quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Um Soneto Português de Elizabeth Barrett Browning - Parte 1: Recepção, Vida e Obra

Elizabeth Barrett Browning, aproximadamente 9 anos, pastel de Charles Hayter. Todas as imagens da página foram tiradas da Browning's Correspondence

Deus sabe que eu não queria escrever um texto sobre Elizabeth Barrett Browning. But... alas!, certamente alguém precisava. A poetisa precisava de um texto por inúmeras razões, que variam desde a parca recepção crítica (majoritariamente errônea) que a escritora recebeu nos dois lados do Atlântico até a enorme importância da escritora como ao lado dos grandes poetas do século XIX,  principalmente por ser o primeiro autor do sexo feminino a pertencer inequivocamente ao cânone literário inglês, e portanto, uma avó para todas as escritoras da língua. Como essa postagem será um pouco mais que mera tradução e comentário, vou dividi-la em três partes: 1. Recepção, vida e obra; 2. Os Sonetos e o relacionamento entre os dois Brownings; 3. Minha leitura e tradução do soneto XVIII. No fim apresento as referências e toda a minha bibliografia, que está em língua inglesa; assim todas as passagens citadas foram traduzidas apressadamente por mim.


Elizabeth, aproximadamente 22 anos, rascunho à lápis pela irmã da poetisa, Henrietta Moulton-Barrett

1. Recepção, Vida e Obra

Falar de Elizabeth (doravante chamada Belinha) é uma tarefa extremamente difícil, não apenas pelo que a escritora e sua obra são de fato, mas pelo que ela representa e pelo modo como sua vida e obra plasmaram-se no imaginário inglês. Marjorie Stone, uma das mais importantes vozes críticas da poetisa na atualidade, resume parte do problema:
Assim como é, às vezes, difícil abordar Shakespeare porque ele é uma instituição, é difícil abordar Barrett Browning porque ela é uma lenda. A história romântica de sua fuga e casamento tornou-se de tal maneira parte de nossa cultura, que nós acabamos por colaborar com ela contra nossa vontade, assim como somos cúmplices das forças ideológicas que alimentamos há mais de um século. (STONE, 1995)
Então, a primeira coisa a se falar é o estado curioso da recepção da escritora. Uma coisa para a qual sempre chamei atenção, nos anos em que estudei Robert Browning em Curitiba, é o modo como a crítica moderna tende a ignorar quase completamente a obra da Belinha em detrimento da do marido (doravante chamado Bob). A primeira reação é quase que universalmente de espanto, tendo em vista que o senso comum sugere que a Belinha é muito mais conhecida que o Bob. Aqui a questão se divide em outras duas, a primeira é o quão mais e em qual sentido ela é mais famosa que ele, e a segunda qual a natureza da valorização que a poesia dela tem nos diferentes meios “como poesia”. Em primeiro lugar, embora ela de fato seja “famosa” e provavelmente “mais famosa” que o Bob, sua fama gira mais em torno dos mitos de sua biografia e casamento perfeito (há, inclusive, mais biografias do “Casamento” que da “Vida” da poetisa) do que de sua qualidade como escritora. Embora uma parcela de sua obra seja parte do patrimônio cultural comum inglês como a frase mil vezes repetida “How do I love thee”, do Soneto 43 dos Sonnets from the Portuguese — seus versos são sempre associados à figura de Belinha e seu casamento “ideal”! (Ok, o “less is more” do Robert Browning é ainda mais repetido, e no mundo todo, mas poucas pessoas sequer sabem que foi ele quem inventou a expressão!). Além disso, podemos assumir que os versos são conhecidos e repetidos por milhares de pessoas do mundo inglês que sequer leram um único poema ou livro inteiro dela. A situação já era assim pelo menos desde os anos 30, pois já notava Virgínia Woolf que:
Por uma dessas ironias da moda que teriam incomodado os próprios Brownings, parece que eles são bem mais conhecidos na carne que jamais foram em espírito. Amantes apaixonados, em cachos e suíças, oprimidos, desafiadores, fujões — dessa forma milhares de pessoas que nunca leram uma linha da poesia dos Brownings devem amá-los e conhecê-los. Eles se tornaram duas das figuras mais notáveis daquela brilhante e animada companhia de autores que, graças ao nosso hábito moderno de escrever memórias e imprimir cartas, de sermos fotografados sentados, vivem na carne, não meramente no sentido clássico da palavra: são conhecidos por seus chapéus, não pelos seus poemas. "Lady Geraldine's Courtship" é visto de relance por dois professores em universidades americanas, talvez, uma vez no ano, mas todos nós conhecemos a Sra. Barrett deitada em seu sofá, ou como ela conheceu saúde e felicidade, liberdade, e Robert Browning, na Igreja bem na esquina.
Mas o destino não foi gentil com a Sra. Browning como escritora. Ninguém a lê, ninguém discute sobre ela, ninguém se preocupa em colocá-la em seu lugar. (WOOLF, 1832)
O lugar da Belinha, claro, já foi dito no início do texto: um dos maiores escritores do século XIX e a primeira inequivocamente gigantesca figura feminina da literatura inglesa, considerando simples e sinceramente a sua obra. Os Sonnets from the Portuguese, ironicamente, contribuem significativamente para a grande popularidade da “Vida” da escritora e péssima recepção de sua “Obra”, seja pela carência de leitores seja pelo desprezo da crítica especializada, embora eu deva mencionar a recepção dos Sonnets mais adiante.

