quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

As traduções da Eneida de Virgílio, pt.II - Lima Leitão

O médico português Lima Leitão, entre 1818 e 1819, publicou, no Rio de Janeiro, uma boa amostragem das obras de Virgílio em 3 volumes, sendo o primeiro (de 1818) contendo As Bucólicas e as Geórgicas, e os outros dois volumes (de 1819) contendo os 12 cantos da Eneida. Foi, ao que eu saiba, a primeira vez que as Bucólicas e as Geórgicas foram publicadas em português, e a segunda ou terceira tradução da Eneida. Mesmo sendo uma edição publicada no Brasil e dedicado ao Brasil (com o gigantesco título de Monumento à Elevação da Colônia do Brazil a Reino e ao Estabelecimento do Tríplice Império Luso. As Obras de Públio Virgílio Maro Traduzidas em Verso Português, e Anotada Pelo Doutor Antônio José de Lima Leitão), trata-se de uma tradução portuguesa, feita por um médico e diplomata português que estivera no Brasil por esse período apenas de passagem. Esta tradução acabou tendo uma sorte ainda mais triste que a predecessora: não é lida, comentada, estudada e, ao que eu saiba, nunca sequer foi reeditada, e para os poucos que sabem de sua existência é uma mera curiosidade bibliográfica, por ser uma tradução que antecede a famosa versão de Odorico Mendes. Há muito o que se poderia aprender com essa versão se tivéssemos mais atenção a olhá-la.

Há muitas coisas marcantes na tradução de Lima Leitão, e a primeira delas é em relação à sua gênese: o próprio tradutor afirma que saíra em 1816, mas que não pudera rever pessoalmente a impressão e estaria cheia de erros (não consegui localizar essa publicação; talvez esteja permanentemente perdida) e faltaria a revisão que deixaria ela em seu estado final, que ainda não seria atingido com a publicação de 1819. Segundo Lima Leitão, seu primeiro pensamento como tradutor seria que "o tradutor poeta devia sacrificar a harmonia à concisão", mas que durante o período entre 1816 a 1818 em que trabalhou na sua versão da Eneida já pensava que as duas "deviam andar lado a lado", o que já dá para ter alguma ideia das diferenças entre as duas versões. Em geral, a tradução de Lima Leitão é bem mais concisa que a de João Franco Barrento, porém um pouco maior que a versão de Odorico Mendes. Normalmente Lima Leitão mantém o mesmo número de versos entre o texto latino e o português, e o decassílabo, porém quando necessário ele acrescenta alguns versos para evitar uma obscuridade excessiva que não esteja em harmonia com o texto original.

Para além da gênese dessa tradução, suas características intrínsecas levam o leitor imediatamente a se perguntar o porquê do descaso com essa edição. Uma reedição atualizada, profundamente corrigida e melhorada dessa tradução (à moda das sucessivas edições bíblicas sob o rótulo "Almeida") poderia se tornar uma das melhores edições disponíveis em língua portuguesa, se seus defeitos pudessem ser suplantados e suas qualidades (ímpares, ausentes em outras edições portuguesas) mantidas à risca. Em primeira instância vem o fato de que, aparentemente, essa é a única tradução de Virgílio que toma como base um texto crítico, ou ao menos é a única edição portuguesa em verso que anota as inúmeras variações (as variora) presentes no texto virgiliano, o que por si só é, ao meu ver, algo muito importante ao lidarmos com os textos clássicos, os quais muitos leitores sequer se dão conta dos inúmeros problemas textuais inerentes à obra e sua transmissão (e tradução). Mesmo não sendo exaustiva e profundamente crítica, esta tradução virgiliana apresenta "A Dedicatória da Eneida" e também é ela a única a apresentar o início alternativo da Eneida:
Ille ego, qui quondam gracili modulatus avena
Carmen et egressus silvis vicina coegi
Ut quamvis avido parerent arva colono,
Gratum opus agricolis: at nunc horrentia Martis.

Que traduz por:
Eu, que outr'hora cantei na avena humilde,
E, as florestas deixando, fiz sujeitas
Do ávido agrícola as vizinhas lavras,
Gratos presentes aos frugais colonos;
Do ríspido Mavorte hórridas hoje
Que põe ao início do poema principalmente por achar os versos "dignos de Virgílio", sem esquecer de lembrar a discussão textual a respeito da passagem, se obra virgiliana ou adição de um gramático tardio. Não apenas isso, as notas recorrentemente chamam atenção às variações textuais da Eneida, como de pontuação (nota 7, pg.17 do volume 2), relações textuais com outros textos da antiguidade (nota 1, pg. 21 do volume 2), bem como comparações entre as traduções, variora (embora poucos anotados) e as notas comuns explicando elementos da mitologia entre outros. Uma profunda revisão, correção e atualização, bem como uma ampliação das notas poderia gerar uma belíssima edição da Eneida.



