domingo, 21 de junho de 2020

FUNDAMENTALISMO VS FILOLOGIA NA POÉTICA DE ARISTÓTELES [Palavras Importam]

Nada representa melhor uma leitura fundamentalista como um extremista religioso falando sobre a homossexualidade. Isso é condenado e repulsivo “porque está na bíblia”. Não importa o debate, não importa o contexto, e não adianta qualquer tentativa de discutir o ponto que logo virá a lição “leia a Bíblia, Levítico dezoito vinte e três 'Com homem não te deitarás, como se fosse mulher; abominação é', está lá e é a palavra de Deus”. O fundamentalista religioso, contudo, nunca irá dizer que Levítico 11 “está na Bíblia”, ou Levítico 19:19, porque o fundamentalista adora bacon, camarão e roupas da moda. No fundo no fundo, o fundamentalista não quer compreender o texto sagrado ou obedecer as leis de seu Deus, ele apenas não gosta de Gays e quer jogar autoridade para justificar seu ódio e calar quem pensa diferente.

Leituras fundamentalistas não são exclusividade de textos sagrados, mas estão espalhadas por todo o ramo das humanidades. Recentemente, ao fazer uma crítica em relação à (in)precisão histórica violenta em um texto literário, seu autor, visivelmente ofendido por minha rudeza, delicadamente me disse para comer capim e ler Aristóteles, porque, dixit dominus, o mesmo "em A Arte Poética, capítulo 9" (assumo que seja a numeração de Heinsius, o que é engraçado por mais de uma razão), autorizou todo o tipo de violência histórica na obra poética. Não costumo recusar convites à leitura, mesmo que seja Aristóteles, e mesmo que seja, outra vez, a mesma passagem da Arte Poética que já discuti ao menos duas outras vezes nos últimos 12 meses, já que por mais que eu ache que conheço essa passagem inteiramente, e li diversas interpretações da mesma, eu sempre posso cometer um grave e estúpido oversight, e tenho algum talento para isso, já que é o homem é completamente impotente diante de sua própria estupidez; quanto ao capim, tenho de admitir que não agrada ao meu paladar, a despeito de ser um notório jumento, espero que chá seja o bastante.

Antes de seguir com a discrepância entre a leitura fundamentalista e a filológica (não tratarei, por razões claras das “filosóficas”), há algo interessante sobre o método. O método fundamentalista é simples: jogar a autoridade da “palavra” para calar a oposição, não importando nem mesmo o que ela quer dizer. Não se pode discutir, não se pode debater, porque nosso senhor o grande X disse isso e porque ele disse isso é verdade. Por razões óbvias isso é mandatório nos templos, porque se Deus não tem autoridade sobre a “verdade” não há sentido em buscar por ele. Contudo, nas humanidades as academias tem uma parcela de culpa, pois mesmo se, ao menos em teoria, elas não incentivam essas práticas e recomendam o debate, as práticas acadêmicas tendem a, pouco a pouco, mecanizar a autoridade pela autoridade, palavra pela palavra. A verdade e o conhecimento são construídas por meio de palavras, assim como a mentira e a ignorância; precisamos de palavras para construir os sensível, e precisamos das mesmas para propagar o nonsense. Ao invés do debate e reflexão, aos poucos se instauram as palavras vazias e a autoridade. Isso não é a prática geral das academias, ou daqueles formados por ela (ao menos quero acreditar nisso com base na minha experiência), porém pequenas práticas tendem a incentivar ou mesmo premiar a aceitação da autoridade ou do vazio de sentido, mesmo que nas pequenas coisas.

Que Aristóteles possa ser usado como autoridade suprema e irrefutável para “provar” um ponto é algo absurdo, porém nada novo. O que me surpreende bastante é o quê exatamente Aristóteles está sendo usado para provar. Já por 1600 Heinsius (o mesmo responsável pela numeração supracitada) usou a mesma passagem para condenar todo o drama medieval cristão ESPECIFICAMENTE porque eles usavam a história real (ou, ao menos Heinsius e os autores medievais acreditavam ser essas histórias reais) mas a tratavam como mito (e também pela natureza das mesmas, como veremos), e ele provavelmente ficaria chocado ao ver que estão usando essa passagem para afirmar que Aristóteles aprovava nela a violação da verdade histórica à favor da arte. De fato, entre o século XV e XVIII a leitura da Poética era largamente ahistórica, e os autores do período, em comum com fundamentalistas modernos, se importavam unicamente com a “verdade” de Aristóteles, i.e. o que a literatura vernacular do período deveria ser, e a influência das diversas leituras aristotélicas do período é sumarizada por Wilhelm Dilthey, de modo que apenas repasso para quem interessar (“Die Einbildungskraft des Dichters. Bausteine für eine Poetik”, há uma tradução nas obras Seletas em Inglês, vol. V), embora compreender o contexto geral da crítica da época me parece mais relevante do que de uma obra específica, para o leitor comum.