Após a primeira constatação, a de que os poemas da Belinha não são lidos, torna-se fácil compreender como e o quão valorizada é a literatura de Elizabeth Browning: não é! A afirmação pode parecer um tanto forte porém se não é uma verdade simples (de fato, ela tem alguns leitores competentes, e de tempos em tempos aspectos de sua obra voltam a serem discutidos), é algo próximo da verdade. Comparativamente falando, ela é a única dos grandes vitorianos (Browning, Tennyson, os Rossettis, Meredith, Hopkins) a não ter uma edição crítica da sua obra poética completa antes de 2010 (Ok, Arnold também não, mas tinha antes uma edição belíssima da Oxford abarcando a maior parte de sua obra... Além do mais, Arnold é grande pela sua crítica e parte pequena de seus poemas). Comparando com o a atenção dada ao marido, parece ainda menor a atenção que os editores dedicaram às obras dela (4 edições críticas da obra completa e várias edições de antologias comparados a... bem... algumas de obras esparsas e uma única "completa"). A obra mais "famosa" da escritora, os já mencionados Sonnets from the Portuguese,  nunca teve uma edição crítica, embora  graças a W. S. Peterson existe uma edição baseada no manuscrito da British Library e as únicas obras dela que ganharam uma edição textualmente confiável e amplamente anotada foram Casa Guidi Windows, editado por Julia Markus em 1977, e Aurora Leigh, editado por Cora Kaplan em 1978, edições decorrentes do interesse da crítica feminista (consequentemente, mais por razões de gênero do que literárias propriamente ditas) e os livros nunca foram reeditados desde então (Kaplan foi reimpresso, mas sem o aparato). Consultando obras de referência de história literária inglesa em português vemos que tanto Carpeaux (2008) quanto Milton e Correia (2009) tratam a escritora meramente como um apêndice à poesia "maior" do Bob, e em pouco mais de um parágrafo resumem a autora de modo indiferente. Um leitor descuidado pode imaginar que no mundo inglês isso seja um pouco diferente, mas asseguro que não. David Daiches, por exemplo, em seu A Critical History of English Literature diz:
Elizabeth Barrett Browning (1806-61) é conhecida hoje principalmente pelas circunstâncias românticas de seu casamento com Robert Browning, mas em vida ela foi o mais famoso poeta dos dois. A poesia dela não tem nada da precisão verbal e força da do marido; é altamente emocional, às vezes apresenta tom embaraçosamente pessoal, e se sustenta em imagens poéticas e dicção convencionais. (DAICHES, 1997)
e posso garantir aos meus leitores que isso é a coisa mais simpática que o crítico tem a dizer sobre a escritora, no único parágrafo que dedica a ela num livro de mais de mil páginas.

