Bowdlerização dos clássicos é um fenômeno histórico da recepção dos textos antigos extremamente complexo, embora amplamente estudado e documentado. Na sociedade moderna, o processo de expurgar o texto clássico daquilo que, por qualquer razão, "não se deva ser visto" é caracterizado como censura e não vista com bons olhos não só dentro da comunidade acadêmica, mas também para o leitor comum. Contudo, o leitor comum, particularmente o não-especialista ou aquele que não sabe a língua em questão (contando com traduções para ter "acesso" às obras) tem de encarar a dura realidade desse processo histórico, que não desapareceu completamente: ainda há muitas coisas sobre as quais não queremos discutir que silenciamos, ignoramos, ou modificamos para que se possa "engolir" com mais facilidade (por nós, eu falo aqui leitores, críticos, tradutores e mesmo especialistas e professores). Recentemente, no mundo todo, o mundo dos estudos clássicos tem tomado uma postura oposta e de extrema aversão ao processo, e os textos clássicos e comentários estão cada vez mais explícitos que nunca, em casos em que o texto latino (eu imagino que o mesmo ocorra em grego, mas eu não posso opinar diretamente no assunto) não é explícito ou a "questão" (obscena, pesada, imoral, vulgar, ilegal, etc) sequer existe de fato no texto. Esse movimento contrário tem grande força como remédio e trás muita coisa para a discussão, contudo essa tendência tem se tornado majoritária dentro da leitura e tradução dos clássicos, e começo a perceber que ela também tem o potencial de trazer seus próprios perigos... Essa postagem não se pretende um estudo geral sobre o tema e sobre tais tendências, pois eu não tenho competência para isso. O que eu quero apresentar são três diferentes modos em que esses processos (expurgo e atenuação vs explicitação) podem ser usados, em três diferentes casos e autores, e discutir isso partindo das "palavras" e as traduções (ou não traduções) das mesmas.
CONTIDO OU LÍNGUA SOLTA? Juvenal, Sat. II
Começar a falar de bowdlerização significa, quase sempre, começar a falar de Juvenal. O poeta tem uma larga história de censura, seja no texto latino como em suas traduções, desde o início do período moderno (é irônico que não temos evidência dos medievais expurgando o poeta, já que os medievais adoravam Juvenal exatamente por ele expor as "imoralidades", e não a despeito disso... e falamos tão mal da "censura" medieval...). Em 1505 foi publicado o texto latino de Mancinellus (imagem acima), que embora continha o texto completo comentava apenas aquilo que era "adequado à moral", e representava de modo enganoso ou falso muito do que não o era; em 1683 foi publicado Iuuenalis Satirae ab omni obscoenitate expurgatae, que foi mais longe e removeu toda obscenidade do próprio texto latino, versões como essas se proliferaram em todos os países, e até o século XX ainda eram publicados Juvenais recortados em latim. A primeira tradução espanhola contém o revelador comentário:
"He
procurado hacerle hablar en español con la misma pureza, propriedad,
elegancia y decoro que él propio hablaria se hubiera nacido entre
nosotros. He suprimido la Sátira IC., y le he depurado y expurgado de
quanto pudiese ser ofensivo á la decencia y delicadeza de las consumbres
cristianas"
Em português a tradução de Francisco Antônio Martins Bastos remove ou diminui obscurece as notas sexuais, e ainda assim Ary de Mesquita, selecionando uma das traduções dele, nos diz em 1950 que "As
suas [Juvenal] sátiras são escritas em linguagem livre, o que ao autor desta
colectânea deu o trabalho de escolher a menos ouriçada de
escabrosidades".
O resultado prático desse "pudor" deve ser óbvio: um grupo significativo de sátiras foi sistematicamente removido das versões vernáculas, ou terminaram carentes de comentários. As sátiras II, IV e IX são as mais frequentemente omitidas, e as poucas vezes que são traduzidas, são sistematicamente bowdlerizadas omitindo tudo aquilo que o tradutor não quer falar a respeito. Como exemplares dessa tradição eu irei mencionar a tradução "integral" de Ramsey (Loeb) e a versão de Francisco Antônio Martins Bastos (reeditado pela Ediouro).
