quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Walter Savage Landor - Mild is the Parting Year

Ressuscitando o blog, já muitas vezes abandonado, para essa postagem de ano novo. Para falar a verdade, era para ter sido publicada no ano passado (2014), em que planejei publicar duas traduções de poemas de natal, e tanto lá quanto aqui meus planos originais não foram exatamente cumpridos. Queria publicar o poema de Christina Rossetti e o fragmento de Wordsworth (que é um fragmento conhecidíssimo de um poema que, em absoluto, ninguém lê). Para o ano, queria ter traduzido os poemas Mild is the Parting Year, de Landor e The Darkling Thrush, de Thomas Hardy. Depois que perdi o prazo, havia prometido a mim mesmo trazer os 2 juntos do poema da Dickinson de número 296 (na numeração de Johnson, que inicia com "One Year Ago"), que segundo a Unesp ainda é inédito em português. Desnecessário dizer que me esqueci da promessa, e para não perder ao menos o clima trago uma tradução do poema do Landor somente, com alguns comentários sobre o texto.

O poema de Landor não é tão irônico ou profundo como o de Hardy (e é difícil comparar com o da Dickinson que é um que, em absoluto, não sei julgar). Walter Savage Landor é, normalmente, conhecido como escritor vitoriano, amigo dos principais poetas do período, mas o fato é que Landor foi um romântico que viveu demais (nasceu apenas 3 anos de Coleridge, e muitos anos antes de Keats). Como é uma tendência da crítica romântica, devido o fato de seus maiores poetas ou terem morrido jovens (como Keats, Shelley, Biron) ou terem quase completamente parado de escrever bons poemas na velhice (como Wordsworth), tem-se a impressão de que muitos poetas menores que viveram muito tenham simplesmente se esgotado (Odorico Mendes faz um comentário até a respeito de ser a poesia coisa de Jovens e que se desgasta na velhice, mas o fato é que isso é exceção e não regra), o que ao menos no caso do Landor não pode ser verdade.

A poesia de Landor não chega a ser vitoriana em nenhum momento, seja lá quais princípios estéticos que unem e separam poetas tão díspares e gêmeos como Blunt, Tennyson, os Brownings e os Rossettis. Landor foi romântico, particularmente do tipo satírico do Byron tardio (este, herdeiro de Pope), em que se encaixam seus melhores poemas. Devido seu talento de jornalismo e ensaística, a veia satírica se sobressaía à lírica, e sua melhor e mais desigual obra, as Imaginary Conversations (que viria a influenciar um vitoriano como Browning, e não o contrário) estão neste clima de sátira, drama, jornalismo e ensaio. Odiava sonetos de todo coração, e escreveu muitos poemas atacando-os, bem como atacando a sociedade e os artistas como um todo, mas sempre num espírito romântico.

No entanto, de fato, o espírito romântico envelhece e não parece envelhecer muito bem (diferentemente dos vitorianos, que em geral tem suas obras tardias ou mediais superiores às primeiras, excetuando-se, ao meu ver, Swinburne). Porém com Landor, um romantismo velho e cansado não significa um mal romantismo. Caso similar acontece com Auden, que possui seu segundo estilo (o Auden americano, em oposição ao inglês) claramente mais "envelhecido" que o primeiro, mas não necessariamente pior nem melhor (embora existam partidários contra o primeiro, o segundo e ambos). As sátiras na obra tardia de Landor se tornam menos agressivas, porém mais sutis. A melancolia em seus últimos poemas vão se tornando mais realistas (e, por isso mesmo, mais surreais): se na juventude o poeta se via como o velho melancólico se arrependendo das coisas que não fez (ou que todos fazem, mas o jovem vê como sacrílego), na velhice é o velho tentando não se arrepender daquilo que fez ou não, e é esse o espírito deste poema de ano novo.

O poema Mild is the Parting Year foi publicado no livro Gebir, Count Julian, em 1931, porém a datação dos poemas é algo complicada e puramente especulativa. O próprio Count Julian, segundo o autor, fora escrito aos 20 anos do poeta (1795, aprox.), teve um manuscrito perdido e algumas adições ao fim do livro feitas próximo da data de publicação (mas sem dúvidas outras no próprio texto). Há claramente no livro alguns poemas anteriores à primeira versão de Count Julian (1793 deve ser o mais antigo), e muitos bem próximos da data de publicação. Rose Aylmer ainda é um poema de juventude, escrito aos 25 em 1800, enquanto Mild is the Parting Year (que é o último poema da série dedicada a Ianthe) é difícil de datar. Landor escreveu poemas a Ianthe (Jane Swift, mas idealizada e romantizada) pelo menos entre 1803 a 1829, pouco antes da publicação de Count Julian, em que publicou 31 poemas sob o título Ianthe. Minha opinião é ser esse livro sobre os fins de ano de 1829, e portanto da fase mais tardia do escritor (lembrando que, normalmente pensamos no romantismo acabando em 1824, com a morte de Byron), não apenas por ser o último poema do livro, mas pelo seu próprio estilo.

O poema é vazado em linguagem simples, e a melancolia não é tratada em termos apoteóticos. A ideia é simples: o ano está indo, com isso a vida passa e não tem volta. 3 versos do poema (1,3 e 4 da primeira estrofe) contam tudo o que o poema contém de objetivo, mas o resto do poema é de uma sutil beleza e imagística paradoxal. O orvalho que está caindo (enquanto o ano ainda não foi, mas está partindo) tem um aroma doce, mas o dia partindo não tem aroma (bálsamo significa remédio e perfume aqui: o dia que se vai é sem remédio, mas também sem perfume em oposição ao orvalho que cai antes do ano se ir).

O aguardar do poeta na segunda estrofe é sintaticamente ambíguo. O poeta aguarda que chegar ao fim? O dia (e por tabela, o ano) ou a vida, já que ambas foram tratadas no parágrafo anterior? Há a associação do fim da vida, e o poeta está pronto para ir, aguarda o fim e namora o terror e escuridão que dela advém. Por fim, temos a cereja do bolo do poema. O que me faz ver Landor como um romântico desgastado, mas grande. Uma fina ironia e paradoxo no seu último grito, o lamentar não ter lamentado. O lamento, que poderia tudo acalmar não cairá mais nem no peito (nem no corpo, fisicamente, durante a vida) e nem na tumba. É o único lamento do poeta: a falta do lamento.



Mild is the Parting Year - Walter Savage Landor

Mild is the parting year, and sweet
         The odour of the falling spray;
Life passes on more rudely fleet,
         And balmless is its closing day.

I wait its close, I court its gloom,
         But mourn that never must there fall
Or on my breast or on my tomb
         The tear that would have soothed it all.

