Hoje temos contudo uma convidada especial. A escritora Samantha de Sousa, que é admiradora da poetisa inglesa, administradora do blog Um Café para a Minha Gastrite e autora do livro Peregrinações (que você pode comprar aqui). Samantha nos presenteia com uma tradução do poema Anna Who Was Mad (do livro The Death Notebooks, 1974), enquanto eu traduzo Two Hands (de The Awful Rowing Toward God, de 1975).
A poesia da Anne Sexton é quase sempre muito forte e impactante. Como membro do grupo que passou a ser conhecido como "poetas confessionais", reunidos em volta de Lowell, há muito da escritora em sua poesia. Diferente deles, no entanto, a escritora se foca em temas e comportamentos desagradáveis. Anne Sexton também possui caracteristicamente uma relação muito paradoxal com a autoridade. Por fim, deveríamos ter mais da escritora em português.
Anna Who Was Mad, é um desses poemas fortes e impactantes que tratam de um assunto desagradável. O poema é um monólogo dramático (forma que não é exclusiva da Sexton nem necessariamente característica, mas que a poetisa dominou igualmente), e a Anna do título não é a persona falante, mas o objeto do discurso. A persona, que não deve ser confundido com a poetisa ou a expressão de um "eu", é alguém que foi muito próximo de Anna, provavelmente um relacionamento amoroso, o que depreendemos pelo "our pillow" (e, apenas à guisa de curiosidade, as "mary-words" são "Eis a escrava do senhor; faça-se em mim segundo sua vontade"... ou "eles não tem mais vinho"... ok, estou zoando agora). Por conta disso, presumimos que a persona que fala é homem, embora nada impedisse que o relacionamento entre o falante e Anna fosse um relacionamento homossexual, nada sugere tal hipótese também.
Como todo o bom monólogo dramático, o discurso não se constitui como uma narrativa sólida e direta, mas é dependente da situação. Aqui temos um depoimento da loucura e da morte do outro lado da história (da pessoa que não enlouqueceu, que conviveu, e talvez se culpe pela loucura e pela morte da pessoa tratada). Sabemos que Anna está morta pelo "From the grave write me, Anna!", mas antes disso descobrimos a possível causa de suicídio (como sugere "Did I tell you to climb out the window?"); sabemos que a loucura de Anna não é apenas uma "doideirazinha", mas um caso clínico e ela fora internada por isso ("Did I open the door for the mustached psychiatrist/who dragged you out like a gold cart?"), e o tempo inteiro a persona está amargurada e sentindo-se culpada por tudo isso. É aquele grande problema de quem sobrevive ao suicida, que guarda no fantasma do suicídio uma culpa ou sensação de culpa eternas, e sem respostas. A persona que fala busca e implora para que Anna responda, de modo quase obsessivo e neurótico, mas de nada isso tem serventia. Anna morreu, e não vai lhe escrever uma carta do além-túmulo para lhe reconfortar; não há sequer evidência de que ela gostaria de fazer isso se pudesse.
O poema que eu traduzi é, sobre vários aspectos mais simples. Two Hands é de um livro particularmente interessante de Anne Sexton, The Awful Rowing Toward God, publicado postumamente. O livro é literalmente uma Awful Rowning Toward God, e é uma obra de bastante delicadeza no paradoxo, principalmente no paradoxo que diz respeito ao modo como as pessoas se aproximam e afastam-se simultaneamente de Deus ou da ideia de Deus ou da moralidade que creem divina. Há muitos bons poemas no livro, mas escolhi esse pela delicadeza das imagens. Notem como há uma sutileza na descrição da sexualidade (as mãos [metonimicamente homem e mulher] se cruzando, e não há pecado nisso) e da proximidade entre os homens paradoxalmente sobreposta à prisão, individualidade, isolamento e separação dos corpos. É um poema simples de se entender, mas feita num modo complexo (e verdadeiramente poético) de expressão.
Anna Who Was Mad - Anne Sexton
Anna who was mad,
I have a knife in my armpit.
When I stand on tiptoe I tap out messages.