O antídoto para tal atitude veio com a modernidade, em que o Juvenal foge das amarras de uma "linguagem polida" e dos limites da representação moral. Em inglês vemos, de dois modos distintos, esse movimento contrário nas versões de Peter Green e de Susanna Braund (de modos um tanto distintos), e no Brasil pelo excelente trabalho do Fábio Cairolli especificamente na segunda sátira (aqui). A diferença não poderia ser mais gritante, e eu vou começar a apontar a idiossincrasia da tendência moderna, porém devido ao fato de ela não ser óbvia, e o dano ao texto ser menor que a tendência bowdlerizante. Aqui eu vou me abster à discussão textual, embora devo apontar de cara que Braund tem o melhor texto latino, Green o mais errático, e Cairolli provavelmente o pior; a diferença, contudo, é menos importante na segunda sátira do que em outras mais problemáticas, e o melhor benefício para o texto é provavelmente apenas uma linha, a 108, que Braund lê "Assyria...urbe" (i.e.: Babilônia), Green omite "urbe/orbe" e Cairolli lê "Assyrio...orbe" como "em mundo Assírio" (orbe, quando significa "mundo", significa o mundo inteiro, não a parte em questão...). Discrepâncias menores são menos relevantes para a discussão...
Há uma diferença significativa entre as traduções... Green contém menos palavrões e obscenidades "diretas", e na segunda sátira eu contei apenas 3 casos (cocks, whores e fag; pica, putas e bicha!), contudo a expressão é massivamente contemporânea, e muitas vezes anacrônica, dos quais seleciono alguns exemplos: raging queens, humbuggers, dyke, fairies (sentido de "bicha"), gangsters, killjoy, boutique, queers, gazette, pansies... Até onde sei, a última edição de Green foi pesadamente revisada, porque ela tinha um tom extremamente livre e por conta das críticas ele deixou o seu Juvenal em um tom mais elegante e solene; todos os exemplos tirados são dessa edição já revisada e que removeu muitas "vulgaridades", e só posso imaginar como a versão anterior era antes da revisão. Susanna Braund é provavelmente a tradutora mais elegante de Juvenal da modernidade, a despeito da prosa, e normalmente não se abstém de falar das questões moralmente difíceis do poeta (aqui, há, contudo, uma neutralização estranha "turns pale from both diseases"... basicamente "curte" os dois lados, i.e. o cu e a rola... a expressão inglesa é estranhamente contida, mas isso é excepcional na tradução), mas ainda assim na mesma sátira ela apresenta duas expressões populares e duas ofensas vulgares: digging-hole, bogus, arsehole (com sentido de "cu"... é um tanto engraçado ver essa variante britânica com esse sentido) e arse (e devo mencionar "patrician cunt" na sexta sátira...). O Cairolli, que fez a melhor tradução portuguesa, tem igualzinho (e outros diminutivos), buraco (cu), tesão (?, tenho dúvidas se conto entre léxico tradicional ou popular), a raba (com sentido de bunda), frouxos (sentido de efeminado) e grana, dentre o uso popular, e tem bicha(s), cu e enrabado como obscenidade clara, além da significativa licenciosidade de traduzir fracta uoce (voz feminina) como boca frouxa (associado ao sexo oral?).
Essa licenciosidade é extremamente marcada quando comparamos com as traduções antigas, já mencionadas. Nenhuma obscenidade e nenhuma vulgaridade tanto em Ramsey quanto em Bastos, contudo isso claramente tem um preço, e alto: um dos pontos cruciais da sátira envolve o fato de que mesmo as prostitutas não são tão ruins moralmente quanto os "homens de bem", e uma dessas comparações envolve a notável aversão que os romanos tinham ao sexo oral, e no verso 49 Juvenal diz "Tedia non lambit Cluuiam nec Flora Catullam", que Bastos traduz de modo completamente obscuro um "Não é com Clúvia, Tédia, nem com Flora, | Torpe Catula", sem menção à prostituição ou mesmo qual o "feio exemplo" de que elas não se gabam, enquanto Ramsey remove a linha inteira, dizendo apenas "never in our sex will you fing such loathsome examples of evil"; o que nem mesmo as prostitutas não fazem (e que os homens efeminados fazem), é "lamber" uma a outra.