Se o fato de a poesia da escritora, mundialmente famosa na "carne" (tomando as palavras de Virgínia Woolf), ser amplamente e francamente ignorada no mundo inglês costuma ser surpreendente para a maioria dos brasileiros, as razões parecem ainda mais misteriosas. Aqui, se me permitem, parto para a mera especulação. Alguns críticos atribuem essa falta de consideração principalmente à misoginia da crítica literária, e embora eu até possa admitir que há a possibilidade desse fator entrar na equação, não acredito que seja a causa ou uma das causas principais. Há três razões fortes para o desapreço que se tem pela obra da Belinha, a meu ver: 1. A popularidade que a escritora gozava na era vitoriana: "se os vitorianos gostavam não presta!" (o mesmo, por exemplo, acontece com parte da crítica que trata de Tennyson: ver por exemplo o tratamento ainda mais agressivo que Carpeaux dá ao poeta); 2. A popularidade massiva de uma obra que mesmo não sendo, ao meu ver e na visão da maioria dos críticos, uma grande obra literária, tem a peculiaridade de ser admirada pelos motivos errados (o que aconteceu a outros escritores no passado); 3. A comparação quase injusta, mas sempre tentadora, que se faz da poesia dela com a do marido (o que acontece, por exemplo, no dilema do casal Hughes). Mais importante é falar, contudo, porque NÃO devemos ignorar a escritora e lê-la como mero apêndice na vida do Bob. Pode-se argumentar que a Belinha foi a mais influente e importante escritora inglesa do século XIX, exercendo influência direta e significativa em Poe e Emerson (e daí, indiretamente, também em Baudelaire) nos Estados Unidos, em Pessoa em Portugal, em Du Bos e Gide na França, além de virtualmente ter influenciado toda a escrita feminina de língua inglesa, o que, por exemplo, explica a presença massiva, nesta escrita, do léxico corporal, subjetividade marcante, acentuada consciência quanto ao "status público e privado" da "condição" feminina que marcam toda a literatura inglesa feita por mulheres. Por fim, uma abordagem honesta da obra da escritora nos revela que, embora a obra da Belinha seja extremamente desigual (o que é bem comum nos poetas britânicos, para começo de conversa), há momentos de verdadeira grandeza em toda sua obra: dos poemas longos juvenis (particularmente An Essay on Mind, a despeito do caráter epigônico) aos maduros (Casa Guidi Windows e Aurora Leigh), assim como os poemas curtos espalhados por sua obra, entre os quais posso mencionar ao leitor mais curioso "The Soul's Expression", "Insuficiency", "The Runaway Slave at Pilgrim's Point", "The Gift", "A Musical Instrument" e "Bianca Among the Nightingales", apenas para ficar com as peças interessantes que consigo lembrar de cabeça, e que em nada se encaixam no usual comentário depreciativo de uma linha que frequentemente surge nas histórias literárias. A Belinha é uma grande poetisa inglesa e deve ser lida como tal.

Apesar de tudo, precisamos conhecer a vida da escritora e lê-la com bastante cuidado e atenção, tanto para compreender o desenvolvimento artístico da Belinha, como para compreender o aspecto mais pessoal da sua obra, que inclui o Sonnets from the Portuguese. Em linhas gerais, a "história" da vida e casamento da Belinha são tão consolidadas no imaginário, que é um trabalho bastante árduo lidar com ela fora de toda concepção mítica da "Andrômeda de Wimpole Street". Em resposta a esse mito popular surgiu um contra-mito que foi basicamente incentivado pelos críticos e biógrafos do Bob que não gostavam da esposa do poeta (e, desse modo, pressupunham que o poeta também não devia gostar) e não toleravam a ideia de um "happy ending"; armados de Freud, começaram a atacar tudo o que conhecemos a respeito dos poetas e simplesmente virar ao avesso a biografia do casal. Independentemente da influência que alguns defensores dessa "revisão biográfica" tiveram, essa segunda tese nunca foi popular em nenhuma esfera da crítica. Talvez eu fale mais sobre isso na próxima seção, talvez não, até porque, honestamente, não é algo que mereça ser falado extensivamente, apenas apontado. No fim, como notou Julia Markus
As cartas confirmam que o único mito sobre os Brownings que é absolutamente verdade é o mais romântico—o drama do cortejo. Robert Browning se apaixonou por uma poetisa inválida, escreveu para ela, a visitou. O amor deles a retirou do sofá do qual ela quase nunca saiu, descendo as escadas da casa de Wimpole Street, para a sala de estar, para a caminhada no parque e depois para a Itália—um clima que iria beneficiar suas artes e a sua saúde. [...] Os cínicos [que desacreditam do amor entre os poetas] podem poupar a si mesmo o trabalho. Não há sombra o bastante na situação dos poetas além da clara luz do amor deles. (MARKUS, 1995)
Por outro lado, muitos aspectos do próprio mito ou da ideia popular a respeito dos poetas não passa de... mito. O primeiro deles decorre da própria estrutura mítica: se Bob é o herói que salva a Belinha, a donzela indefesa, os dois precisam de um vilão, e o personagem que foi escolhido para ser o vilão foi Edward Barrett, o pai da dama.