Não é a primeira vez que eu vejo essa leitura, de que a “falsidade” histórica é justificada pela “verossimilhança” (ocasionalmente com alguns desenvolvimentos mais exorbitantes como “tempo mítico”), na passagem, e já vi até dois críticos aparentemente inteligentes chegarem à mesma conclusão. Fui novamente buscar bibliografia, ler mais comentários que ainda não tinha lido. Não é surpresa confirmar, novamente, que nenhum filólogo competente que estudou a “Poética” sequer leu esse texto desse modo, e olha que há filólogos desonestos e inventores de “modismos”, especificamente porque essa leitura é impossível em mais de um aspecto, e assumir que essa leitura é razoável implica em dizer que o próprio texto está errado. O que eu ainda não consegui descobrir é de onde essa leitura surgiu, e quando ficou popular entre críticos e polemistas leigos. O máximo que sei é que ela ainda não existia no período vitoriano inglês, e na França Denis Diderot apresenta a leitura da época do texto e não cometia esse erro, e não consigo achar esse aborto interpretativo nem mesmo nos humanistas e outros escritores do período “acientífico” (embora eles estavam mais lendo Aristóteles para “confirmar” Horácio, o que também não é uma boa ideia), e mesmo Pietro Vettori (Victorius), autor do mais importante comentário do período humanístico, mas que insiste em dizer que Aristóteles afirma que a poesia necessariamente precisa ser em verso, ainda não é capaz de ler desse modo. Devo assumir então que ela é uma leitura moderna, mas não posso dizer quão moderna. Essa leitura depende de uma tríade de ignorância, talvez deliberada como convém ao fundamentalista, que em geral causa todo tipo de erro, mas aqui em especial parece ser deliberada e em larga escala.

  1. a ignorância do contexto externo: o crítico fundamentalista ignora ou deliberadamente não quer saber sobre a história do texto. O crítico pode até saber que o texto é um dos textos “não publicados” do autor, mas não sabe ou não quer saber o que isso significa para a interpretação do texto. O crítico não sabe ou não quer saber como a obra chegou até nós, e em que condições; o crítico não quer ouvir dizer que “a 'Poética' sofreu em sua transmissão mais qualquer outra obra autêntica de Aristóteles” (“the Poetics has suffered in its transmission more than any other authentic work of Aristotle”, na Editio Maior mais recente, a única), porque se as bases da Escritura caem a base de sua Verdade cai; ele não quer saber que a situação do texto já era famosamente ruim no primeiro século A.C., como atestam Plutarco e Strabo, e se souber no máximo vai considerar o testemunho dos antigos como exagerado, porque todos os antigos podem mentir, exceto suas Escrituras. Mais importante, o crítico fundamentalista não sabe, ou não quer saber, sobre que obras o autor originalmente falava, quais estéticas estavam em voga, as mudanças, o que havia e não havia no período, ou quais valores em específico o autor condena e o porquê, já que o crítico fundamentalista não se importa com o que Aristóteles dizia e como julgava os seus contemporâneos, mais como a palavra do Senhor é eterna e como a profecia d'Ele explica Pound e Eliot. O filólogo, contudo, não pode fazer o mesmo, porque tentar compreender o contexto no maior grau que for humanamente possível é a pedra fundamental de seu trabalho. Como não é do fundamentalista, ele usa seus poderes na segunda ignorância.
  2. a ignorância do contexto interno: nem sempre basta ignorar apenas o contexto e a transmissão do texto, às vezes se faz necessário ignorar exatamente o que o texto diz e suas palavras, ou ao menos as partes do texto que desagradam ou não corroboram a tese. Essa é, contudo, a mais defensável das ignorâncias. Todos os homens são propensos a isso, e a natureza do debate, que não permite trazer tudo ao mesmo tempo pode distorcer e deliberadamente esconder partes significativas do texto que fariam uma leitura incorreta cair por terra. De fato, mesmo gigantes (como Carpeaux, Housman ou Frye) podem estar face a face ou citar a prova necessária para derrubar parte de suas teses e ainda insistirem em não ver ou fingirem que significa outra coisa, e se os maiores homens podem cometer os mais óbvios e vergonhosos dos erros, não é justo exigir que os pequenos nunca incorram em um grave equívoco de omissão. Contudo, o crítico fundamentalista possui método, e não basta apenas casualmente omitir tudo aquilo que causa dificuldades ao argumento, ele precisa omitir tudo. É por isso que esse crítico ama o aforismo e a citação curta, já que esvaziado de seu contexto interno uma passagem isolada pode significar o que ele bem entender, e é essa a razão porque o crítico fundamentalista cita unicamente a passagem “1451a” a partir da linha 36 e nunca vira a página. Do mesmo modo que o fundamentalista religioso é capaz de dizer que Isaías 45:1 profetiza o “Messias” Cristo (mesmo sendo nominalmente explícito que o “Messias” foi Ciro da Pérsia), o crítico fundamentalista pode dizer que Aristóteles falava na passagem da liberdade com que o poeta pode tratar os fatos históricos, mesmo quando Aristóteles diz com todas as letras em 1451b 29-32 que ele não estava falando disso. O fundamentalista não quer saber em que contexto a frase foi dita, porque no fundo ele não quer entender a passagem, mas a instrumentalizar.
  3. a ignorância do  não-dito: o resultado lógico das ignorâncias anteriores, pois se o crítico não sabe em que contexto o texto foi produzido e transmitido, a que contexto se referia, e o que o que vem antes e depois propriamente dito, o texto fica incompleto e o seu sentido não fica claro. Se o texto é incompleto e o sentido não é claro, o leitor deve construir o sentido e ler nas entrelinhas. Ninguém ama mais ler nas entrelinhas que o crítico fundamentalista, que ama tanto o método que destrói as linhas a favor das entrelinhas. Se o sentido não é completo ele tem de ser inventado, e se ele tem de inventar ele o fará naturalmente para confirmar e defender as suas ideias, não para compreender a do autor. O filólogo venderia a alma por mais contexto e mais linhas, o fundamentalista não quer mais contexto e mais linhas porque quer inventar a sua interpretação.