Leve é o Ano que se Vai - Walter Savage Landor

Leve é o ano que se vai, e é doce
         O odor do orvalho que agora cai;
Em correria rude a vida foi-se,
         E sem bálsamo é o dia que se vai.

Aguardo o fim, namoro sua penumbra,
         É triste que não vai cair jamais
Seja em meu peito ou seja em minha tumba
         O que acalmaria tudo: os ais.
Trad: Raphael Soares

domingo, 12 de abril de 2015

As traduções da Eneida de Virgílio, pt.III - Odorico Medes

Estou de volta depois de mais um mês sem postar nada. Como os poucos que me leem já devem ter percebido,  sou péssimo em matéria de cumprir minhas palavras em relação ao blog, mas o que fazer? Ninguém me obriga! Retomo agora os comentários sobre as traduções da Eneida de Virgílio em português, agora com a tradução do maranhense Manuel Odorico Mendes. As duas primeiras traduções eram portuguesas (desconsiderando a tradução de Da Costa e Silva e de outro que nunca lembro, que não pude ler ainda), e as duas seguintes por brasileiros nascidos no Maranhão, a Atenas Brasileira.

Manuel Odorico Mendes nasceu em São Luís (Luiz, na época) em 1799 e morreu em 1864 em Londres. Foi um dos primeiros escritores românticos do Brasil, e sobreviveu a vários, embora não tenha vivido tanto. Fora louvado por grande parte dos escritores de sua época, entre eles Sílvio Romero e Machado de Assis, como poeta particularmente pelo poema Hino à Tarde, super popular no século XIX. Como tradutor, nossos dias tem atribuído falsamente  a ideia de que não era apreciado, por conta das críticas que Silvio Romero fez de suas traduções de Virgílio e Homero, e da mania que temos de acreditar, hoje, que Haroldo de Campos "descobriu o Brasil", trazendo "à luz" (a expressão corrente é essa mesmo) poetas revolucionários que ninguém (a modalização corrente é essa mesmo) apreciava, como o tradutor Odorico Mendes e os poetas Sousândrade e Pedro Kilkery (eu juro que ouço muito isso... mesmo...). Não vou me ater a quanto ao caso Sousândrade (mais grave, ao qual os irmãos Campos deram muitíssimas contribuições para o caráter Mainstream do poeta, embora também sejam responsáveis pelo fato de que não se lê nem se edita mais nada que não seja O Guesa), mas especificamente ao caso Odorico: a 1ª edição da Eneida vendeu pornograficamente bem, e o autor a viu reeditada inúmeras vezes em vida (e isso no século XIX); a tradução de Odorico sempre foi a mais popular em português, desde sua primeira edição, e inúmeros escritores apontam, ininterruptamente, o valor que os críticos da época davam a obra. Eis a declaração de Machado de Assis, em 1964/65:

Odorico  Mendes  é  uma  das  figuras  mais imponentes  de  nossa  literatura.  Tinha  o  culto  da  antiguidade,  de  que  era,  aos  olhos  modernos, um intérprete perfeito. Naturalizara Virgílio na língua de Camões; tratava de  fazer o mesmo ao divino Homero. (Grifo meu)

E a de Silveira Bueno, 90 anos depois:

Neste ponto, houve-se o tradutor maranhense com a mesma habilidade com que se houveram os italianos, os franceses: não só traduziu, mas, especialmente, colaborou, num grande esforço de adaptação vocabular. Como já havia feito Camões, passou diretamente do grego para o português palavras e palavras, sem a menor adequação fonética. Outras vezes, compôs, com elementos gregos, vocábulos que correspondessem ao termo intraduzível por não encontrar correspondente nos dicionários da língua portuguesa. Nunca o fez, porém, irrefletidamente: procurou sempre apoiar-se nos clássicos do nosso idioma e quando estes falharam, nos tradutores que o haviam precedido, principalmente, no italiano Ippolito Pindemonte. (No prefácio para a Odisséia, de 1954)

Enfim, se há muitas observações negativas (e o há também em Campos), é pelo fato de que nenhuma tradução escapa a isso.




Enfim, falei tanto e não cheguei a Obra. Como o de costume, e creio que para a maioria das pessoas que já tiveram a vontade de ler a Eneida, muito provavelmente leram primeiro pela edição de Odorico Mendes, tanto por ela ser a mais popular, como por existir em edições variabilíssimas, para todos os bolsos. Não foi diferente para mim: o primeiro contato que eu tive com a Eneida de Virgílio foi na tradução de Odorico Mendes, na insimpática edição da Jackson que contava com a curiosíssima versão das Geórgicas, em tradução de Antônio Feliciano de Castilho (um dia falo mais dele por aqui... ou não... não prometo nada). Li-o a pouco mais de 4 anos atrás (tinha 18, até então), e logo depois tive a oportunidade de ver, em Belém, Dido e Enéias, de Purcell. Mesmo lendo a obra até o fim e apreciado muito o livro como todo, achava muito curioso como Eneias tornaria-se o modelo de herói, sendo um herói tão interessante quanto uma inflamação no apêndice (a célebre anedota de Yeats conheceria muito tempo depois, então apresentava-o com uma mais ou menos parecida com essa), e achava ainda mais curioso Purcell ter escolhido os romance de Dido e Enéias para sua ópera.