Por mais que eu tente, não consigo deixar de sentir grande curiosidade pela figura de Edward Barrett (assim como tenho grande curiosidade por Robert Browning, o pai do Bob, mas não é meu assunto de hoje). Ao que parece, todos os biógrafos sérios da Belinha e do casamento dela tem a mesma curiosidade, embora a ideia popular do monstro vilanesco permaneça em todas as esferas da crítica e da cultura popular, simplesmente por ser a mais fácil, mas por outro lado também é a mais enganosa. Eu já li muita coisa escrita sobre Edward Barrett em português, e até onde sei a grande maioria (se não tudo o que foi escrito) já introduz uma informação que é potencialmente enganosa, que é a de que o pai da Belinha a proibia de casar, ou, de modo mais desenvolvido e ainda mais enganoso, que proibia suas filhas de casar. Daí vem as explicações quanto às razões, e alguns, como Vizioli, armados pela lógica pressupõem que proibia Elizabeth de casar porque ela era doente. Outros, armados com ainda mais Freud, pressupõe que proibia as filhas de casar por algum nefasto desejo incestuoso, e essa última é a versão mais popular, ou pelo menos é o que a famosa peça do Besier sugere.

O fato é que Edward não proibia só Elizabeth de casar, ou proibia todas as filhas, mas proibia todos os filhos, homens ou mulheres de casar, e esse fato é importante frisar, não apenas porque torna o pai da Belinha um homem incomum (pais que proibiam as filhas de casar não eram incomuns na era vitoriana, mas que os proibiam os homens também o seriam?) como todas as justificativas comuns para a proibição parecem se desintegrar frente ao fato em si. Para o patriarca dos Barretts todos os filhos deveriam viver sob seu teto, jamais ter um filho legítimo carregado ao seio da família (embora possamos presumir que ele não tinha nada contra filhos ilegítimos... mas nunca saberemos) e jamais casariam, e essas eram as leis básicas que ele impôs. Os três filhos que desobedeceram (Elizabeth, Henrietta e Alfred) essa lei simples foram não apenas deserdados, mas nunca mais tiveram qualquer contato, pessoal ou por escrito, com o pai enquanto viveu: para Edward Barrett estavam mortos. As razões para essa única e imutável lei? Ninguém sabe ao certo, e aqui só restam especulações. Isso, entre outras coisas, prova que há uma única coisa a respeito do mito Edward que também é verdadeira: Edward Barrett era de fato um tirano, se resumirmos o sentido da palavra ao homem que tem a família inteira sob a ordem de sua palavra, uma palavra que é lei inquebrável e que é só uma, não voltando atrás jamais. Agora, há tiranos e tiranos, e há também milhares de anedotas espalhadas por aí "provando" que Edward era um monstro inimaginável. Até onde pude coligir todas elas são objetivamente falsas (a história que Edward teria matado Flush, o cachorro da Belinha, após o casamento dela, por exemplo, é incompatível com o fato de que Flush morreu de velhice, aos 13 anos, em Florença, em junho de 1854), e é mais fácil encontrar anedotas verdadeiras que mostram que ele, no fim das contas, era um tirano amável ou bem humorado (como a que afirma que ele cuidou de uma ex-escrava com problemas mentais até a morte dela, ou a de que ele referia-se a Browning [sim, ele sabia dos encontros entre os dois] como o "poeta das romãs"... as duas são verdade). O que importa mesmo saber, para um estudo da biografia da Belinha é que ela não só considerava-o um bom pai (a despeito de sua Lei) como a própria proibição única que Edward impunha nunca lhe causou tanta aflição como aos irmãos, uma vez que ela, diferente deles, tinha uma herança (e por isso, fonte de renda) própria e também porque Elizabeth, extremamente doente desde a juventude, nunca sequer cogitou a hipótese de casar. Aliás, é notável saber que a Belinha era profundamente contra a instituição do matrimônio.