Contudo, essa evidencialização corre o risco de falsificar o registro do poeta, algo que ao menos Green tem noção bem clara do que faz. Que versões antigas do Juvenal são bowdlerizadas é algo que é quase senso comum, de modo que o leitor ao ler uma tradução antiga sabe bem que esse é o caso, mas o leitor moderno pode não se dar conta, ao ler as novas traduções, é de que Juvenal não usa nenhuma palavra vulgar ou palavrão, mantendo um registro sempre solene e clássico (a única exceção é a palavra cicer [pau], no fragmento de Oxford, mas ela não só é excepcional como existe em apenas um único manuscrito... por hora, vamos assumir que Juvenal não usou essa palavra). Juvenal não é Catulo ou Marcial, que gostam de jogar obscenidades e vulgaridades para todo o lado, e até mesmo Horácio tem uma gama de palavras que Juvenal nunca usaria: caco, merda, pedo, oppedo e muto (apenas no primeiro livro das sátiras). As palavras mais usadas, como pathicus e cinaedus são de construção similares a "passivo" e "sodomita", não "bicha", e a diferença de registro é notável.
Novamente, as tendências modernas de tradução são extremamente efetivas como antídoto para a tendência bowdlerizante e de censura pela qual o texto de Juvenal sofreu por séculos, mas o leitor crítico deve ter bastante cuidado em perceber que há algo de extremo que vai para o outro lado, e assim como a tendência de omitir, ela pode dizer muito mais do que Juvenal dizia, e frequentemente de um modo que não representa o estilo do poeta, o que nem sempre é a preocupação com certas tendências tradutórias contemporâneas.
UMA PALAVRA E DISCREPÂNCIA INTERPRETATIVA: Virgílio, Aen. IIII, 215
O caso em estudo é bem distinto do que falamos em Juvenal. Enquanto no processo anterior há coisas que Juvenal diz que são omitidas de um lado, e por outro lado os tradutores criam um modo e registro de discurso que não representa rigorosamente o registro do autor, na seguinte passagem da Eneida estamos lidando com os limites da interpretação, feitas por dois grandes tradutores que também apresentam tais tendências opostas no que traduzem.
Carlos Alberto Nunes é o grande tradutor dos épicos clássicos (Ilíada, Odisseia, Eneida) e do drama shakespeariano, e deve-se notar que ao menos em Shakespeare Carlos Alberto tem a tendência de tornar o verso (frequentemente vulgar) em algo bastante elegante, que ocasionalmente não bate com a obscenidade ocasionalmente hilária do bardo inglês. João Ângelo é notório professor de latim e um dos maiores classicistas do país, famoso também pela tradução integral da poesia de Catulo, e embora Catulo seja um poeta realmente vulgar e obsceno, o verso de João não tem o menor receio de expor essa obscenidade, e, se minha contagem está correta, usa bem mais palavras vulgares que o próprio poeta (lembrar novamente de cinaedus e pathicus, que em 16.2 Ângelo traduz por "bicha" e "chupador"). O que acontece aqui é que os tradutores parecem discordar da interpretação de uma palavra no texto virgiliano, e ambos interpretam no limite do que o texto latino tem o potencial de significar. O verso é o seguinte:
et nunc ille Paris cum semiuiro comitatu
Carlos Alberto traduz o verso do seguinte modo:
E ora esse Páris, seguido de um bando de gente somenos
João Ângelo claramente discorda da interpretação/tradução do Nunes, apresentando sua própria interpretação para a palavra semiuiro:
Somenos: inferior. Virgílio diz semiuiro comitatu, "gente efeminada", "só metade homem".
Qual das duas traduções/interpretações é a correta? Honestamente, eu pessoalmente acredito que ambas estão erradas, e acho que Virgílio quer dizer aqui "companhia de eunucos" (ver o mesmo sentido em XII 99; a associação dos troianos com os eunucos do culto de Cibele é persistente, e permanece até mesmo em Nono), que é o sentido mais direto e causa menos problemas interpretativos; contudo a postagem não diz respeito a minha interpretação pessoal, mas aos possíveis modos de se ler a palavra, e como traduzi-la...
