segunda-feira, 23 de junho de 2014

Salmo 109 da Vulgata de Jerônimo (110)

Aqui novamente, dessa vez traduzindo um salmo daquela que é a coleção de livros mais famosa da sociedade ocidental. O salmo é o Salmo 109 da Vulgata de Jerônimo (ou São Jerônimo), o tradutor latino da bíblia. Na maioria das bíblias modernas (católicas ou protestantes) o salmo aparece como sendo o de número 110.

Como foi anunciado, a tradução foi feita a partir do texto latino, e não da versão hebraica original (pois não entendo uma palavra em hebraico), e apesar de contar com um dicionário hebraico (e os famosíssimos números Strong), mesmo onde o texto latino distinguia-se do hebraico preferi a opção lexical-sintática do texto latino, talvez com uma exceção ou outra. Como todos devem saber, a divisão do livro em versículos é bem posterior, no entanto, nessa tradução, os versículos são sempre uma estrofe cada. Os versos tem 8 sílabas sem o acento obrigatório na 4ª, com uma única exceção, um meio-verso. A tradução é poética, e não doutrinária, apesar da busca por respeitar o texto-fonte, o que me levou a algumas opções específicas como a tradução de virtutis por saber. Por fim, ouçam a peça Dixit Domunus do Händel ou do Vivaldi enquanto leem esse salmo.

109 - Vulgata (110)
David psalmus dixit Dominus Domino meo sede a dextris meis donec ponam inimicos tuos scabillum pedum tuorum
virgam virtutis tuae emittet Dominus ex Sion dominare in medio inimicorum tuorum
tecum principium in die virtutis tuae in splendoribus sanctorum ex utero ante luciferum genui te
iuravit Dominus et non paenitebit eum tu es sacerdos in aeternum secundum ordinem Melchisedech
Dominus a dextris tuis confregit in die irae suae reges
iudicabit in nationibus implebit cadavera conquassabit capita in terra multorum
de torrente in via bibet propterea exaltabit caput



Salmo 109 - Da Vulgata de Jerônimo
[De Davi]
Disse o senhor ao meu senhor:
Te assenta à minha mão direita
Até que os teu inimigos ponha
Como escabelo aos teus pés.

O cetro do saber que é teu
Enviará o Senhor de Sião
Para ti dominar em meio
Aos teus maiores inimigos.

Pois a partir de ti, no dia
De tua sabedoria, em luz
De santidade desde o útero
À estrela da manhã te fiz.

Jurou o teu Senhor e não
Se arrependerá jamais:
És sacerdote eternamente
Segundo a ordem de Melchisedech.

Está o senhor a tua direita
A quebrar reis no Dia da Ira.

Julgará todas as nações,
De cadáveres preencherá
E quebrará muitas cabeças
Por toda a terra.

E da torrente no caminho
Beberá, a cabeça erguendo.

Trad: Raphael Soares

terça-feira, 10 de junho de 2014

Issa e Robert Bly - Tradutor e traduzido

Não há muito o que falar... Faz mais de um ano que esse blog está abandonado. Vou tentar cumprir a promessa de fazer ao menos uma postagem por mês  Normalmente não sou bom em cumprir promessas feitas a mim mesmo, mas vá lá...

O que posso dizer de Issa? Issa é... é... diferente. Não diferente como todos os escritores orientais - que habitualmente costumamos buscar inúmeras significação para que possamos valorizá-los, mas que muitas vezes são apenas invenções provocadas pelo choque da ignorância: sim, somos ignorantes quando nos referimos à poética oriental (e alguns dos estudiosos orientais já perceberam isso), enquanto fazemos de tudo para fingir que conhecemos seus valores mais que o próprio povo que a produziu. - enfim, Issa não é assim. Já li várias vezes traduções (em português e inglês) da poesia Japonesa e Chinesa, por desconhecer ambas as línguas, e nenhum poeta me impressionou tanto como Issa, e parece ser esse poeta o que mais impressiona os ocidentais como um todo por ter aquilo que nós habitualmente mais prezamos na poesia de um "clássico": a universalidade; e talvez seja ainda mais "universal" que qualquer um dos nossos, por não ser universal no sentido de "centro-europeu". Issa é perfeitamente inteligível a nós, faz sua poesia (tipicamente japonesa) e nos dá prazer em ler. Não digo com isso que Issa é maior que Buson ou Bashô, mas Issa não é impenetrável como os outros dois mestres nipônicos: apesar de sua diferença, Issa nos é também semelhante. Em relação à literatura chinesa o caso é um pouco mais complicado: a literatura chinesa nos é muito mais legível por causa de seu processo de tradução, que muitas vezes cria textos de gosto ocidental "clássico" (Lira Chinesa de Machado de Assis, Cancioneiro Chinês de Feijó... etc...) ou "moderníssimo" (versões dos concretos, de Pound, etc), mas isso é algo a se comentar em outra ocasião.