A exposição do método fundamentalista, para a presente discussão, se deve porque esses são especificamente os tipos de ignorância, que nas medidas da minha capacidade, pretendo evitar. Para a presente discussão, o foco será especificamente “o que” o autor diz a respeito da diferença entre a arte [poesia] e a história, e por que as palavras importam, e espero apontar algumas questões gerais pertinentes à tradução dessas palavras e construções importantes, e porque traduções descuidadas de prosa podem auxiliar ao engano mesmo que não sejam objetivamente incorretas. Aqui eu vou apontar tudo o que estarei usando para a leitura, para que quem quiser possa me seguir. Isso não é uma bibliografia exaustiva, mas apenas algo que todo o leitor pode acompanhar, embora eu possa trazer algo de fora.´

Minhas referências ao texto da Poética seguem unicamente a numeração de Bekker como ela aparece na Editio Maior de Leonardo Tarán, e não faço referências a número de capítulo ou versículo seja usando a mais comum de Heinsius ou qualquer outra divisão humanística. Talvez o ideal fosse usar as duas, mas considerando que todas as edições, traduções e comentários respeitáveis do texto mencionam a numeração de Bekker é a forma mais padrão de citar os textos, e, de fato, tem sido a única usada por comentários e teses diversas sobre os autores do período. Eu vou seguir lendo o texto de H. S. Butcher (link da quarta edição, idêntica à terceira), apresentando uma interpretação vernácula para quem não puder o inglês e partir comentando daí; a escolha do texto de Butcher foi não apenas porque está em domínio público e todos podem seguir comigo, mas porque comparada com paráfrases como a de Bywalter ou a da edição da Loeb, que acrescentam muitas partes explicativas ao próprio texto, ou as portuguesas que conheço (que, me parecem, apresentam problemas particulares), essa me parece mais “funcionalmente” colada ao original em construção, de modo que dentre as traduções livremente disponíveis é a que melhor serve aos propósitos de um comentário assim.

Para comentários textuais e a história do texto e transmissão de Aristóteles, o interessado deve ler “Aristotle Poetics: Editio Maior of the Greek Text with Historical Introductions and Philological Commentaries” de Leonardo Tarán, e quando houver alguma menção aos problemas textuais a recomendação é partir para lá. Eu aqui vou fazer referências repetidas ao comentário de Bywalter, "Aristotle, on the Art of Poetry. A Revised Text, with Critical Introduction, Translation and Notes" (“the best so far” para Tarán, “the most important” para Nagy), e garanto para quem duvidar que vou, exceto quando notado, lidar apenas com o que é mais unânime entre comentadores, seja antigos como Vincenzo Maggi (Madius) e Pietro Vettori (Victorius), seja modernos como Else (que é idiossincrático sob qualquer aspecto) ou Whalley. Por conta disso, vou me limitar na discussão específica da história e da poética, e me abster de peregrinar pelas discussões mais cabeludas e ambíguas, como por exemplo da percepção do filósofo a respeito da comédia (estaria Aristóteles sugerindo que a “comédia nova” [ou mais propriamente uma intermediária] é superior à de Aristófanes, como me parece? ou pior, a nova comédia evoluiu para um ponto que a tragédia nunca chegou, na época do autor, o que é razoável?), ou de quão “historicamente reais” seriam os eventos dos mitos, ou de qual é a relação sintático-semântica do nome e universal (é por causa da universalidade que a poesia põe nomes próprios aos personagens ou é universal a despeito de colocar nomes próprios, ou subsequentemente a ela coloca nomes nos personagens, ou qualquer outra coisa assim), e é a razão da minha omissão é o de não me perder num buraco negro cíclico das discussões interpretativas de várias das especificidades da obra, o que não é tarefa para um homem são. Se um leitor achar, dentro de uma das partes que omiti, há algo importante para a discussão que eu, em minha estupidez, ignorei, o leitor ao menos poderá trazer à mesa da próxima vez que for discutir e ler a poética, e pode se deleitar em rir de como eu fui um asno e deixei passar esse fato importante. Pois vamos ao Aristóteles, e francamente espero que o chá seja mais palatável.


1451a 36 - 1451b 7

Aliás, é evidente, por causa do que se disse, que não é a função do poeta relatar o que aconteceu, mas o que deve acontecer - o que é possível de acordo com a lei da probabilidade ou necessidade. A diferença entre o poeta e historiador não é entre escrever verso e prosa. A obra de Heródoto pode ser posta em verso, e ainda seria um tipo de história com metro tanto quanto sem. A verdadeira diferença é que um relata aquilo que aconteceu, o outro o que deve acontecer. Poesia, por isso e uma coisa mais filosófica e elevada que história: pois poesia tende a exprimir o universal, história o particular.
Um dos aspectos deprimentes da nossa comodidade em ler um texto desse com divisões de capítulos e tópicos e paráfrase interpretativa é que ele nos força a ter de explicar o óbvio. Como a "divisão" não existe realmente, a leitura deixa absolutamente claro que tudo o que é dito nesse "parágrafo" e daqui em diante não é uma teoria estética isolada, mas consequência do que foi dito antes. A formulação inicial não é uma daquelas casuais formulações de mudança de assunto por associação (ex.: já que falamos em tomar uma cerveja, onde fica o banheiro?), mas uma clara determinação de continuidade e qual assunto é subordinado a qual: "por causa disso que falamos antes que a poesia [...]", ou seja, toda a questão da função da poesia, o "possível" (como termo técnico) é consequência da formulação da unidade da narrativa, que predica a discussão. A arte é uma "unidade" (não há tempo, nem tenho competência, e nem existe uma resposta absoluta para isso), e tudo o que for dito é resultado dessa unidade, não uma formulação isolada. Isso só pode ser compreendido em relação à unidade da narrativa, porque é seu resultado lógico (φανερός, ou seja, "está na cara" para quem acabou de me ouvir).

