domingo, 12 de abril de 2015

As traduções da Eneida de Virgílio, pt.III - Odorico Medes

Estou de volta depois de mais um mês sem postar nada. Como os poucos que me leem já devem ter percebido,  sou péssimo em matéria de cumprir minhas palavras em relação ao blog, mas o que fazer? Ninguém me obriga! Retomo agora os comentários sobre as traduções da Eneida de Virgílio em português, agora com a tradução do maranhense Manuel Odorico Mendes. As duas primeiras traduções eram portuguesas (desconsiderando a tradução de Da Costa e Silva e de outro que nunca lembro, que não pude ler ainda), e as duas seguintes por brasileiros nascidos no Maranhão, a Atenas Brasileira.

Manuel Odorico Mendes nasceu em São Luís (Luiz, na época) em 1799 e morreu em 1864 em Londres. Foi um dos primeiros escritores românticos do Brasil, e sobreviveu a vários, embora não tenha vivido tanto. Fora louvado por grande parte dos escritores de sua época, entre eles Sílvio Romero e Machado de Assis, como poeta particularmente pelo poema Hino à Tarde, super popular no século XIX. Como tradutor, nossos dias tem atribuído falsamente  a ideia de que não era apreciado, por conta das críticas que Silvio Romero fez de suas traduções de Virgílio e Homero, e da mania que temos de acreditar, hoje, que Haroldo de Campos "descobriu o Brasil", trazendo "à luz" (a expressão corrente é essa mesmo) poetas revolucionários que ninguém (a modalização corrente é essa mesmo) apreciava, como o tradutor Odorico Mendes e os poetas Sousândrade e Pedro Kilkery (eu juro que ouço muito isso... mesmo...). Não vou me ater a quanto ao caso Sousândrade (mais grave, ao qual os irmãos Campos deram muitíssimas contribuições para o caráter Mainstream do poeta, embora também sejam responsáveis pelo fato de que não se lê nem se edita mais nada que não seja O Guesa), mas especificamente ao caso Odorico: a 1ª edição da Eneida vendeu pornograficamente bem, e o autor a viu reeditada inúmeras vezes em vida (e isso no século XIX); a tradução de Odorico sempre foi a mais popular em português, desde sua primeira edição, e inúmeros escritores apontam, ininterruptamente, o valor que os críticos da época davam a obra. Eis a declaração de Machado de Assis, em 1964/65:

Odorico  Mendes  é  uma  das  figuras  mais imponentes  de  nossa  literatura.  Tinha  o  culto  da  antiguidade,  de  que  era,  aos  olhos  modernos, um intérprete perfeito. Naturalizara Virgílio na língua de Camões; tratava de  fazer o mesmo ao divino Homero. (Grifo meu)

E a de Silveira Bueno, 90 anos depois:

Neste ponto, houve-se o tradutor maranhense com a mesma habilidade com que se houveram os italianos, os franceses: não só traduziu, mas, especialmente, colaborou, num grande esforço de adaptação vocabular. Como já havia feito Camões, passou diretamente do grego para o português palavras e palavras, sem a menor adequação fonética. Outras vezes, compôs, com elementos gregos, vocábulos que correspondessem ao termo intraduzível por não encontrar correspondente nos dicionários da língua portuguesa. Nunca o fez, porém, irrefletidamente: procurou sempre apoiar-se nos clássicos do nosso idioma e quando estes falharam, nos tradutores que o haviam precedido, principalmente, no italiano Ippolito Pindemonte. (No prefácio para a Odisséia, de 1954)

Enfim, se há muitas observações negativas (e o há também em Campos), é pelo fato de que nenhuma tradução escapa a isso.