Nos detendo mais às qualidades do texto em si, percebemos alguns de seus mais graves defeitos, defeitos (e/ou qualidades, dependendo do ponto de vista) que foram quase todos repetidos pelo próximo tradutor da Eneida: Odorico Mendes, de modo que é ainda mais difícil de entender o porquê da tradução de Lima Leitão ficar tão marginal em relação à de Odorico Mendes. Por um lado, é verdade que ela é poeticamente inferior se comparada com a versão de Barrento, Odorico ou de Carlos Alberto Nunes, mas a diferença não chega a ser tão gritante em toda a obra, e se a de Lima Leitão é desigual, também o é a de Odorico Mendes. As mesmas qualidades (e defeitos, de acordo com quem é o crítico) que se tem apontado nas versões de Odorico se encontram na de Lima Leitão, a saber: obscuridade decorrente da concisão do hexâmetro virgiliano em decassílabos (embora a de Lima Leitão seja um pouco menos concisa que a de Odorico), o abuso de latinismos (à moda de Camões, diga-se de passagem), a abundância de neologismos, extrema derivação (substantivos em verbo e vice-versa). Há, é claro, bastantes escolhas que parecem infelizes, em ambas as versões, mas em alguns momentos a tradução de Lima Leitão consegue aquele rompante de verdadeira poesia:
"Morramos, atiremo-nos às armas:
Só acha salvação quem é vencido
Se ousa, sem a esperar, morrer matando."
- Canto 2

No entanto Eneias vê n'um vale oculto
Selva apartada, arbustos sonorosos,
E o Letes, que pacíficos os banha.
Na serena estação tantas abelhas
Poisam nos prados por diversas flores,
E adejam circundando os brancos lírios;
C'o zumbido murmura o campo inteiro -
Canto 6
 mas em alguns momentos consegue ser bem sem graça:
"Escuta; serei breve. Eu, não te iludas,
Nunca a furto esperei abandonar-te,
Nem pretextei no amor visos de núpcias;
A tal fim me não trouxe aqui meu fado."
- Canto 3
e outras vezes soa bem como algo que Odorico Mendes faria:
"Pérfido, tu de Vênus não és filho,
Nem Dárdano é o autor da prole tua:
Gerou-te em dura penha o hórrido Cáucaso,
Mamaste o leite das Hyrcanas tigres [...]
Ai, tartáreo furor cala em meu peito!
Ora Apolo gríneo, e Lício orac'lo,
Ora o núncio dos Céus, que o mandou Jove
Pelas auras veloz é o duro império.
Digno empenho dos Árbitros do Globo!"
- Canto 3
 E por fim, posto a mesma passagem que postei no comentário à versão de João Franco Barrento (comentário e texto latino da passagem aqui), que é uma das minhas passagens favoritas da obra, já nos últimos momentos, quando a deusa Juno se dá por vencida.
Com vulto humilde assim responde a Deusa :
„ Apenas conheci de Jove as ordens
„ Constrangida deixei, e Turno, e a terra.
„ Se eu inda as ignorasse, entre estas nuvens
„ Não me viras sofrer ultrajes tantos:
„ Mas de flamas cercada entre as coortes
„ Havia eu sufocar Ilion em guerras.
„ Sim, eu confesso, persuado Juturna
„ De ao miserando irmão correr co'a espada;
„ Louvei sua alta audácia em dar-lhe a vida:
„ Não lhe induzi que usasse ou de arco, ou flechas:
„ Juro-o do Styx pela onda inexorável,
„ Juramento, que os Numes não quebrantam.
„ Eu já cedo, e enfastiada à guerra fujo.
„ Graça te rogo não sujeita ao fado,
„ A bem do Lácio, aos teus a bem da glória:
„ Feliz consórcio embora as pazes firme,
„ O pacto, e lei adune os povos ambos;
„ Mas não ordenes que do Lácio os filhos
„ Mudem de traje, ou língua sonorosa,
„ Ou tomem o atro nome de Troianos.
„ Seja no Lácio eterna a glória de Alba;
„ Com a Ausônia virtude a excelsa Roma
„ Faça admirar os Céus, dê leis ao Mundo:
„ Acabe Ilion, até seu nome acabe.
 Na versão de João Franco Barrento essa passagem não ganhou muito com o "embelezamento" típico da versão, e soa bem mais solene que talvez queira dizer o texto latino. A versão de Lima Leitão é bem mais direta, e nos mostra a resignação e o seu último pedido a Jove. É uma bela passagem, chocante, marcante, que numa versão mais concisa e harmônica consegue ser bem recuperada em sua força, por Lima Leitão. A passagem é ligeiramente maior que o texto latino original, mas não tão maior quanto a de João Barrento (que ultrapassa o dobro de versos). A versão de Odorico Mendes possui a mesma quantidade de versos do texto virgiliano, mantendo o decassílabo e perdendo bastante dos detalhes do diálogo, porém ganhando peso e força, fazendo uma Juno ainda mais agressiva do que é em sua batalha agora em resignação, principalmente na coda final, em que lança um severo: "herde Roma/O itálico valor, propague e brilhe:/Tróia acabou, também seu nome acabe.". Mas a versão de Odorico Mendes é conversa para o próximo episódio.

2 comentários:

  1. Caro Elaphar:
    Parabenizo pelo blog e comento uma postagem particular: livros que precisam de tradução.
    Sobre Lermontov, há uma tradução do conto "Bela", por Fernando Lacerda e Ary de Almeida, na coleção Antologia do conto russo - volume 2, publicada pela editora Lux (antiga editora carioca conhecida por sua ligação com o Partido Comunista Brasileiro) em 1961. José Lins do Rego traduziu (provavelmente do francês) o conto "O fatalista" na obra intitulada "O livro de ouro dos contos russos", organizada por Rubem Braga para a Ediouro (sem data). Mais recentemente, na "Nova antologia do conto russo", publicada pela editora 34, Aurora Fornoni Bernardini traduziu o conto Taman.
    Abraço.

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