O problema do óbvio é que, por ser óbvio, ninguém fala disso, e é muito fácil de se ignorar, ou, em linguagem vulgar, "passar batido". Else sabia disso, e lembrando que todo mundo sabia disso também, achou que as pessoas deveriam não só atestar o óbvio como discutir as implicações do fato, o que, os críticos em geral simplesmente não fazem. Os comentários mais recentes sabem disso, já que fica claro pela própria interpretação, mas, novamente, eles não mencionam ou desenvolvem as implicações do fato. E, novamente, por ser óbvio, "passar batido" pode ser grave e simplesmente não ser percebido, já que eu conheço ao menos um classicista importante (me parece ser o único, mas podem haver mais) que esqueceu esse fato, e isso afetou a sua leitura da obra: o próprio tradutor Samuel Butcher (Aristotle's theory of poetry and fine art, Capítulo III, p.163 et seq.), que considera uma passagem autônoma em que Aristóteles constitui a sua tese de verdade poética que determina a natureza da poesia em si, e não como resultado da unidade poética. O erro de continuidade e separação não justifica o nonsense da "falsificação da história defendida por Big. Ari.", já que a interpretação da passagem ainda é adequada em Butcher, que altera sua importância e o quê é consequência de quê apenas. Porque o tradutor sabe o que significa "provável" e o que "deve" acontecer.

Há uma questão tradutória profundamente relevante aqui: alguns tradutores falam em coisa que "pode" acontecer, outros em coisa que "deve" acontecer, e essa discrepância persiste ao menos em inglês, português e francês. Isso não deveria ser problema porque Aristóteles também explica o que significa "pode/deve acontecer", ou seja, o que é verdadeiro, a consequência natural baseada no que a ação deve gerar como resultado, de acordo com o que é mais necessário ou mais provável. "pode/deve" no seguinte sentido: "se eu, Raphael Soares, me atirar do sexto andar do meu prédio diretamente sobre o cercado do térreo eu posso/devo morrer". As duas construções estão corretas, e têm o mesmo sentido. De fato, é possível que eu sobreviva, e embora é bem difícil de calcular as probabilidades, e "a História" registra de fato ao menos um caso de alguém que cai em queda similar (Avery Shawler, de abismo na mesma altura e caindo sobre uma bicicleta de massa similar ao cercado do térreo), embora não seja um caso de alguém que se atira. A arte não tem a função de relatar o que aconteceu, o indivíduo Avery Shawler que caiu num abismo de 18 metros em cima de sua bicicleta e sobreviveu, mas tem a função (dever?) de relatar o que "pode/deve" acontecer: se eu me jogo do sexto andar eu morro (e, obviamente, antes disso que evento me fez tomar essa ação, já que isso decorre da unidade da narrativa). Que alguém pode ler, em uma tradução brasileira, "o que pode acontecer" e interpretar como "todas as possibilidades, todo o reino do possível, tudo o que pode acontecer" é compreensível, o que não é compreensível é que alguém entenda "o mais provável e o necessário" como confirmando essa primeira leitura; que um tradutor português como Ana Maria Valente ou um brasileiro como "seja lá quem fez a coleção Os Pensadores" traduza como "princípio da verossimilhança" me parece simplesmente perverso. Que ἔοικα pode significar "parecido" ou "similar" é uma coisa, mas εἰκός só pode significar "provável". Aqui não é dizer algo que pareça verdade, mas de que é mais provável ser verdadeiro, e o sentido aqui não é nem discutido. Quando se diz "aquilo que pode acontecer de acordo com o princípio da verossimilhança" se diz algo bem distinto. Independente de uma eventual tradução como essa, em que a palavra do autor não importa, o sentido ainda deve ser tomado globalmente, e o fato de que dois portugueses resolvem inserir um "verossímil" anacronisticamente aqui, isso ainda não autoriza a interpretação moderna de verossimilhança ou de todas as probabilidades, porque, como veremos, o autor deixa completamente claro em 1451b 29-32 que há eventos que realmente aconteceram (eventos históricos) e que não são "verossímeis", ou seja, que não devem ser objetos da poesia (além do mais, os cânones da História Clássica não obriga que o historiador diga exatamente o que aconteceu, mas aquilo que parece ser razoavelmente aceitável como verdade... contudo, o leitor fundamentalista tem um ponto aqui: talvez seja assumir demais que alguém que fale sobre algo, i.e. Aristóteles sobre a história, necessariamente fez o dever de casa e sabe do que está falando... filólogos em geral não seguem essa linha, mas eu admito que o fundamentalista tem um ponto aqui); se o leitor não consegue dar um sentido para esse problema, ou não perceber que ele existe, ele não pode acusar a tradução e dizer que foi enganado por um "princípio da verossimilhança" que grassou entre traduções de língua portuguesa. O autor então fala, "claramente" que [por causa disso, novamente, sucessão de ideias] a literatura é universal enquanto a história particular. Como temos as nossas próprias ideias do que é universal, simplesmente paramos a leitura e citação aqui, e não temos paciência para ouvir o que Aristóteles tem a nos dizer a respeito disso. Porém antes do próximo "parágrafo" gostaria de apontar mais um fato e apresentar duas questões de leitura paralela que ao menos devem ser consideradas.