Enfim, falei tanto e não cheguei a Obra. Como o de costume, e creio que para a maioria das pessoas que já tiveram a vontade de ler a Eneida, muito provavelmente leram primeiro pela edição de Odorico Mendes, tanto por ela ser a mais popular, como por existir em edições variabilíssimas, para todos os bolsos. Não foi diferente para mim: o primeiro contato que eu tive com a Eneida de Virgílio foi na tradução de Odorico Mendes, na insimpática edição da Jackson que contava com a curiosíssima versão das Geórgicas, em tradução de Antônio Feliciano de Castilho (um dia falo mais dele por aqui... ou não... não prometo nada). Li-o a pouco mais de 4 anos atrás (tinha 18, até então), e logo depois tive a oportunidade de ver, em Belém, Dido e Enéias, de Purcell. Mesmo lendo a obra até o fim e apreciado muito o livro como todo, achava muito curioso como Eneias tornaria-se o modelo de herói, sendo um herói tão interessante quanto uma inflamação no apêndice (a célebre anedota de Yeats conheceria muito tempo depois, então apresentava-o com uma mais ou menos parecida com essa), e achava ainda mais curioso Purcell ter escolhido os romance de Dido e Enéias para sua ópera.

Não digo com tudo isso que a Eneida é desinteressante ou que a tradução de Odorico Mendes é ruim, o que de maneira alguma o é, mas que, na ocasião da leitura, esperava uma série de coisas que não vi na obra virgiliana, principalmente com respeito ao herói Eneias. Com o tempo e as subsequentes leituras da Eneida em várias traduções (e recente releitura de todas), vi que Eneias continua um belo chute nas bolas, mas se existe uma tradução em que a figura do herói fica ainda mais fraca e desinteressante, essa é a tradução de Odorico Mendes. Particularmente no que tange as maiores qualidades da tradução de Odorico, a saber sua concisão, energia vocabular, alternâncias sintáticas e léxico inaudito - características que são hora vistas como "monstruosidades escritas em português macarrônico" ora como "provas de bom senso e mérito poético", ora como "inovações grandiosas à poética nacional" ora como "sempre de acordo com a tradição dos clássicos"; não dá para entender os críticos, de qualquer modo - tais qualidades não conseguem ser qualidades em todas as ocasiões. Explico: a concisão mendeana (não sei se a concisão em si) não ajuda nas passagens das cenas de Dido e Eneias (e também não combinam com a imaginada grandiloquência e suposta precisão das ordens de Jove, mas isso é outra coisa). Dido, na tradução de Odorico Mendes chega a ser superior à personagem de Eneias (e o parece ser na própria peça, ao menos os comentaristas modernos tendem a essa opinião... a visão moderna dos antigos tem dessas coisas), mas apenas nos seus momentos mais vigorosos de ódio, enquanto é morna, em matéria de linguagem, nas cenas de amor (isso comparado principalmente às outras traduções, e apenas em matéria de qualidade do texto em português, e não em "fidelidade em si", o qual muito provavelmente a tradução de Odorico ganha apenas da de Franco Barrento). Consigo extrair dois momentos super brilhantes da tradução de Odorico, referente à personagem Dido:
Nem mãe deusa, nem Dárdano hás por tronco;
Gerou-te o Cáucaso em penhascos duros,
Traidor! mamaste nas hircanas tigres.
Que dissímulo? a que desdém me guardo?
Deu-me ao pranto uma lágrima, um suspiro?
Da amante se doeu? dignou-se a olhar-me?
Que afronta é mais pungente?... Ah que até Juno
Nem Satúrnio isto vê com retos olhos.
Fé segura não há. Náufrago e pobre
O recolhi, demente o pus no trono,
Do estrago as naus remi, da morte os sócios.
[...] Com negro facho ao longe hei-de acercar-te;
E, quando a morte fria aos órgãos solva
O almo alento, ser-te-ei contínua sombra,
Terás o pago, hei-de, perverso, ouvi-lo,
A nova há-de baixar-me ao centro escuro.
 E também a clássica cena do suicídio:
[...] Em cróceas penas,
Cambiando cores mil do Sol oposto,
Róscida a núncia vem parar sobre ela:
"O tributo a Plutão mandada levo;
Do corpo eu to desligo." Disse, e o corta:
Foi-se o calor e evaporou-se a vida.
E com ambas as cenas dá para se imaginar o como a concisão afeta a linguagem da personagem, bem como são muito características da linguagem mendeana na tradução.