Elizabeth então nasceu no dia 6 de Março de 1806, filha do casal Edward e Mary, que tiveram ainda mais 12 filhos. Belinha foi uma das primeiras da família, em algumas gerações, a nascer na Inglaterra e a primeira a levar o nome Barrett Moulton-Barrett (nome esse que ela nunca usou para assinar suas obras). A família possuía negócios antigos na Jamaica, e, embora todos da família possuíssem objeções morais contra a escravidão, todo o patrimônio dos Barretts foi construído sobre o trabalho escravo. Belinha foi uma pessoa prodigiosa, tendo a melhor educação que uma menina poderia ter na sociedade vitoriana, aprendendo diversas línguas clássicas e modernas desde a juventude e lendo muito, com apoio da família. Demonstrou talento literário desde muito cedo, e graças à mãe é provavelmente um dos poetas ingleses com a juvenília mais extensa que foi preservada. Aos treze anos publicou seu primeiro livro The Battle of Marathon (epigônico, mas francamente melhor que qualquer coisa que o marido escreveu antes dos 24), graças ao apoio do pai; obra que foi distribuída entre a família e lhe rendeu o título informal de "Poeta Laureado de Hope End". A infância perfeitamente alegre (eu mencionei que ela tinha um pônei? um pônei!!!) de uma menina promissora teve de acabar por uma série de fatores: a doença que viria a se provar incurável nos anos 20 (quando ela começou a se viciar em morfina), a morte da mãe em 1828, da avó em 1829 e, mais adiante, a morte do irmão, que era seu maior amigo, em 1840 (no mesmo ano em que outro irmão morreu), a mais dura das perdas para Elizabeth. Durante esse período publicou sua primeira coleção, ainda muito imatura, An Essay on Mind, with Other Poems, em 1826, uma tradução de Prometeu Acorrentado, em 1833, e em seguida Seraphin and Other Poems, em 1838, obra que encerra a juvenília da escritora.

Os anos após a morte do irmão, em 1840 foram extremamente complicados para a escritora, pois o sentimento de culpa quase a levou à loucura. Alguns biógrafos supõem até que, não fosse por Flush, um spaniel que ganhou de presente da escritora Mary Mitford, ela teria ficado completamente biruta ou se matado. Não sei nada sobre isso. O que sei é que, a despeito da depressão e constante isolamento da Belinha, os anos entre 1841 e 1844 foram os mais produtivos para a escritora, tendo sido nesse período que ela escreveu a maior parte dos poemas publicados em 1844 e que começou a se corresponder com inúmeros intelectuais ingleses. Em 1842 (o ano que marca a literatura vitoriana, com a publicação dos dois livros-marcos do período, de Tennyson e Browning), John Kenyon, uma das únicas pessoas fora do círculo familiar dos Barretts que via a Belinha pessoalmente e tinha acesso ao quarto dela, sugeriu que a escritora contatasse o poeta Robert Browning, podendo ele próprio servir de intermediário, oferta recusada por ela, mas que serve de apresentação à obra de seu futuro marido. Em 1844 auxilia Richard Hengist Horne na série de ensaios A New Spirit of the Age, que trata de poetas contemporâneos, a partir da qual consegue um retrato de Browning e Tennyson que pendura em seu quarto ao lado do de Wordsworth. No mesmo ano publica Poems, de 1844, em dois volumes, obra que lhe renderá fama internacional e consolidará o lugar da escritora entre os maiores de seu tempo.

Em 1844, um jovem poeta, Robert Browning lê seu livro e, surpreso, descobre num poema dessa escritora consagrada ("Lady Geraldine's Courtship", que aliás, também influenciou o metro de "The Raven", do Poe) uma referência à sua própria obra, nos versos "Or from Browning some 'Pomegranate,' which, if cut deep down the middle,/Shows a heart within blood-tinctured, of a veined humanity". A partir da sugestão de Kenyon (o mesmo Kenyon que, dois anos antes, tentou apresentar o poeta para a Belinha) Bob iniciou, no ano seguinte, a correspondência que culminaria no casamento mais famoso da história literária da Inglaterra. Durante os dois anos em que os poetas trocaram cartas Bob escreveu e publicou bastante (bem como desistiu de escrever para o teatro), enquanto a Belinha escreveu apenas os Sonnets from the Portuguese, originalmente sem pretensões de publicar. Depois de muita relutância, tendo de literalmente escolher entre o casamento  (um destino incerto em terras estrangeiras) e a morte certa no inverno londrino de 1847, os Brownings se casam em segredo e na semana seguinte partem para a Itália, onde o clima mais brando e o menor custo de vida comporiam o melhor lugar possível para viverem. Especifico mais detalhes na parte seguinte, ou não. Como já mencionado, Belinha foi deserdada e rejeitada pelo pai, nunca mais tendo contato com ele. Elizabeth escreveu várias cartas ao pai e, anos depois, as recebeu de volta, lacradas, por intermédio do marido. Os poetas passam a viver em Florença em abril de 1847. Em 20 de julho passam a morar na Casa Guidi onde a escritora vê a passeata dos florentinos no mesmo ano e que inspirará o poema Casa Guidi Windows, uma das melhores obras da escritora.

