peloponnesiaci belli principiis, Athenienses acerbo genere morbi uexauit, ab usque feruenti Aethiopiae plaga laulatum proserpens, Atticam occupauit.
5. aliis placet, auras (ut solent) aquasque uitiatas faetore cadauerum, uel similibus, salubritatis uiolare maximam partem, uel certe aeris permutationem subitam aegritudines parere leuiores.
6. adfirmant etiam aliqui, terrarum halitu densiore crassatum aera, emittendis corporis spiraminibus resistentem, necare non nullos, qua causa animalia praeter homines cetera iugiter prona, Homero auctore, et experimentis deinceps multis, cum talis incesserit labes, ante nouimus interire.
7. et prima species luis pandemos appelatur, quae efficit in aridioribus locis agentes, caloribus crebis interpellari, secunda epidemos, quae tempore ingruens, acies hebetat luminum, et concitat periculosos umores, tertia loemodes, quae itidem temporaria est, sed uolucri uelocitate letabilis.
8. Hac exitiali peste quassatis, paucis intemperantia aestuum consumptis, quos multitudo augebat, tandem nocte quae diem consecuta est decimun, exiguis imbribus disiecto concreto spiritu et crassato, sospitas retenta est corporum firma.
Amiano Marcelino - Rerum Gestarum XIX. 4
1. Mas na cidade, em que (esparsas pelas ruas) a quantidade de cadáveres era demais para se permitir enterro, uma praga aos males se acrescentou, infecção decadente dos corpos verminosos, o calor vaporoso e os variáveis langores que população nutria. Qual a gênese da doença em emergência brevemente explico.
2. Excesso de frio ou então calor, ou umidade, ou secura, pragas produzem, disseram médicos e filósofos ilustres. A partir daí aqueles que se avizinham a pântanos ou umidade sofrem de tosses e problemas nos olhos, e similares, enquanto aqueles nas proximidades de climas quentes desidratam pela constante¹ febre. Mas tanto quanto a matéria ígnea é mais eficaz que os outros elementos, o calor é mais rápido para matar.
3. Assim, quando a Grécia suava em guerra decenária, para que aquele estrangeiro não fugisse à pena por se aproveitar do matrimônio régio, praga assim grassou, e muitos pereceram pelos dardos de Apolo (reconhecido como o sol).
4. Assim como Tulcídides mostrou, desastre assim, que no princípio da guerra do Peloponeso vexou os atenienses com extremada doença, que se espalhou das ferventes plagas da Etiópia até ocupar as Áticas.
5. Outros creem que o ar (como é comum) e as águas, quando poluídas pelo fedor dos corpos ou coisa similar, sua integridade é violada em grande parte, ou ao menos tal mudança súbita provoca leves aflições.
6. Afirmam também alguns, quando pelo denso hálito da terra o ar se faz pesado, emitem exalações que devem ser repelidas pelo corpo, que não são sem risco de morte, que constantemente tende aos animais (antes dos homens), garante Homero, e de acordo com a experiência de muitos outros que o sucederam, matar primeiro por olhar para o chão.
7. E o primeiro tipo é chamado pandemus, que faz com que aqueles que vivem em lugares áridos serem impelidos por constantes febres; o segundo epidemus, que invade na estação apropriada, enfraquecendo a visão e deixando fluir perigosas águas; terceira loemodes, que também vem com o tempo, mas letal com velocidade alada.
8. Enfraquecidos por essa peste mortal, uns poucos consumidos pelo calor intemperado, que ampliado pela enorme multidão, finalmente, na noite que sucedeu a décima manhã, os duro e denso ar foi destruído pela exígua chuva, a saúde firme do corpo é recuperada.
Trad: Raphael Soares
Notas
1 - O texto parece incompleto pelo ritmo e estilo do autor, e os manuscritos apresentam arescunt [G] e arescentes [V], com marca de lacuna. Novák lê arescent assim como V pressupondo uma lacuna, enquanto Heraeus propõe aresc[unt frequ]entes, que sigo porque parece explicar melhor as duas variações, assumindo que arescunt é uma lição independente, de M, e não conjectura de Gelenius. Se as duas lições forem independentes, eu confio no julgamento de Heraeus, que provou sua brilhante intuição em Marcial X 14 (ou 13) 1 "cathedrata litos" (para cathedratalios, cathedeas alius, cotathedratos). A lição de G parece boa em matéria de sentido (embora qualquer um declamando alto sente falta de 'algo'), mas mesmo ela fazendo sentido uma lição só pode ser aceita se explicar a que não faz. O texto de V é insuficiente, porém arescunt parece muito mais correção ou erro de arescentes que o oposto (ao menos em minúscula; se o s viesse da próxima palavra ambas as mudanças seriam igualmente prováveis, mas não é o caso). Heraeus explica a conjectura pela construção seguinte "caloribus crebis interpellari" (impelidos por constantes febres), que deixa claro o sentido de frequentes aqui, e mostra sua adequação em relação à medicina da época. Contudo ele não explica a variante, então o faço aqui. Se o texto original lia-se "arescunt frequentes", como acredito que era, um copista copiou arescentes em seu texto e outro fez uma correção marginal somente da primeira palavra, o que é muito comum, anotando unt como correção ao topo ou nas margens; o texto de M deveria ser arescentes como V, porém Gelenius tomou apenas a variante que tinha o sentido mais autossuficiente (a correção unt), de modo que as duas lições são legítimas; nada disso é muito estranho, e se adequa a hábitos muito comuns dos copistas, e constrói melhor estilo, ritmo e se adequa ao sentido que o próprio autor dava para o fenômeno.
Pandemus, epidemus e loemodes são tentadores de se traduzir etimologicamente, enquanto outros tem proposto "endêmico" para pandemus. Não acho que nenhuma delas é apropriada. Os três casos são casos de epidemia (i.e.: doenças infecciosas). Pandemus seria o que chamaríamos de epidemias locais, provocadas principalmente pelo ambiente, de modo que o termo endêmico é correto especificamente para zoonoses, porém eles sabiam e chamavam desse modo porque entendiam que era uma doença que "se originava" em um local mas podia passar de pessoa para pessoa (e os cadáveres contavam como "local", porque também exalavam o "fogo"), de modo que é uma epidemia local que pode se alastrar de pessoa para pessoa, por isso o "pan". Epidemus é doença de estação; não havia uma teoria de germes na época, e as causas reais eram desconhecidas, mas eles sabiam que elas apareciam ou aumentavam de acordo com a estação, como é o caso de Dengue e Malária. Loemodes são as doenças altamente infecciosas e fatais, que eram considerádas "de estação" mas não no sentido regular, mas no sentido histórico, no sentido de que de tempos em tempos, sempre uma grande epidemia surge e é ágil e fatal, como foi a Grande Influenza ou a Grande Epidemia de Cólera, como foi as pragas de Antonino e de Justiniano, como foi a Peste Negra e o Sudor Angelicus, como provavelmente será a Covid-19. Nenhum dos três termos tem correlação exata com o modo que chamamos doenças hoje.