Não digo com tudo isso que a Eneida é desinteressante ou que a tradução de Odorico Mendes é ruim, o que de maneira alguma o é, mas que, na ocasião da leitura, esperava uma série de coisas que não vi na obra virgiliana, principalmente com respeito ao herói Eneias. Com o tempo e as subsequentes leituras da Eneida em várias traduções (e recente releitura de todas), vi que Eneias continua um belo chute nas bolas, mas se existe uma tradução em que a figura do herói fica ainda mais fraca e desinteressante, essa é a tradução de Odorico Mendes. Particularmente no que tange as maiores qualidades da tradução de Odorico, a saber sua concisão, energia vocabular, alternâncias sintáticas e léxico inaudito - características que são hora vistas como "monstruosidades escritas em português macarrônico" ora como "provas de bom senso e mérito poético", ora como "inovações grandiosas à poética nacional" ora como "sempre de acordo com a tradição dos clássicos"; não dá para entender os críticos, de qualquer modo - tais qualidades não conseguem ser qualidades em todas as ocasiões. Explico: a concisão mendeana (não sei se a concisão em si) não ajuda nas passagens das cenas de Dido e Eneias (e também não combinam com a imaginada grandiloquência e suposta precisão das ordens de Jove, mas isso é outra coisa). Dido, na tradução de Odorico Mendes chega a ser superior à personagem de Eneias (e o parece ser na própria peça, ao menos os comentaristas modernos tendem a essa opinião... a visão moderna dos antigos tem dessas coisas), mas apenas nos seus momentos mais vigorosos de ódio, enquanto é morna, em matéria de linguagem, nas cenas de amor (isso comparado principalmente às outras traduções, e apenas em matéria de qualidade do texto em português, e não em "fidelidade em si", o qual muito provavelmente a tradução de Odorico ganha apenas da de Franco Barrento). Consigo extrair dois momentos super brilhantes da tradução de Odorico, referente à personagem Dido:
Nem mãe deusa, nem Dárdano hás por tronco;
Gerou-te o Cáucaso em penhascos duros,
Traidor! mamaste nas hircanas tigres.
Que dissímulo? a que desdém me guardo?
Deu-me ao pranto uma lágrima, um suspiro?
Da amante se doeu? dignou-se a olhar-me?
Que afronta é mais pungente?... Ah que até Juno
Nem Satúrnio isto vê com retos olhos.
Fé segura não há. Náufrago e pobre
O recolhi, demente o pus no trono,
Do estrago as naus remi, da morte os sócios.
[...] Com negro facho ao longe hei-de acercar-te;
E, quando a morte fria aos órgãos solva
O almo alento, ser-te-ei contínua sombra,
Terás o pago, hei-de, perverso, ouvi-lo,
A nova há-de baixar-me ao centro escuro.
 E também a clássica cena do suicídio:
[...] Em cróceas penas,
Cambiando cores mil do Sol oposto,
Róscida a núncia vem parar sobre ela:
"O tributo a Plutão mandada levo;
Do corpo eu to desligo." Disse, e o corta:
Foi-se o calor e evaporou-se a vida.
E com ambas as cenas dá para se imaginar o como a concisão afeta a linguagem da personagem, bem como são muito características da linguagem mendeana na tradução.


Como falar muito sempre cansa, não vale a pena comentar muito sobre como Odorico Constrói cada cena, e em quais o seu sucesso é maior e qual o menor em comparação com outros tradutores (talvez fale mais dos aspectos militares ao falar da tradução de Carlos Alberto Nunes; digo talvez porque sempre escrevo no improviso e num chute neste blog, por isso não garanto que me lembre ou que ache interessante na hora em que estiver escrevendo). Nem há tanto mais o que falar da versão de Odorico, pois todos a leem (tá legal, Virgílio não está muito em alta esses tempos) e muito já foi dito dessa tradução, que de longe também é a mais estudada, embora eu particularmente tenha minhas implicâncias com algumas considerações meio "lugares-comuns" a respeito dela (citando uma: Odorico Mendes é O precursor da "tradução criativa" no Brasil). De longe, o maior mérito de Odorico é construir uma tradução profundamente poética em alguns momentos, que nos traz grande prazer pelo confronto com o livro (lê-lo é uma pequena batalha, mas saborosa) e a incrível coincidência de que todas as suas qualidades citadas (ou defeitos, para alguns) causam um efeito incrível e poderoso nas passagens da deusa Juno, o que pode explicar o sucesso da tradução mesmo em épocas que poderia-se esperar o desprezo. Até hoje, a passagem que mais gosto, em todos esses anos e em todas as 4 traduções da Eneida a que tive acesso, é a passagem que postei para comparação em todas as versões comentadas, e na qual a de Odorico Mendes sai-se incrivelmente superior às demais. São as últimas palavras da deusa Juno no livro. Deliciem-se, como eu sempre me deliciei com essa passagem, que me congela a espinha:
E submissa contesta a irmã Satúrnia:
“Teu querer conhecendo, eu constrangida
Abandonei, senhor, a Turno e o mundo;
Senão, curtindo ultrajes, não me viras
Neste ar sozinha, mas na ação, de flamas
Cingida, em prélios consumindo os Frígios.
Sim, a ajudar o irmão suadi Juturna;
Louvei que por salvá-lo ousasse tudo,
Mas não que de arco e setas contendesse:
Da implacável Estige à fonte apelo,
Jura tremenda aos superiores numes.
Desisto alfim; batalhas já me enojam.
Favor obsecro não sujeito aos fados,
Pede-o Itália e dos teus a majestade:
Casamentos embora a paz componham,
E leis o pacto asselem; não permitas
Que os Latinos indígenas, perdido
O antigo nome, Teucros se apelidem,
Nem mudem língua e trajo. Eterno viva
O Lácio, os reis Albanos; herde Roma
O itálico valor, propague e brilhe:
Tróia acabou, também seu nome acabe."
Uma passagem grandiosa, digna de uma epopeia clássica (embora, ao que me parece, o texto latino [que pode ser achado no comentário à tradução de Barrento] é menos incisivo e a fala de Juno soa mais submissa, mas não sou um grande latinista, e isso nem me importa). Nesses versos recaem toda a grandiosidade de Juno, e é o sumo das qualidades de Odorico Mendes tradutor. Ainda tenho a esperança de que a Eneida venha ser mais lida, bem como novas traduções saiam e as clássicas sejam reeditadas, mas a edição de Odorico ainda é, e deve ser, uma daquelas versões que sempre podemos ler e encontrar. Não esperem o comentário da última tradução, comprem imediatamente uma Eneida, em verso, claro. Na próxima teremos a última postagem, sobre a tradução de Carlos Alberto Nunes.

sábado, 28 de fevereiro de 2015

William Stevenson or John Still [atrib.] - Jolly Good Ale And Old

Encerrando o mês das cervejas sem muitas publicações: os excessos do carnaval não me permitiram dedicar muito tempo ao blog, e o inicio das atividades do mestrado devem manter-me um pouco afastado. De qualquer modo, compenso com mais um poema sobre esse néctar dos deuses que é a cerveja, que povoou toda a literatura do ocidente e do oriente, dos persas e sumérios até os dias de hoje. "Jolly Good Ale and Old" é considerado uma das melhores e mais populares canções sobre cerveja da literatura inglesa, e um dos fragmentos teatrais pré-elizabetanos mais famosos.