Como foi dito, tudo o que aparece a partir da primeira linha diz respeito à unidade poética, e o que deve/pode acontecer não apenas está sujeito às leis da probabilidade ou necessidade, mas também às "leis" da unidade Artística. Na mesma página, algumas linhas antes, o próprio Aristóteles dá exemplos, de outras coisas que ocorreram a Odisseu (na esfera do mito), mas que não aparecem na sua obra por causa das leis da unidade (há, isso é mais engraçado do que parece). O segundo ponto é que, embora eu seja moderno e concorde em abstrato com a afirmação de que a poesia não está necessariamente no "verso", aqui é muito importante compreender o que seria "pôr Hesíodo em verso não é poesia", e isso é muito relevante porque muito da poesia que não existia na época de Aristóteles é exatamente pôr obras de prosa em verso e ainda assim ser poesia, assim são as obras de Arato (que nasceu pouco depois de Aristóteles morrer), assim é Manílio, assim é grande parte da poesia tardo-antiga cristã das poetizações do Evangelho e das "Vita" dos santos; é, portanto, razoável ver como e porque esse texto foi usado pelos Humanistas e aqueles que os sucederam para condenar a narrativa poética em verso, mas para o crítico fundamentalista, que quer aplicar a verdade aristotélica para o fim dos tempos, uma dificuldade deve ser reconhecida e não pode ser ignorada: se Aristóteles está certo aqui em que uma "versificação" de uma "História" ainda é história versificada e não poesia, Aristóteles diz com todas as letras que Carmen paschale de Sedúlio e De vita Martini de Venâncio Fortunato, e se o fundamentalista pode se dizer no direito de que Aristóteles está certo ainda assim, eu certamente troco o filósofo grego pelos poetas latinos, pois ele não tem o direito de dizer que De vita não é poesia.

Por fim, vou apontar uma provocação curiosa do Else, que acrescenta ao que foi dito, e pode muito bem ser no que Aristóteles pensou. Para Else, Aristóteles está aqui alertando especificamente autores contemporâneos que tem tentado o modo da história, e ele realmente fala drasticamente mal dos autores "episódicos" e daqueles que escrevem Heracleidas e Thebaidas que enumeram e coligem narrativas, que é o modo da história. Novamente, isso não é agradável para os fundamentalistas, mas considerando as críticas severas anteriores que Aristóteles faz a essas narrativas é bem possível que ele tenha tido autores desse tipo em mente (embora, ao meu ver, a tese de Else se enfraquece e não se fortalece com a "historicidade", não no sentido do fundamentalista, do mito), e ele esteja aqui alertando para que poetas não sigam o mesmo caminho da "história" (não do fato, como veremos, mas dos deveres da história, e ignorando os deveres da poesia). Tudo isso, como vemos, tem o cerne na questão da unidade, mas agora a questão da "universalidade", que é a minha "favorita".


1451b 8-11
Por universal eu digo como uma pessoa, de determinado caráter/personalidade, irá falar ou agir em uma ocasião, de acordo com a lei da probabilidade ou necessidade; e é esta universalidade [a que a poesia visa nos nomes que coloca para os personagens]. O particular é - por exemplo - o que Alcibíades fez ou sofreu.
Para todo leitor atencioso um alerta deve ser acionado toda vez que uma passagem é sempre mencionada e sempre "cortada" exatamente na fração de segundo em que o autor vai dar um exemplo concreto. Todas as vezes que alguém resolve citar a passagem de Aristótles, quem faz a citação convenientemente elimina o exemplo concreto. O texto do fundamentalista sempre termina com "a literatura é universal e a história particular", e nunca após o autor dizer exatamente o que ele quer dizer, com exemplos, o que consiste a o universal e o particular. O leitor atencioso deveria se perguntar porque não terminam a citação após o exemplo, e antes de o autor fazer o parêntese sobre a comédia.