Enfim, dos vários poetas japoneses que li Issa é o meu favorito, e o que mais busquei ler em outras línguas além do português. Não conheço a língua japonesa, então tive de escolher um intermediário inglês para a minha tradução. A opção mais óbvia seria a versão eletrônica e gratuita de dez mil poemas de Issa traduzidos por David Lanoue (Aqui: http://www.haikuguy.com/issa/), ou outra versão eletrônica, já que Issa é realmente muito popular, mas preferi uma outra versão: a de Robert Bly. Por que escolher a tradução de Bly? Provavelmente pelo fato de que por meio dele li e gostei muito de Tomas Tranströmer. Sim, não possui nada a ver com Issa! Outra coisa que me pesou na escolha foi o fato de que Bly fez uma seleção pequena de textos, de modo que eu pudesse traduzir todos. Também escolhi um poema de Bly para traduzir também, de modo a homenagear o tradutor e traduzido. As poesias de Issa foram retiradas do livro Winged Energy of Delight, The Selected Translations by Robert Bly, e o poema Call and Answer foi retirado do site oficial do autor (aqui: http://www.robertbly.com/r_p_callandanswer.html). Para ler os poemas de Issa em japonês, podem conferir (eu acho) esse site: http://www.janis.or.jp/users/kyodoshi/issaku.htm.

Por fim, a forma Haiku japonesa é feita em versos de 5/7/5 sílabas, contando todas as sílabas, e não somente até a tônica, como se faz em francês e português, bem como podem ser dispostos em três linhas ou linha única. Para essa tradução procurei manter o registro simples (mas não simplório) que aparenta ser característico da poesia japonesa e o metro, mas adequando ao verso português. Como é comum na nossa poética (desde a poética grega e latina), alguns versos contém uma sílaba a mais (geralmente após a tônica) que não é contado, enquanto outros possuem 5 ou 7 versos contados até sua sílaba átona final; apesar da versão de Bly ser em três linhas, optei por traduzir em linha única separando os versos por barra. Enfim, chega de papo e leiam os poemas.




Insects, why cry?
We all go
that way.

Insetos por quê | choram? Nós seguiremos | todos essa estrada.


Now listen, you watermelons—
if any thieves come—
turn into frogs!

Melancias, ouçam - | se vier quaisquer ladrões | torne-os sapos!



Leaping for the river, the frog
said, “Excuse
me for going first!”

Pulando no rio | disse o sapo: "desculpe-me | por ir primeiro!"


The night is so long,
Yes, the night is so long;
Buddha is great!

A noite é tão longa, | sim, a noite é tão... tão longa; | Buda é demais!



Morning glories, yes—
but in the faces of men
there are flaws.

Glórias da manhã - | mas em face ao ser humano | elas não são nada.


Lanky frog, hold
your ground! Issa
is coming!

Sapo magricela, |  fique onde está! Eu, Issa | estou chegando!


This line of black ants—
Maybe it goes all the way back
to that white cloud!

Tal linha de saúvas - | talvez todas se voltem | para a nuvem branca.



The old dog bends his head listening . . .
I guess the singing
of the earthworms gets to him.

O velho cão ouve atento... | Talvez lhe chegue aos ouvidos | o canto das minhocas.



Cricket, be
careful! I’m rolling
over!

Grilo, é bom tomar | cuidado! Rolando eu vou | te esmagar!

English translations by Robert Bly
Traduções em português: Raphael Soares



Call and Answer - Robert Bly

Tell me why it is we don’t lift our voices these days
And cry over what is happening. Have you noticed
The plans are made for Iraq and the ice cap is melting?

I say to myself: “Go on, cry. What’s the sense
Of being an adult and having no voice? Cry out!
See who will answer! This is Call and Answer!”

We will have to call especially loud to reach
Our angels, who are hard of hearing; they are hiding
In the jugs of silence filled during our wars.

Have we agreed to so many wars that we can’t
Escape from silence? If we don’t lift our voices, we allow
Others (who are ourselves) to rob the house.

How come we’ve listened to the great criers—Neruda,
Akhmatova, Thoreau, Frederick Douglass—and now
We’re silent as sparrows in the little bushes?

Some masters say our life lasts only seven days.
Where are we in the week? Is it Thursday yet?
Hurry, cry now! Soon Sunday night will come.




Clamor e Resposta - Robert Bly

Diga-me porque não levantamos nossas vozes hoje
E choramos pelo que está acontecendo. Não soubeste
Dos planos feitos para o Iraque e o degelo nos polos?

Disse a mim mesmo: "Vai, chora. Qual o sentido
De se tornar adulto e não ter voz alguma? Clama!
E veja qual será a resposta! Este é o Clamor e Resposta!"


Nós teremos de clamar especialmente alto para alcançar
Nossos anjos, que estão meio surdos; eles se escondem
Nos jarros cheios de silêncio durante nossas guerras.

Concordamos que foram tantas guerras que não podemos
Escapar do silêncio? Se não erguermos as vozes deixaremos
Outros (que somos nós mesmos) roubarem a casa.

Como escutamos os grandes arautos — Neruda,

Akhmatova, Thoreau, Frederick Douglass — e agora
Estamos silentes como passarinhos nos arbustos?

Alguns mestres dizem que nossa vida só dura sete dias.
Em que dia da semana estamos? Ainda é quinta?
Rápido, grite agora! Em breve vem a noite de domingo.

Tradução: Raphael Soares