O poema traduzido faz parte de uma antiga comédia inglesa chamada "Gammer Gurton's Needle", que é considerada a segunda mais antiga comédia escrita no idioma inglês (a primeira seria Ralph Roister Doister, ao menos segundo a Wikipédia, já que meus dois livros de literatura inglesa sequer falam de qualquer uma das duas peças). É a canção que abre o segundo ato da peça, que foi publicada anonimamente e só muito mais tarde foi atribuída a "Mr S. Mr of Art" do Christ's College, Cambridge. Durante bastante tempo o escritor John Still foi identificado como autor por ser o único mestre em artes com nome iniciado em "S", mas algum tempo depois encontrou-se o nome de William Stevenson, que também tornou-se sacerdote, e era reputado como autor de peças, embora não haja nada que o ligue nominalmente a "Gamer Gurton's Needle". É portanto Stevenson e Still as mais sólidas atribuições de autoria desse poema, já que o terceiro candidato, Dr John Bridges, dificilmente poderia ser descrito como "Mr S", bem como adquiriu seu mestrado em outra instituição. De qualquer modo, prefiro a atribuição dupla a atribuir o texto como sendo de Anônimo (esse carinha que fez obras magníficas em várias línguas e tem uma longevidade fascinante... deviam fazer uma antologia poética de suas obras), que já tem muitas obras espúrias dadas em seu nome. De qualquer modo, não temos a menor certeza das atribuições de obras da antiguidade e ainda continuamos atribuindo a seus autores tradicionais, então não vejo porque não atribuir o texto ou a Stevenson ou a Still. De qualquer modo, vamos ao texto.

(a peça inteira, em inglês antigo pode ser encontrada aqui: https://play.google.com/store/books/details?id=3IRKAAAAYAAJ&rdid=book-3IRKAAAAYAAJ&rdot=1 a versão que me utilizo possui a grafia atualizada, e é de antologia)



Jolly Good Ale and Old - Willian Stevenson ou John Still

      Back and side go bare, go bare;
      Both foot and hand go cold;
      But, belly, God send thee good ale enough,
      Whether it be new or old.

I CANNOT eat but little meat,
  My stomach is not good;
But sure I think that I can drink
  With him that wears a hood.
Though I go bare, take ye no care,
  I nothing am a-cold;
I stuff my skin so full within
  Of jolly good ale and old.
      Back and side go bare, go bare;
      Both foot and hand go cold;
      But, belly, God send thee good ale enough,
      Whether it be new or old.

I love no roast but a nut-brown toast,
  And a crab laid in the fire;
A little bread shall do me stead;
  Much bread I not desire.
No frost nor snow, no wind, I trow,
  Can hurt me if I wold;
I am so wrapp’d and thoroughly lapp’d
  Of jolly good ale and old.
      Back and side go bare, go bare, &c.

And Tib, my wife, that as her life
  Loveth well good ale to seek,
Full oft drinks she till ye may see
  The tears run down her cheek:
Then doth she trowl to me the bowl
  Even as a maltworm should,
And saith, ‘Sweetheart, I took my part
  Of this jolly good ale and old.’
      Back and side go bare, go bare, &c.

Now let them drink till they nod and wink,
  Even as good fellows should do;
They shall not miss to have the bliss
  Good ale doth bring men to;
And all poor souls that have scour’d bowls
  Or have them lustily troll’d,
God save the lives of them and their wives,
  Whether they be young or old.
      Back and side go bare, go bare;
      Both foot and hand go cold;
      But, belly, God send thee good ale enough,
      Whether it be new or old.


Boa e Velha Cerveja - William Stevenson ou John Still

      Vamos, vamos, desregrados;
      Gelados os pés e as mãos;
      Não importa, se Deus mandar cerveja,
      Nova ou velha, tomamos!

Não posso comer u'a carne sequer
  Meu estômago vai mal;
Mas estou a crer que posso beber
  Com ele, de capuz tal.
E vou desregrado, nenhum cuidado
  Não estou gelado, veja!
Preencherei, insisto, a mi'a pele co'isto:
  A boa e velha cerveja.
      Vamos, vamos, desregrados;
      Gelados os pés e as mãos;
      Não importa, se Deus mandar cerveja,
      Nova ou velha, tomamos!

Não quero assado, mas torrada,
  E um siri no fogão;
Algum pão servir então;
  Não quero tanto pão.
Sem gelo, vento ou neve, penso,
  Ferirei-me? Que seja!
Me envolve a mente, e completamente,
  A boa e velha cerveja.
      Vamos, vamos, desregrados.

E Tib, minha esposa querida,
  Cervejas tem procurado,
Faz, por vezes, drinques, pois vejas
  Lágrimas no rosto amado:
Quando ela passa e serve uma taça
  Como um porre deseja,
E diz, destarte: - Amor, peguei minha parte
  Dessa boa e velha cerveja. -
      Vamos, vamos, desregrados.

Pois deixe-os tomar, 'té cumprimentar,
  Como os manos devem fazer;
E será verdade, a felicidade
  Que a cerveja vem trazer;
E as taças as almas, buscando com calma
  Ou as têm sob controle,
Deus salve suas vidas, também suas queridas,
  Se jovens ou senhores.
      Vamos, vamos, desregrados;
      Gelados os pés e as mãos;
      Não importa, se Deus mandar cerveja,
      Nova ou velha, tomamos!

Trad: Raphael Soares

sábado, 21 de fevereiro de 2015

Joyce Kilmer - Trees e uma paródia: Beers.

Hoje passo aqui bem rápido. O carnaval acabou me impedindo de publicar dia 10, e ainda tive os preparativos da viagem. Hoje, especial para o carnaval posto um poema famosíssimo de Joyce Kilmer, que ao lado de The Raven de Poe e The Road not Taken de Robert Frost, é um dos poemas mais famosos escrito por um norte americano. E uma paródia clássica e anônima dele, que fala sobre a Cerveja.


Trees - Joyce Kilmer

I think that I shall never see
A poem lovely as a tree.
A tree whose hungry mouth is prest
Against the earth's sweet flowing breast;
A tree that looks at God all day,
And lifts her leafy arms to pray;
A tree that may in Summer wear
A nest of robins in her hair;
Upon whose bosom snow has lain;
Who intimately lives with rain.
Poems are made by fools like me,
But only God can make a tree.



Beers, a spoof of Joyce Kilmer’s Trees - Anon

I think that I shall never hear
A poem lovely as a beer.
A brew that’s best straight from a tap
With golden hue and snowy cap;
The liquid bread I drink all day,
Until my memory melts away;
A beer that’s made with summer malt
Too little hops its only fault;
Upon whose brow the yeast has lain;
In water clear as falling rain.
Poems are made by fools I fear,
But only wort can make a beer.


Árvores - Joyce Kilmer

Eu penso que não há quem veja
Verso que qual árvore graceja.
Árvore que põe sua faminta
Boca a beber a terra infinda;
Árvore, a Deus todo dia,
Levanta as mãos e louvaria;
Árvore que no árido estio
Um ninho de melros construiu;
Sobre seu seio a neve jaz;
Vivendo co'a chuva que cai.
Tolos fazem versos, mas veja
Que só Deus uma árvore enseja.