Antes de mais nada, eu não vou comentar, como disse, a respeito da relação entre a universalidade e o nome dos personagens. Há uma discussão infinita a esse respeito mesmo supondo que o texto grego esteja correto, e a discussão vai mais longa se não estiver. Por hora, a única coisa que se pode oferecer é que a universalidade tem relação com os nomes dos personagens mas isso não é claro como ou mesmo se é uma positiva (embora ninguém tenha me perguntado, a mim parece que Aristóteles diz que os nomes da comédia mais contemporânea, mais abstratos e gerais, são mais apropriados para o universal, e por isso "já é aparente na comédia", enquanto na comédia antiga a tendência pela retenção de nomes familiares e referenciais é a razão porque não é aparente na tragédia... aqui, me parece, o filósofo defende a completa separação até mesmo no nível referencial da história... contudo, não é uma leitura unânime, e é textualmente complicada e sua confirmação depende de um conhecimento de grego que eu não tenho e sob o qual dependo dos outros). O que eu devo mencionar é que aqui há uma clara repetição, que tem função, e que ao menos uma versão brasileira não respeita, e essa repetição é importante porque referencia novamente para o "universal" da poesia que fala o que "pode/deve" acontecer: "κατὰ τὸ εἰκὸς ἢ τὸ ἀναγκαῖον" (lei da probabilidade ou necessidade). Ele está repetindo e desenvolvendo o que disse, dentro do contexto da unidade: o dever da poesia (decorrente da necessidade da unidade) é falar daquilo que "deve/pode", ou seja, como um personagem X, de tendência Y age ou se comporta em situação Z [gerando resultado W] dentro da "lei da probabilidade ou necessidade". Um homem arrogante, achando que pode fazer feitos que o humano não pode fazer age em direção a esse feito que não consegue e resulta em sua queda, por exemplo, é algo que "pode/deve" ocorrer, com base nesse personagem, de tal caráter, que age de tal modo e o resultado é a consequência esperada por tal ação. Isso é o que a poesia, segundo Aristóteles, deve dizer, é seu dever e onde reside sua glória e superioridade. Isso é o universal para o autor. O particular, como o mesmo diz "é o que Alcibíades disse e fez".

É fácil entender porque o crítico moderno omite a citação. A literatura pós-romântica é notoriamente "individual", ou seja, baseada nesses acidentes do destino, do excepcional, do limite da probabilidade e do blatantemente absurdo, e desenvolvemos nossas próprias ideias de universal e local, então é desinteressante um Aristóteles que defende que o "universal" é o que é comum à normalidade do homem, que para nós é o ordinário e o desinteressante. Porém Aristóteles era um filósofo grego, do IV século A. C., não um cético pós-romântico. Dentro do contexto histórico e literário em que ele se inseria tanto as descrições como prescrições fazem sentido, e parecem combater tendências específicas também. A linha, contudo, não pode nem mesmo com truques Jedi da mente assumir outro sentido, então é cortada. Nem mesmo as leis da "verossimilhança" alteram o que está escrito porque o exemplo é muito claro, e remete diretamente à unidade. Contudo, Aristóteles não termina com o exemplo do universal, mas do individual.

Aqui eu vou ter de, lastimavelmente, abrir uma exceção à leitura do consenso. Não porque não há consenso, mas por que falta leitura. Também não é porque a linguagem é obscura, mas porque é direta mas nós, modernos, não entendemos o que deveria ser óbvio para o público original, então temos de tentar recriar isso, e há diversos problemas. O texto aqui não pode ser mais claro: "O particular é - por exemplo - o que Alcibíades fez ou sofreu", e não há outro jeito de entender ou construir isso com um sentido ligeiramente distinto, já que o que é dito é: o individual/particular significa (um exemplo do que é iconicamente particular) a "história" de Alcibíades, o que ele fez e o que aconteceu com ele. Quanto ao fato de que há pouca leitura, eu devo dizer que dentre os críticos há três grupos: os que simplesmente não comentam a passagem (mesmo Bywalter, “the best so far”), o que são a grande maioria, aqueles que glosam Alcibíades como político Ateniense (o que pode ser um serviço ou grande desserviço), e os raríssimos que tentam explicar a razão de Alcibíades ser mencionado aqui, e quase todas as interpretações são distintas, embora não necessariamente opostas ou concordantes. Portanto, o que vem a seguir, diferentemente do resto da leitura, não é o consenso dos filólogos e comentaristas, e aqui eu terei de me envolver na polêmica e apresentar uma leitura que me parece correta; mais que isso, ao menos da forma como apresento eu não a vi sendo apresentada em nenhum lugar, embora não clamo inventar ela: de fato é basicamente a mesma leitura da poética que outros filólogos chegaram, particularmente por causa da próxima passagem, mais explícita, e eu simplesmente acredito que o exemplo do "que Alcibíades fez ou sofreu" exatamente por isso mesmo... Depois disso apresento a leitura de Else que complementa a minha.

Novamente, considerando o contexto de produção e contexto interno da passagem o que o escritor quer dizer deve ser muito claro. De um lado a representação dos fatos (como veremos depois, mesmo dos que não são possíveis), do outro uma verdade mais elevada, o que "deve ocorrer de acordo com a lei da probabilidade e necessidade". Se o universal é o abstrato comum a todos os humanos e a verdade mais provável dentro da sequência de ação e consequência, o individual é o caso mais excepcional, irracional e "não possível" que "realmente aconteceu". Se "que deve/pode acontecer" é eu me jogar do sexto andar e "devo/posso" morrer e o histórico é Shawler (universal x individual), então um homem vão, envolvido na política, deve/pode cair e compreender seus erros, e isso é o universal, enquanto o individual é Alcibíades.