Am I some sort of infection?
Did I make you go insane?
Did I make the sounds go sour?
Did I tell you to climb out the window?
Forgive. Forgive.
Say not I did.
Say not.
Say.
Speak Mary-words into our pillow.
Take me the gangling twelve-year-old
into your sunken lap.
Whisper like a buttercup.
Eat me. Eat me up like cream pudding.
Take me in.
Take me.
Take.
Give me a report on the condition of my soul.
Give me a complete statement of my actions.
Hand me a jack-in-the-pulpit and let me listen in.
Put me in the stirrups and bring a tour group through.
Number my sins on the grocery list and let me buy.
Did I make you go insane?
Did I turn up your earphone and let a siren drive through?
Did I open the door for the mustached psychiatrist
who dragged you out like a gold cart?
Did I make you go insane?
From the grave write me, Anna!
You are nothing but ashes but nevertheless
pick up the Parker Pen I gave you.
Write me.
Write.
Anna que estava louca - Anne Sexton
Anna que estava louca.
Eu tenho uma faca debaixo do braço.
Quando me equilibro na ponta dos pés, eu revelo verdades.
Eu sou algum tipo de infecção?
Eu a tornei louca?
Tornei os sons insuportáveis?
Mandei-lhe saltar pela janela?
Perdão. Perdão.
Diga que não o fiz.
Diga que não.
Diga.
Repita as palavras de Maria em nosso travesseiro.
Leve-me, a desengonçada de doze anos,
para dentro do seu colo derruído.
Sussurre como as flores.
Coma-me. Coma-me como um pudim.
Leve-me para dentro.
Leve-me.
Leve.
Dê-me um diagnóstico sobre minh’alma.
Dê-me um relatório completo de meus atos.
Dê-me uma flor venenosa e deixe-me ouvi-la.
Proteja-me e me carregue por entre os estranhos.
Enumere meus pecados numa lista suja e deixa-me comprá-los.
Eu a tornei louca?
Fiz soar uma sirene em seus fones de ouvido?
Abri a porta para o psiquiatra bigodudo
Que a arrastou como um carrinho dourado?
Eu a tornei louca?
Escreva-me da cova, Anna!
Você não é nada além de cinzas, no entanto
Pegue a Parker que eu lhe dei.
Escreva-me.
Escreva.
Trad: Samantha de Sousa
From the sea came a hand,
ignorant as a penny,
troubled with the salt of its mother,
mute with the silence of the fishes,
quick with the altars of the tides,
and God reached out of His mouth
and called it man.
Up came the other hand
and God called it woman.
The hands applauded
And this was no sin.
It was as it was meant to be.
I see them roaming the streets:
Levi complaining about his mattress,
Sarah studying a beetle,
Mandrake holding his coffee mug,
Sally playing the drum at a football game,
John closing the eyes of the dying woman,
and some who are in prison,
even the prison of their bodies,
as Christ was prisoned in His body
until the triumph came.
Unwind hands,
you angel webs,
unwind like the coil of a jumping jack,
cup together and let yourselves fill up with sun
and applaud, world,
applaud.
Do mar veio uma mão,
ignorante como um penny,
incomodada com o sal de sua mãe,
muda com o silêncio dos peixes,
rápida com os altares das ressacas,
e Deus alcançou-a com Sua boca
o chamou-a homem.
De cima veio outra mão
e Deus chamou-a mulher.
As mãos aplaudiram.
E isso não era pecado.
Era o que deveria ser.
Eu os vejo rondando as ruas:
Levi reclamando de seu colchão,
Sara estudando uma abelha,
Mandrake segurando sua caneca de café,
Sally tocando bateria num jogo de futebol,
João fechando os olhos da mulher morta,
e alguém está na prisão,
mesmo a prisão de seus corpos,
como Cristo esteve preso em Seu corpo
até vir o triunfo.
Desenlacem-se, mãos,
suas teias de anjos,
desenlacem-se como as cordas dum polichinelo,
unam-se e deixem-se preencher de sol
e aplauda, mundo,
aplauda.
Trad: Raphael Soares