Trad: Raphael Soares


Cervejas, uma paródia de Árvores de Joyce Kilmer’s

Eu penso que não há quem veja
Um verso amável qual cerveja.
Breja direto da torneira,
De áureo tom, também nívea beira;
Pão líquido de todo dia,
Até que a mente se esvazia;
Cerveja com malte do estio,
Pouco lúpulo, oh desvio!;
Sobre ela o fermento jaz;
Com água qual da chuva que cai.
Tolos fazem versos, mas veja
Que só o mosto faz cerveja.

Trad: Raphael Soares

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

David Foster Wallace - The Devil is a Busy Man

Não posso falar muito de David Foster Wallace. Sei que é o carinha da foto, que após seu suicídio em 2008 ficou super valorizado, lido e comentado tanto pelo público quanto pela crítica especializada, e cuja obra considerada mais importante, a Graça Infinita (Infinite Jest), foi lançada alguns meses atrás pela Companhia das Letras e tenho de ler ainda em fevereiro. De resto, resolvi dar uma lida nas obras anteriores do autor, e iniciei com o livro de contos (?) Brief Interviews With Hideous Men (Breves entrevistas com homens odiosos/hediondos/repulsivos), para tentar ter alguma ideia do estilo. Wallace não é um escritor fácil, mas é ironicamente popular. Li apenas uns 4 ou 5 contos da primeira metade do livro, e resolvi traduzir um (com finalidade meramente didática) que achei particularmente interessante, não pela sua qualidade literária em si, mas pela sua forma e seu caráter anedótico.

A primeira impressão que eu tive com isso foi a dificuldade de se verter esse autor, não só pelas suas construções (diretas, frenéticas, sem pausa) como pelo seu estilo. O resultado final, a meu ver, ficou muito aquém do que poderia ter sido, embora já fiz mais uma breve revisão para que não ficasse tão ruim, e queria comparar com alguma outra tradução do autor para ver como os outros haviam se saído. Esse desejo de comparação me levou a descoberta de que a obra já havia uma tradução para o português, intitulada Breves Entrevistas com Homens Hediondos, lançada pela Companhia das Letras mas que está absolutamente fora de catálogo de todas as livrarias e com apenas um exemplar na Estante Virtual custando mais de 200 paus. Ao menos a editora fez a gentileza de deixar um conto na íntegra para ser lido. Se alguém quiser me dar esse livro de presente aceito. Os outros livros do autor disponíveis em português são Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo e Uma coisa supostamente divertida que nunca mais vou fazer, além do já citado Graça Infinita. Provavelmente esse ano será lançado The Pale King.

Embora essa tradução de O Diabo é um Cara Ocupado, não tenha ficado ideal, ela pode ser lida, e pode ser um aperitivo para se aventurar na obra de David Foster Wallace, como foi para mim.



The Devil is a Busy Man - David Foster Wallace

Plus when he got something that was new or if he cleaned out the machine shed or the cellar oftentimes Daddy would find he had a item he didn’t want anymore and had to get shed of and as it was a long haul to truck it to the dump or the Goodwill in town he’d just call up and put a notice in the Trading Post paper in town to give it away for nothing. Shit like a couch or a freezer or a old tiller. The notice would say Free come and get it. Yet even so it always took some time after it run before one soul even called up and the item would sit around in Daddy’s drive pissing him off until one or two folks in town would finally come out to his place to look at it. And they’d be skittery about it too and their face all closed up like at cards and they’d walk around the thing and poke it with their toe and go Where’d you all get it at what’s the matter with it how come you want shed of it so bad. They’d shake their head and talk to their Mrs. and dither around and about drive Daddy nuts because all he wanted was to give a old tiller away for nothing and get it out of the drive and here it was taking him all this time jickjacking around with these folks to get them to take it. Then so what he up and starts doing one time he wanted to get shed of something is he puts his notice in the Trading Post paper and he puts in some fool price he just makes up there on the phone with the Trading Post fellow. Some fool price next to nothing. Old Harrow With Some Teeth A Little Rusted $5, JCPenny Sleepersofa Green And Yellow $10 and like that. Then oftentimes folks called up the first day the Trading Post run the notice and up and come out from town and even would haul in from further out in some little other towns that got the Trading Post and pull up spraying gravel and scarce even look at the item and press on Daddy to take the 5 or $10 right away before any other folks could take it and if it was something heavy like that one couch I’d help them load it up and they’d up and haul it off right then and there. Their faces was different and their wife’s faces in the truck, fine and showing teeth and him with a arm around the Mrs. and a wave at Daddy as they back out. Tickled to death to get a old harrow for next to nothing. I asked Daddy about what lesson to draw here and he said he figured it’s you don’t try and teach a pig to sing and told me to go on and rake the drive’s gravel back out of the ditch before it fucked up the drain.


O Diabo é um cara ocupado [1] - David Foster Wallace

No mais quando ele tinha algo novo ou caso limpasse o galpão ou o porão às vezes Papai encontraria-se com um item que não queria mais e lá estava e como era uma longa viagem para rebocá-lo para o despejo ou para Godwill na cidade em que justo ligara e noticiara no jornal Trading Post para desistir dele por nada. Qualquer merda como um sofá ou um freezer ou um timão velho. O anúncio dizia que pegá-lo era Grátis. Mesmo assim ele sempre gastava algum tempo para de ir antes que uma alma sequer quisesse e o item seria colocado no carro de Papai irritando-o profundamente até que uma ou duas pessoas da cidade que poderiam finalmente sair de seus lugares e olhar o que acontecia. E estariam excitados em relação a isso também e seus rostos se fechava, como nos jogos de carta e andavam em volta daquilo e apontavam com seus dedos do pé e soltavam Onde obtiveste isto e o que há com isto porque queres te livrar disto tanto assim. Eles balançaram a cabeça e falavam com suas senhoras e se preocupavam em relação as coisas de Papai que só o que queria era dar um velho timão por nada e tirar ele do carro e aqui estava gastando todo esse tempo enrolando com essa gente que elas pegassem essas coisas e levá-las. Então quando cansou-se começou certa vez quando queria se livrar de algo colocou seu anúncio no jornal Trading Post e pôs algum preço irrisório que justamente criava na hora em que falava com o carinha do Trading Post pelo telefone. Algum preço irrisório semelhante a nada. Grade Velha Com Alguns Dentes Um Tanto Enferrujada $ 5, Sofá-Cama JCPenny Verde E Amarelo $ 10 ou algo assim. Aí muitas vezes a gente ligava no primeiro dia corrido que se noticiou no Trading Post e saiam e vinham para a cidade e até mesmo transportaram para mais longe ou para algumas outras cidadezinhas que tinham o Trading Post e puxaram o pedregulho pulverizado e sequer olharam ao item e pressionaram Papai a pegar os $ 5 ou $ 10 imediatamente antes que qualquer outro pudesse levá-lo e se era algo pesado como um sofá iria ajudá-los a carregar e eles transportariam direto para lá. Os rostos deles eram diferentes e o de suas esposas no caminhão, finos e mostrando os dentes e ele com um braço em torno da senhora e um aceno a Papai assim que se retiraram. Mortos de alegria por pegarem logo uma velha grade por quase nada. Perguntei a Papai que lições tirar daí e ele disse que disso não deverás tentar ensinar um porco a cantar e me disse para ir e retirar o pedregulho das coisas para fora da vala antes deles foderem a escoagem.