Isso parece divagar, mas não é. Alcibíades é Alcibíades, e isso, surpreendentemente é o bastante, e aqui, para mim, está a chave e, aquilo que o fundamentalista detesta. Sejamos francos e diretos, Alcibíades é o maior clusterfuck absurdo da antiguidade, e consideramos que tivemos lendas sobre Calígula isso parece até brincadeira, mas não é. O grande problema a respeito da História de Alcibíades (i.e.: o que ele disse e fez) é que ela não faz o menor sentido, e honestamente se você não sabe do que se trata eu recomendo muito que dê uma parada e vá descobrir, porque vale a pena. Ele foi um político extremamente arrogante, ambicioso, ocasionalmente estúpido (mas com uma aura que fazia todo mundo ficar idiota junto dele, o que surpreendia até mesmo os gregos... mas sabemos que provavelmente era porque ele devia ser "gato" demais para os padrões da época), que atentava contra os próprios interesses e nada dentro da história dele faz o menor sentido, e ainda assim ele foi uma das figuras que mais alterou o sentido da Grécia no Período em que viveu. A despeito de todos os seus feitos horríveis ou absurdos, ele nunca sofreu consequência alguma pelos seus atos (ok, exceto aquela vez que ele dormiu com a Rainha de Esparta, mas isso foi um caso raro), e ao mesmo tempo foi, ironicamente, punido de modo severo por atos que ele não fez (foi condenado à morte por uma conspiração contra seu próprio interesse, de que ele quase certamente não participou, e foi exilado por um ataque que outrem ordenou... aqui é difícil saber qual versão dos "atos" Aristóteles conhecia, mas mesmo se Alcibíades cometeu tais atos o próprio ato é irracional o bastante para não fazer sentido). Ele é a epítome do individual ou não universal porque é único. Ninguém é como Alcibíades, ninguém tem algo em comum com ele, a história dele não faz nenhum sentido, mas o que ele disse, fez e o que aconteceu com ele é domínio da história, o caso "extremo" do domínio que é só histórico e não é digno da poesia. A poesia apresenta a verdade, o que deve e é mais provável de acontecer em tal circunstância, e que é comum aos homens. À história cabe Alcibíades.

Eis o porque ninguém termina a "verdade" do Senhor Ari. mencionando seus exemplos. Nenhum autor moderno, em sã consciência, defenderia que o natural e consequente é o DEVER da literatura enquanto a mesma não deve falar desses casos estúpidos, absurdos e idiossincráticos, pois os mesmos são o "particular". Mas é exatamente isso o que está dito. O quão específico você interpreta a correlação "feitos de Alcibíades" = "particular" está em cheque, mas como a primeira parte é inequívoca e a segunda é especificamente o domínio da história, é esse o sentido mais óbvio. Além do mais, novamente, Aristóteles foi um escritor grego, não um pós-romântico inglês ou simbolista francês, e muitas de suas ideias, mesmo que parcialmente distorcidas ainda eram vistas de forma clara pelos escritores antigos... Um exemplo injusto mas que acho instrutivo é a polêmica de Machado com Eça, e que fique claro, o contexto é completamente diferente, mas como uma noção de unidade da parte de um e de outro são diferentes, e como isso diferentemente se executa na prática: Machado criticou Eça especificamente porque em "O Primo Basílio" toda a trama (para o crítico) decorreu de um acidente, a descoberta da carta pela criada, e sem o acidente (sem carta), não tinha trama... Critico o Machado pela mesma razão que critico Aristóteles, mas o como ele resolveu desenvolver essa unidade de caráter em sua própria obra é que é o surpreendente, já que em Memórias Póstumas há uma carta (ou seja, o acidente), mas ela não perturba a trama (ou seja, o que se espera dos personagens). Independente do resultado, a ideia não é comunicativa para nós, e o mesmo pode se dizer dos princípios estéticos renascentistas, e ainda mais dos gregos. Quando vemos os textos gregos (que conhecemos) a que Aristótles tinha acesso, suplementado pelos que ele conhecia e que não conhecemos, essa posição (mesmo que não concordemos com ela) é sensível. O fundamentalista não quer o sensível ou o que o filósofo pensou, quer uma autoridade para suas ideias, e não é por menos que a passagem é omitida.

Else, contudo, apresenta uma complicação extra, que é que, segundo ele o personagem Alcibíades era usado frequentemente na comédia (referências dentro da obra), e, pior ainda, as pessoas começavam a não só achar que a figura dele era "Razoável" como "simpatizavam" com essa figura absurda (polêmicas em relação ao coringa do Phoenix e sua possível perversão moral são mera coincidência), e mesmo um filólogo Alemão, Bruns, afirma (em um assunto não relacionado) que a figura de Alcibíades parecia se tornar parcialmente-reabilitada. O ponto, e novamente, é a unanimidade, é que o particular é algo que Alcibíades representa particularmente "individual", e esse individual não só não é a obrigação da literatura, como a literatura não deve falar desse individual. É por isso que a obra foi tão popular para condenar a literatura pia, botânica, ou histórica medieval, mas é óbvio também que ela, se condena as mesmas, não autoriza a individual e libertina estética pós romântica.

Críticos podem compreender isso, e entender o contexto e o texto, mas nenhum literato moderno vai defender algo como "a literatura só pode falar dos tipos prováveis", e que esses indivíduos bizarros e aleatórios são algo que a história deve comentar, e algo que cabe a ela apenas... Para mim, nenhum homem grego merece mais ficção do que Alcibíades (e muitos modernos concordam comigo a despeito de Aristóteles, não por que sou melhor que o autor grego, mas porque somos todos modernos), o fundamentalista (que, ironicamente, também concorda e usa Aristóteles para justificar um assassinato histórico ou uma excentricidade individual) finge que Aristóteles não disse isso e volta para a página anterior.