Parece óbvio aqui que ambos os tradutores foram levados a tais extremos interpretativos por conta de seus hábitos, seja o da elegância de Nunes, seja do caráter direto e sem ocultações do Ângelo. Em matéria puramente linguística, ambas as versões são possíveis, na medida em que a compreensão de "somenos" e "efeminada" seja específica.
O problema interpretativo não é particular da passagem, mas de todos os compostos latinos em semi. Quando se usa o termo semi-algo pressupõe-se que tal coisa ou ser seja composto de metade "esse algo" e metade "outra coisa", e o resultado disso é que compostos com semi sempre têm um sentido limitado e variado, e quando o sentido não é óbvio pelo contexto os críticos ficam numa saia justa: talvez o mais famoso e debatido exemplo seja semipaganus em Pérsio em que não apenas basta saber o que significa metade paganus, como se faz necessário entender o que diabos é a outra metade (a interpretação mais comum é o de semirusticus semipoetaque; i.e.: só metade poeta... ainda assim a leitura não é clara).
O que então semiuir significa? Virtualmente qualquer coisa: Hércules é semiuir (semideus), o Minotauro é semiuir (semibos... "semibovemque virum semivirumque bovem" é provavelmente a pior linha de Ovídio... contudo, apenas semiuir é usado, e pode gerar confusão), um tritão é semiuir, um hemafrodita é semiuir (semimulier) e por aí vai. A palavra, isolada da outra "metade" pode também denominar alguém fisicamente incompleto, como um aleijado ou um castrado.
Em que sentido semiuir pode significar "somenos"? Eu consigo pensar em apenas dois modos: se uir significa "nobre", de "alta estirpe", semiuir pode significar semiplebs; uir também pode ser usado com sentido de soldado (ainda usamos "1000 homens", por exempo...), nesse caso semiuir pode significar semiarator (semirusticus), meio-camponeses, soldados "inferiores". Embora eu pessoalmente não me sinto atraído por nenhuma das alternativas, em matéria puramente linguística essas leituras são possíveis, e "somenos" é uma tradução adequada para elas.
Em que sentido semiuir pode significar "efeminados"? Não no sentido mais óbvio da palavra em português. Eu não sei exatamente com que sentido o João Ângelo leu, mas os leitores dele provavelmente vão entender a expressão efeminados como "meio bicha". O problema é que essa leitura não faz o menor sentido (nem mesmo em português... o que diabos seria "meio-bicha"? quem "dá meia-bunda"?), e semipathicus não é uma metade válida (exceto se houver divisão temporal, ou seja, de dia é "mano" e de noite "mona"), e semimulier significa hermafrodita, como já vimos. Contudo, "efeminado" também pode ter uma ampla gama de sentidos, seja cosmético (i.e.: semifemina no sentido de ser homem mas se vestir, maquiar, perfumar, como uma "mulher", visto que romanos não eram sensíveis à diferenças culturais... asiáticos eram consistentemente vistos desse modo) seja com uma particularidade sexual específica considerada imoral e efeminada pelos romanos (semipuer, i.e.: pederasta), mas que não costuma receber esse adjetivo na sociedade moderna (que vai usar "pedófilo" ou "pederasta", não "efeminado"). De fato, "pederasta" é a interpretação clássica, e Sérvio, que interpreta semiuir como "id est effeminati" mas especificamente referente a quem "ab ipsis enim ferunt coepisse stupra puerorum"; a acusação de que gregos e frígios eram pederastas (que, para os romanos, era ser efeminado) é recorrente, e semiuir é amplamente usado com sentido especifico de pederasta na antiguidade tardia, seja pelo poeta Ausônio (ver meu comentário anterior), seja pelos imitadores de Virgílio (Prudêncio, por exemplo). Semiuir pode significar "efeminado" no sentido de cosmética, ou no sentido específico da prática da pederastia, mas aparentemente não no sentido mais geral que a palavra evoca em português.
Aqui é um exemplo das dificuldades interpretativas que uma única palavra pode trazer, e como práticas e tendências tradutórias podem levar críticos a compreender no limite da interpretação mais "branda" ou mais "pesada", quando vistas e traduzidas por dois latinistas da maior competência.
FOI ESTUPRO, NÃO 'AMOR'! Ovídio, Met. IIII, 798-799
Se há algo que une o corpus da literatura latina é a misoginia, e se há uma consequência disso que representa a maior dificuldade nossa a lidar com as obras clássicas é a representação e glorificação do estupro de mulheres, que é pervasivo em toda a literatura latina, em todos os seus gêneros.