Trad: Raphael Soares

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

As traduções da Eneida de Virgílio, pt.II - Lima Leitão

O médico português Lima Leitão, entre 1818 e 1819, publicou, no Rio de Janeiro, uma boa amostragem das obras de Virgílio em 3 volumes, sendo o primeiro (de 1818) contendo As Bucólicas e as Geórgicas, e os outros dois volumes (de 1819) contendo os 12 cantos da Eneida. Foi, ao que eu saiba, a primeira vez que as Bucólicas e as Geórgicas foram publicadas em português, e a segunda ou terceira tradução da Eneida. Mesmo sendo uma edição publicada no Brasil e dedicado ao Brasil (com o gigantesco título de Monumento à Elevação da Colônia do Brazil a Reino e ao Estabelecimento do Tríplice Império Luso. As Obras de Públio Virgílio Maro Traduzidas em Verso Português, e Anotada Pelo Doutor Antônio José de Lima Leitão), trata-se de uma tradução portuguesa, feita por um médico e diplomata português que estivera no Brasil por esse período apenas de passagem. Esta tradução acabou tendo uma sorte ainda mais triste que a predecessora: não é lida, comentada, estudada e, ao que eu saiba, nunca sequer foi reeditada, e para os poucos que sabem de sua existência é uma mera curiosidade bibliográfica, por ser uma tradução que antecede a famosa versão de Odorico Mendes. Há muito o que se poderia aprender com essa versão se tivéssemos mais atenção a olhá-la.

Há muitas coisas marcantes na tradução de Lima Leitão, e a primeira delas é em relação à sua gênese: o próprio tradutor afirma que saíra em 1816, mas que não pudera rever pessoalmente a impressão e estaria cheia de erros (não consegui localizar essa publicação; talvez esteja permanentemente perdida) e faltaria a revisão que deixaria ela em seu estado final, que ainda não seria atingido com a publicação de 1819. Segundo Lima Leitão, seu primeiro pensamento como tradutor seria que "o tradutor poeta devia sacrificar a harmonia à concisão", mas que durante o período entre 1816 a 1818 em que trabalhou na sua versão da Eneida já pensava que as duas "deviam andar lado a lado", o que já dá para ter alguma ideia das diferenças entre as duas versões. Em geral, a tradução de Lima Leitão é bem mais concisa que a de João Franco Barrento, porém um pouco maior que a versão de Odorico Mendes. Normalmente Lima Leitão mantém o mesmo número de versos entre o texto latino e o português, e o decassílabo, porém quando necessário ele acrescenta alguns versos para evitar uma obscuridade excessiva que não esteja em harmonia com o texto original.

Para além da gênese dessa tradução, suas características intrínsecas levam o leitor imediatamente a se perguntar o porquê do descaso com essa edição. Uma reedição atualizada, profundamente corrigida e melhorada dessa tradução (à moda das sucessivas edições bíblicas sob o rótulo "Almeida") poderia se tornar uma das melhores edições disponíveis em língua portuguesa, se seus defeitos pudessem ser suplantados e suas qualidades (ímpares, ausentes em outras edições portuguesas) mantidas à risca. Em primeira instância vem o fato de que, aparentemente, essa é a única tradução de Virgílio que toma como base um texto crítico, ou ao menos é a única edição portuguesa em verso que anota as inúmeras variações (as variora) presentes no texto virgiliano, o que por si só é, ao meu ver, algo muito importante ao lidarmos com os textos clássicos, os quais muitos leitores sequer se dão conta dos inúmeros problemas textuais inerentes à obra e sua transmissão (e tradução). Mesmo não sendo exaustiva e profundamente crítica, esta tradução virgiliana apresenta "A Dedicatória da Eneida" e também é ela a única a apresentar o início alternativo da Eneida:
Ille ego, qui quondam gracili modulatus avena
Carmen et egressus silvis vicina coegi
Ut quamvis avido parerent arva colono,
Gratum opus agricolis: at nunc horrentia Martis.

Que traduz por:
Eu, que outr'hora cantei na avena humilde,
E, as florestas deixando, fiz sujeitas
Do ávido agrícola as vizinhas lavras,
Gratos presentes aos frugais colonos;
Do ríspido Mavorte hórridas hoje
Que põe ao início do poema principalmente por achar os versos "dignos de Virgílio", sem esquecer de lembrar a discussão textual a respeito da passagem, se obra virgiliana ou adição de um gramático tardio. Não apenas isso, as notas recorrentemente chamam atenção às variações textuais da Eneida, como de pontuação (nota 7, pg.17 do volume 2), relações textuais com outros textos da antiguidade (nota 1, pg. 21 do volume 2), bem como comparações entre as traduções, variora (embora poucos anotados) e as notas comuns explicando elementos da mitologia entre outros. Uma profunda revisão, correção e atualização, bem como uma ampliação das notas poderia gerar uma belíssima edição da Eneida.



Nos detendo mais às qualidades do texto em si, percebemos alguns de seus mais graves defeitos, defeitos (e/ou qualidades, dependendo do ponto de vista) que foram quase todos repetidos pelo próximo tradutor da Eneida: Odorico Mendes, de modo que é ainda mais difícil de entender o porquê da tradução de Lima Leitão ficar tão marginal em relação à de Odorico Mendes. Por um lado, é verdade que ela é poeticamente inferior se comparada com a versão de Barrento, Odorico ou de Carlos Alberto Nunes, mas a diferença não chega a ser tão gritante em toda a obra, e se a de Lima Leitão é desigual, também o é a de Odorico Mendes. As mesmas qualidades (e defeitos, de acordo com quem é o crítico) que se tem apontado nas versões de Odorico se encontram na de Lima Leitão, a saber: obscuridade decorrente da concisão do hexâmetro virgiliano em decassílabos (embora a de Lima Leitão seja um pouco menos concisa que a de Odorico), o abuso de latinismos (à moda de Camões, diga-se de passagem), a abundância de neologismos, extrema derivação (substantivos em verbo e vice-versa). Há, é claro, bastantes escolhas que parecem infelizes, em ambas as versões, mas em alguns momentos a tradução de Lima Leitão consegue aquele rompante de verdadeira poesia:
"Morramos, atiremo-nos às armas:
Só acha salvação quem é vencido
Se ousa, sem a esperar, morrer matando."
- Canto 2