Ainda há, obviamente, um elefante na sala. Do modo como isso tem se apresentado, e como o próprio Aristóteles diz, de um lado temos a história real, que é dever da história, e do outro a invenção baseada na tradição ou mito que fala das coisas que "devem/podem" acontecer baseada nas leis já tratadas. A pergunta que fica é, mas e no caso da obra poética que TAMBÉM trata de fatos históricos? Aristóteles supõe que isso não é possível? Ou está dizendo que tudo é possível porque não é real? O autor, percebe muito bem que o que ele disse 'implica' que "não é possível" a literatura histórica ou ela seria má literatura (como ele fala antes ou depois) ou "história em verso" como ele profetiza se tentarem, contudo, sabendo dessas implicações, e sabendo que existiam grandes obras trágicas "históricas" (Captura de Mileto por Phrynicus ou As Pérsias de Ésquilo... seria interessante conhecer a opinião específica), Aristóteles tem de falar desse caso como um elemento separado, e é isso que leva toda aquela baboseira de achar que a primeira parte justificava qualquer assassinato histórico... Leremos:


1451b 29-32
E mesmo se acontecer de [o poeta] tomar um assunto histórico, ele não é menos poeta; pois não há razão que diga que alguns eventos que realmente ocorreram não devam se conformar à lei do provável e possível, e na virtude dessa qualidade[/função/valor] que ele é o poeta ou criador deles [dos eventos].
 Aqui há um pecado de tradução que ocorre, aparentemente, também no Ingles, mas que no português e francês ocorre mais, e é nesse ponto que vem o título de que palavras importam. Independente de como você traduzir uma passagem ou outra, alguém pode te criticar ou não por isso, as palavras que escolhes são significativas. As duas passagens marcadas usam a mesma palavra, γενόμενα/γενομένων em diferentes funções, de modo que eu não vou nem discutir qual é a tradução correta (eventos históricos, fatos que realmente ocorreram, situações reais, coisas que aconteceram; etc.), mas a leitura deve ser coerente. Aqui há uma tentativa de poeticidade que predica uma tradução mais elegante, e elegante é menos repetição (a tradição inglesa, ao menos, exige uma cláusula de legibilidade, que tem suas vantagens e desvantagens), mas o fato é que não há atenção o bastante para a tradução de prosa, e acho que um ponto a se começar é especificamente em relação a repetições e não repetições. É bem frequente que expressões repetidas sejam substituídas (para evitar repetição) quando a repetição é significativa; por outro lado, não é raro usar o mesmo termo quando um original usa dois ou mais. Em alguns casos isso é linguístico e inescapável (termos de parentesco, por exemplo), mas em outros é deliberado. Eu entendo que alguém não queira repetir a mesma construção diversas vezes num texto, mas como em 1451b 8-11 o DEVER da história é relatar "aquilo que aconteceu", o poeta pode adotar o "acontecido/o fato que aconteceu" sem deixar de ser poeta, na medida em que "aquilo que aconteceu" (a mesma construção) não é necessariamente oposta à "verdade" poética.

Eu vou abrir uma exceção aqui, porque eu não acho que eu consigo explicar isso melhor que um aristotelista conservador do XIX. Acho que é o melhor modo de explicar isso, e se a pessoa ainda assim não entender eu tento o que posso, mas não sei se consigo melhor:

Até esse ponto, um poema tem sido assumido sempre ser um mito [mithos] uma história ficcional (veja 5. 1449b 9), ou inventada pelo próprio poeta (b12, b21) ou adaptada da lenda. Aristóteles, contudo, agora lembra que pode existir tal coisa como drama histórico, um em que incidentes são tirados da história real (genomena). Tais incidentes, ele explica, são assuntos legítimos para a poesia, se eles podem se exibir como prováveis e naturais, assim como acontecimentos reais.
A primeira coisa a se notar dessa passagem, que fecha todo o argumento é que, em um aspecto o fundamentalista está correto em que o "valor" do poeta não está no "fato" histórico, mas na "realidade" e "universalidade", mas todo o resto, inclusive na definição dos termos ele está errado. Segundo Aristóteles, o poeta pode usar "o que realmente aconteceu/a realidade histórica/ o fato histórico", mas os termos são os mesmos da obrigação histórica; na ficção ele só precisa falar do "universal" e do que "deve acontecer", mas quando ele usa "o que realmente ocorreu" ele tem o ônus histórico, e ele só pode usar na medida que alguns fatos históricos (i.e.: verdadeiros, ou "que realmente ocorreram") não são "possíveis"... É aquele aforismo paradoxal que o impossível pode acontecer, e o impossível acontece o tempo todo e é objeto da história. Para Aristóteles, o que importa é o "possível" (em termo técnico), e por isso o impossível fica de fora. Essa passagem, novamente, concorda, de que alguns eventos históricos são passíveis de boas obras (e Aristóteles tem bons exemplos, mas temo que só prova que o que "é verdade" para Aristóteles é racismo para a sociedade moderna), e que algumas não são "possíveis", como a de Alcibíades, e é matéria para a história. Ninguém hoje em dia concorda com esses preceitos, mas dentro dos conceitos da unidade isso é uma estética consistente e sabemos a dificuldade sobre as quais o autor teve de trabalhar. O fato é que, aqui, o poeta que usa a história deve ser tão correto com os fatos, como também deve ser criador. É uma situação complicada, que não prevê o anacronismo deliberado e intencionado (mal-intencionado, diriam alguns) de Virgílio, ou a reformulação de prosa em verso, ou o centão, ou a poesia romântica, ou o individualismo moderno. Aristóteles não justifica o teu nonsense e absurdo, então aos bons poetas o que resta é levantar com os próprios pés e construir sua obra, época, público e críticos...