Entre a chegada em Florença, em 1847, e o nascimento do único filho, Robert Browning, doravante chamado "Pen" (que, acreditem ou não, é abreviação de Wiedemann... do mesmo jeito que "Ba" é abreviação de Elizabeth), em 1849, as únicas coisas biograficamente relevantes para um comentário curto como este foram os quatro abortos que antecederam o nascimento do Pen e o fato de que, na Itália, Belinha finalmente pode conhecer inúmeras personalidades pessoalmente, e não apenas por cartas. Em muitos lugares há a informação de que a Belinha publicou, em 1847, uma edição particular dos Sonnets from the Portuguese, mas essa edição é uma falsificação tardia. Os Sonnets foram apresentados para o Bob em 1849 (antes dessa data toda a coleção era um segredo da Belinha), logo depois do nascimento de Pen e da morte de Sarah Anna (mãe do poeta) nove dias depois, para ser mais exato. Os poemas de Elizabeth, serviram para aliviar a dor da perda e, devido à insistência do Bob, foram publicados em 1850, na coleção intitulada Poems, que incluía os poemas publicados em 1844 e uma série de novos poemas, incluindo os novos sonetos.

Os anos seguintes foram prolíficos para a autora. Publica Casa Guidi Windows, em 1851, poema que merece destaque porque, na minha opinião, é a melhor e mais forte de suas obras. Uma terceira e quarta edições de Poems saíram em 1853 e 1856 respectivamente. Em 1856 Belinha publicou Aurora Leigh, considerado por virtualmente todos os outros críticos exceto eu (que, como já disse, prefiro Casa Guidi Windows) a melhor e mais ambiciosa obra da escritora. Aparentemente a própria poetisa pensava desse modo, pois chamava Aurora Leigh de "a mais madura das minhas obras"; o poema foi publicado com uma dedicatória a Kenyon (aquele mesmo), que em diversas ocasiões ajudou o casal após o matrimônio, e viria a falecer mais tarde no mesmo ano, deixando uma herança de £11.000 libras para os poetas (dividida da seguinte forma: £4.500 para a Belinha, 6.500 para o Bob), com rendimento de £700 anuais, garantindo aos dois segurança financeira. Em 1860 a escritora lança sua última coleção de poemas, com o título Poems Before Congress. Elizabeth Barrett falece na véspera do meu aniversário, em 29 de Junho de 1861, nos braços de Robert Browning, que ouviu suas últimas palavras. O funeral da Belinha foi extremamente movimentado, memoriais em sua homenagem foram erguidos e ela ficou conhecida como a poetisa do Risorgimento. O governo florentino ofereceu uma pensão para Bob, para criar e educar o filho em Florença, mas o poeta recusou. Bob cortou o cabelo do Pen e partiu o mais rápido que pode para a Inglaterra. De resto pouca coisa interessa para uma introdução biográfica da Belinha. Após 1861 a popularidade da poetisa começou a decair e, inversamente, o marido começou a tornar-se um poeta popular, fato inédito até então. Bob se encarregou de publicar Last Poems (1862), The Greek Christian Poets and the English Poets (ensaios, 1863) e uma importante antologia da obra da Belinha, em 1872. Como era de se esperar, Browning nunca permitiu a publicação de biografias ou das cartas, dele ou da esposa, enquanto viveu, com uma única exceção: as cartas dela para Richard Hengist Horne, e apenas as que envolviam assuntos estritamente literários, com o intuito de ajudar financeiramente a família do amigo comum, que passava por dificuldades financeiras. O poeta tinha grande receio que sua correspondência pessoal fosse publicada, mas na impossibilidade moral de destruir as cartas que escreveu para a esposa e, principalmente, as cartas que ela lhe escreveu, deixou a responsabilidade da decisão para o filho, que prontamente as publicou 10 anos após a morte do pai. A coleção completa encontra-se hoje na Wellesley College Library, e está disponível em na internet em todos os formatos imagináveis.



Atualização de 28/01/2018: Agradecendo ao Roberto (A.K.A. Riobaldo), que me apontou uns errinhos e me fez dar uma corrigida e aperfeiçoada no estilo. O conteúdo geral continua o mesmo.

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