No entanto Eneias vê n'um vale oculto
Selva apartada, arbustos sonorosos,
E o Letes, que pacíficos os banha.
Na serena estação tantas abelhas
Poisam nos prados por diversas flores,
E adejam circundando os brancos lírios;
C'o zumbido murmura o campo inteiro -
Canto 6
 mas em alguns momentos consegue ser bem sem graça:
"Escuta; serei breve. Eu, não te iludas,
Nunca a furto esperei abandonar-te,
Nem pretextei no amor visos de núpcias;
A tal fim me não trouxe aqui meu fado."
- Canto 3
e outras vezes soa bem como algo que Odorico Mendes faria:
"Pérfido, tu de Vênus não és filho,
Nem Dárdano é o autor da prole tua:
Gerou-te em dura penha o hórrido Cáucaso,
Mamaste o leite das Hyrcanas tigres [...]
Ai, tartáreo furor cala em meu peito!
Ora Apolo gríneo, e Lício orac'lo,
Ora o núncio dos Céus, que o mandou Jove
Pelas auras veloz é o duro império.
Digno empenho dos Árbitros do Globo!"
- Canto 3
 E por fim, posto a mesma passagem que postei no comentário à versão de João Franco Barrento (comentário e texto latino da passagem aqui), que é uma das minhas passagens favoritas da obra, já nos últimos momentos, quando a deusa Juno se dá por vencida.
Com vulto humilde assim responde a Deusa :
„ Apenas conheci de Jove as ordens
„ Constrangida deixei, e Turno, e a terra.
„ Se eu inda as ignorasse, entre estas nuvens
„ Não me viras sofrer ultrajes tantos:
„ Mas de flamas cercada entre as coortes
„ Havia eu sufocar Ilion em guerras.
„ Sim, eu confesso, persuado Juturna
„ De ao miserando irmão correr co'a espada;
„ Louvei sua alta audácia em dar-lhe a vida:
„ Não lhe induzi que usasse ou de arco, ou flechas:
„ Juro-o do Styx pela onda inexorável,
„ Juramento, que os Numes não quebrantam.
„ Eu já cedo, e enfastiada à guerra fujo.
„ Graça te rogo não sujeita ao fado,
„ A bem do Lácio, aos teus a bem da glória:
„ Feliz consórcio embora as pazes firme,
„ O pacto, e lei adune os povos ambos;
„ Mas não ordenes que do Lácio os filhos
„ Mudem de traje, ou língua sonorosa,
„ Ou tomem o atro nome de Troianos.
„ Seja no Lácio eterna a glória de Alba;
„ Com a Ausônia virtude a excelsa Roma
„ Faça admirar os Céus, dê leis ao Mundo:
„ Acabe Ilion, até seu nome acabe.
 Na versão de João Franco Barrento essa passagem não ganhou muito com o "embelezamento" típico da versão, e soa bem mais solene que talvez queira dizer o texto latino. A versão de Lima Leitão é bem mais direta, e nos mostra a resignação e o seu último pedido a Jove. É uma bela passagem, chocante, marcante, que numa versão mais concisa e harmônica consegue ser bem recuperada em sua força, por Lima Leitão. A passagem é ligeiramente maior que o texto latino original, mas não tão maior quanto a de João Barrento (que ultrapassa o dobro de versos). A versão de Odorico Mendes possui a mesma quantidade de versos do texto virgiliano, mantendo o decassílabo e perdendo bastante dos detalhes do diálogo, porém ganhando peso e força, fazendo uma Juno ainda mais agressiva do que é em sua batalha agora em resignação, principalmente na coda final, em que lança um severo: "herde Roma/O itálico valor, propague e brilhe:/Tróia acabou, também seu nome acabe.". Mas a versão de Odorico Mendes é conversa para o próximo episódio.

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

As traduções da Eneida de Virgílio, pt.I - João Franco Barrento

As traduções de Eneida em português são várias. Em verso, ao que eu saiba, são 5: a primeira, de João Franco Barrento, em oitava rima camoniana; a de Lima Leitão, em decassílabos heróicos;a terceira feita por um estudioso que não lembro o nome e concluída pelo poeta português José Maria da Costa e Silva, que lastimavelmente não pude conferir; a de Odorico Mendes, a primeira feita por um brasileiro, também em decassílabos, com a curiosidade de possuir menos versos que o original virgiliano; e por fim a de Carlos Alberto Nunes, curiosamente em hexâmetros dactílicos extremamente regulares. Há ainda várias traduções em prosa, e uma clássica adaptação em prosa por João de Barros, e uma tradução por João Felix Pereira que não sei se é em prosa ou verso. Três dos tradutores da Eneida (da Costa e Silva, Odorico Mendes e Carlos Alberto Nunes) também traduziram a Ilíada e a Odisséia, mas como não lá muito conhecimento de grego não tenho competência para falar muito delas, e deixo tal tarefa para uma alma gentil e que não tenha uma visão muito fechada de tradução e Homero.

Em primeiro lugar, as cinco traduções que foram feitas da Eneida provam o quanto os falantes de língua portuguesa não se importam com o passado tradutório em sua língua. Em língua inglesa as traduções clássicas de Chapman, Golding, Dryden, Pope e muitos outros (lembrando a Eneida de Gavin Douglas, tão elogiada por Pound) são sempre lidas, comentadas ou ao menos estudadas, enquanto por aqui, a exceção da já clássica versão de Odorico Mendes, não se edita nem se estuda qualquer outra tradução do livro, e a tradução de João Franco Barrento, intitulada Eneida Portuguesa, é uma prova de que essa ignorância pode nos trazer muitas perdas.

Meu contato com a Eneida se deu a partir da leitura da tradução de Odorico Mendes, por uma antiga edição da Jackson, sem as notas do tradutor, que provavelmente enriqueceriam muita a minha primeira leitura. Só recentemente tive contato com a versão de João Franco Barrento, que parece ser a primeira integral em verso realizada em português. A primeira parte, contendo os seis primeiros cantos, foi impressa em 1664, e não sei quando foi impressa a segunda (minha edição é de 1763, e não creio que seja a editio princeps), que contém os últimos seis cantos. A principal curiosidade dessa versão é a espécie de influência inversa dos Lusíadas de Camões nela. Como todos sabem, a Eneida de Virgílio é um dos modelos mais basilares para a composição dos Lusíadas, e na versão do João Franco Barrento temos uma inversão disso: é Os Lusíadas que, aqui, tem uma influência decisiva para a composição dessa versão da Eneida.