Como falar muito sempre cansa, não vale a pena comentar muito sobre como Odorico Constrói cada cena, e em quais o seu sucesso é maior e qual o menor em comparação com outros tradutores (talvez fale mais dos aspectos militares ao falar da tradução de Carlos Alberto Nunes; digo talvez porque sempre escrevo no improviso e num chute neste blog, por isso não garanto que me lembre ou que ache interessante na hora em que estiver escrevendo). Nem há tanto mais o que falar da versão de Odorico, pois todos a leem (tá legal, Virgílio não está muito em alta esses tempos) e muito já foi dito dessa tradução, que de longe também é a mais estudada, embora eu particularmente tenha minhas implicâncias com algumas considerações meio "lugares-comuns" a respeito dela (citando uma: Odorico Mendes é O precursor da "tradução criativa" no Brasil). De longe, o maior mérito de Odorico é construir uma tradução profundamente poética em alguns momentos, que nos traz grande prazer pelo confronto com o livro (lê-lo é uma pequena batalha, mas saborosa) e a incrível coincidência de que todas as suas qualidades citadas (ou defeitos, para alguns) causam um efeito incrível e poderoso nas passagens da deusa Juno, o que pode explicar o sucesso da tradução mesmo em épocas que poderia-se esperar o desprezo. Até hoje, a passagem que mais gosto, em todos esses anos e em todas as 4 traduções da Eneida a que tive acesso, é a passagem que postei para comparação em todas as versões comentadas, e na qual a de Odorico Mendes sai-se incrivelmente superior às demais. São as últimas palavras da deusa Juno no livro. Deliciem-se, como eu sempre me deliciei com essa passagem, que me congela a espinha:
E submissa contesta a irmã Satúrnia:
“Teu querer conhecendo, eu constrangida
Abandonei, senhor, a Turno e o mundo;
Senão, curtindo ultrajes, não me viras
Neste ar sozinha, mas na ação, de flamas
Cingida, em prélios consumindo os Frígios.
Sim, a ajudar o irmão suadi Juturna;
Louvei que por salvá-lo ousasse tudo,
Mas não que de arco e setas contendesse:
Da implacável Estige à fonte apelo,
Jura tremenda aos superiores numes.
Desisto alfim; batalhas já me enojam.
Favor obsecro não sujeito aos fados,
Pede-o Itália e dos teus a majestade:
Casamentos embora a paz componham,
E leis o pacto asselem; não permitas
Que os Latinos indígenas, perdido
O antigo nome, Teucros se apelidem,
Nem mudem língua e trajo. Eterno viva
O Lácio, os reis Albanos; herde Roma
O itálico valor, propague e brilhe:
Tróia acabou, também seu nome acabe."
Uma passagem grandiosa, digna de uma epopeia clássica (embora, ao que me parece, o texto latino [que pode ser achado no comentário à tradução de Barrento] é menos incisivo e a fala de Juno soa mais submissa, mas não sou um grande latinista, e isso nem me importa). Nesses versos recaem toda a grandiosidade de Juno, e é o sumo das qualidades de Odorico Mendes tradutor. Ainda tenho a esperança de que a Eneida venha ser mais lida, bem como novas traduções saiam e as clássicas sejam reeditadas, mas a edição de Odorico ainda é, e deve ser, uma daquelas versões que sempre podemos ler e encontrar. Não esperem o comentário da última tradução, comprem imediatamente uma Eneida, em verso, claro. Na próxima teremos a última postagem, sobre a tradução de Carlos Alberto Nunes.

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