Logo nos primeiros versos da Eneida de João Barrento percebemos o quão similar ao texto de Camões, independente das similaridades naturais entre as duas ("Arma virumque cano, [...] Italiam fato profugus Lavinisque venit/litora" lembra muito "As armas e os barões assinalados,/ que da ocidental praia Lusitana"). Compare o início desta Eneida

As armas, e o varão canto piedoso,
Que primeiro de Troia desterrado
A Italia trouxe o Fado poderoso,
Às praias de Lavino veio armado:
Aquelle, que no golfo tempestuoso,
Nas terras foi muito contrastado,
Da violência dos Deuses, e excessiva
[?]brada ira de Juno vingativa.

Com o início dos Lusíadas:

As armas, e os barões assinalados,
Que da Ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca de antes navegados,
Passaram, ainda além da Taprobana,
Em perigos, e guerras esforçados,
Mais do que prometia a força humana.
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram.

 A primeira semelhança (um pouco óbvia até) é formal: os dois são decassílabos em oitava rima, desde Camões sendo modelar ao gênero épico. Os paralelismos sintáticos são bem visíveis, ainda mais quando se lê um verso junto do outro e quando se compara com o texto latino de Virgílio ou se compara com uma das outras traduções:

Arma virumque cano, Troiae qui primus ab oris
Italiam fato profugus Laviniaque venit
litora - multum ille et terris iactatus et alto
vi superum, saevae memorem Iunonis ob iram, (Texto da Loeb Classical Library, sem muito aparato crítico :( )
Também rapidamente damos conta do preço que se paga por uma tradução da Eneida em oitava rima: a tradução é bem maior que o texto original de Virgílio, o que implica no fato de que bastante coisa foi acrescentada em todo o poema, algumas bastante felizes, outras nem tanto. Há entre os críticos e teóricos de tradução moderna uma preferência (ditada pelos cânones poéticos próprios da modernidade mais que da lógica crítica) pela concisão e menor quantidade de informação: é preferível que uma tradução omita vários versos ou elementos importantes, mas acrescentar palavras ao autor original, hoje, é uma grave heresia. Mudar a forma dos versos brancos latinos para a oitava rima camoniana poderiam ser uma blasfêmia hoje, mas não eram na época, e não deixou de compor uma das mais curiosas e interessantes obras traduzidas, ao lado de algumas do classissismo português.




Há na Eneida uma passagem que é, particularmente, a minha favorita: os versos 807-828 do último canto. Em latim:

sic dea submisso contra Saturnia voltu:
"Ista quidem quia nota mihi tua magne, voluntas,
Iuppiter, et turnum et terras invita reliqui:
nec tu me aeria solam nunc sede videres
digna indigna pati, sed flammis cincta sub ipsam
starem aciem traheremque inimica in proelia Teucros.
Iuturnam misero (faetor) succurrere fratri
suasi et pro vita maiora audere probavi,
non ut tela tamen, non ut contenderet arcum;
adiuro Stygii caput implacabile fontis,
una superstitio superis quae reddita divis.
et nunc cedo equidem pugnasque exosa relinquo.
illud te, nulla fati quod lege tenetur,
pro Latio obtestor, pro maiestate tuorum:
cum iam conubiis pacem felicibus, esto,
component, cum iam leges et foedera iungent,
ne vetus indigenas nomem nutare Latinos
neu Troas fiere iubeas Teucrosque vocari
aut vocem mutare viros aute vertere vestem,
sit Latinum, sint Albani per saecula reges,
sit Romana potens Itala virtute propago;
occidit, occideritque sinas cum nomine Troia." (Texto da Loeb Classical Library, outra vez)
 Nesse momento, Juno (a melhor das personagens da Ilíada, mais que Eneias, Dido ou qualquer outro) dá sua última palavra em relação aos conflitos na Itália, mesmo sendo um discurso de "derrota" (sua ira se aplaca e desiste de ajudar seus protegidos, sob ordem de Jove e apelo de Vênus) continua sendo impressionante e imponente, digno de Juno. Essa passagem será usada para comparar as diversas versões da Eneida, e tenho de afirmar que ela não ajuda muito a versão de João Franco Barrento: essa versão tem o grande mérito de dar dignidade e poesia para as passagens mais fracas da Eneida, mas costuma ser meio "rasa" nos momentos mais altos como este. Comento melhor de acordo com as novas traduções que forem aparecendo aqui.

[…] e a divina
Juno, assim respondendo, o rosto inclina!
191
Ó Júpiter, depois que conhecida
Foi de mim tua grande, e alta vontade,
De todo as terras, bem que constrangida,
E a Turno deixei logo na verdade:
Nem tu me ora verias na subida
Região aérea em tanta soledade,
Cousas dignas, e indignas padecendo,
Mas põe entre as esquadras discorrendo.
192
De coruscantes flamas rodeada
A inimigas batalhas moveria
A Teucra gente, para que assolada
Pudesse toda ser por esta via.
Confesso que de mim aconselhada,
Que socorresse o irmão, que perecia,
Juturna foi, e lhe hei também louvado
De inda mais por sua vida haver tentado.
193
Mas não a aconselhei que o dardo duro,
Nem a frecha ligeira, ou arco usasse:
Pela implacável fonte assim to juro,
Donde o rio do negro Estige nasce.
Juramento mui valido, e seguro,
Que não sei que algum Deus violar ousasse:
E te obedeço agora, renuncio
As contendas, de que hei já grão fastio.
194
Um só favor agora, que sujeito
Não é à lei do Fado, te demando
Em prol de Itália, e prol do gão respeito,
Que aos teus é devido: este é que, quando
Tenha, assim seja, a paz de todo efeito
Por algum casamento venerando,
E os pactos já, e as leis se estipularem,
E em perpétua concórdia se ajuntarem,
195
Não mandes que os Latinos aqui nados
O antigo nome deixem, que é grã míngua,
Por Troianos, e Teucros ser chamados,
Nem permitas mudarem traje, ou língua.
Seja Lácio, e seus Reis por dilatados
Séculos, por mostrar que em cada míngua,
Albanos, e mais célebre o Romano
Linhagem co'o valor Italiano.
196
Acabou Tróia, acabe, se és fervido,
Com seu nome a memória juntamente.
[…]
 No próximo episódio vou comentar a tradução de Lima Leitão, neste mesmo canal, no horário que achar melhor.