É extremamente difícil falar desse assunto, é bem delicado; eu mesmo imaginei que seria bem mais fácil dissertar sobre isso brevemente, mas falar de um tema como esse não é fácil. Contudo, se negar a falar disso, que é tão óbvio e evidente, e tentar usar técnicas Jedi para fingir que isso não existe na "nossa amada literatura clássica" não é apenas contraprodutivo e desonesto intelectualmente, mas pode ser realmente perigoso e ajudar a passar adiante uma narrativa que glorifica o abuso sexual, culpa a vítima ou diminui seus impactos. Lastimavelmente, não sou psicólogo, pedagogo, assistente social ou alguém que trabalhe na linha de frente dessas questões, e por isso eu recomendo a leitura do texto de Dani Bostick (aqui) antes de qualquer discussão; ela apresenta de modo sucinto e claro os problemas dessa distorção, e eu vou tentar me focar em interpretação.
Em primeiro lugar, é importantíssimo lembrar que os romanos simplesmente amavam narrativas de estupro. Essa parte, tristemente, não é tão difícil de compreender hoje em dia, tendo em vista a ampla demanda de pornografia hardcore, rape porn, o apelo popular de filmes rape and revenge, de modo que a ampla representação do abuso sexual não é exatamente algo que desapareceu completamente, ou que provavelmente vai desaparecer. Agora os romanos REALMENTE amavam esse tipo de representação, de modo que é mandatório que os romanos conheçam essas narrativas e saibam representar o estupro. Virgílio conta mais de uma história de estupro, e é particularmente notável que ele represente até mesmo a guerra (o saque de Troia, em Aen. II 469-505) em termos de violência sexual. Grande parte das histórias mitológicas envolvem algum tipo de fraude ou violência sexual. Mesmo o gênero mais inocente, como o Bucólico, pode conter uma representação gráfica e sombria: a segunda écloga de Nemesiano conta a história de dois pastores que resolvem estuprar uma pastora que colhia flores. Poemas nupciais são outro caso de destaque: é esperado que o poeta represente detalhadamente o estupro marital, seja estando confortável ou não com isso (notar a diferença entre a atitude de Ausônio e Claudiano, em Cento e Fescennina), e pode nos parecer surpreendente hoje que alguém como o general Stilicho ordene que seu poeta pessoal componha versos que representem, em detalhes, a própria filha sendo estuprada e violentada pelo marido. Contudo, isso faz perfeito sentido dentro do contexto romano.
Não é fácil falar sobre isso, e em algumas épocas e lugares isso pode ser bem problemático. O fato de lidar com obscenidades e violência, em muitos lugares, pode custar a carreira de alguém, ou limitar drasticamente as opções de emprego (se alguém ler isso que escrevi, e souber quem sou eu, é muito provável que eu nunca consiga emprego em nenhuma escola ou faculdade cristã, e isso é um risco real). É quase anedótico que Housman, quando comentou textos extremamente obscenos, o fez em latim e em revista alemã, não em inglês como era sua prática usual, e Michael Hendry conhecia os riscos quando resolveu publicar seus textos online ("escrever on-line sobre algumas passagens de Sátira Romana, Marcial ou Aristófanes, pode significar nunca mais ser capaz de ensinar no ensino médio outra vez"... original aqui), e não é fácil encontrar sempre o modo correto de apresentar essas questões problemáticas. Mas é uma questão de obrigatoriedade moral fazer como recomenda Bostick, e dizer que é estupro, não fingir que é outra coisa, quando estupro for.
Como é esperado, até pelo tema geral desse Palavras Importam, as abundantes representações de estupro na literatura latina historicamente sofreram muita bowdlerização, omissão, e esse impulso ainda persiste até hoje, mais do que com obscenidade geral. Mas há um movimento forte que quer representar melhor as coisas como realmente são e falar francamente como as coisas são. O movimento feminista também tem relido muito da antiguidade e trazendo nova luz seja para a arte seja para a interpretação. Uma dessas figuras que mais tem sido revisitada é a figura da Medusa, que tem sido vista como a mulher forte, redesenhada (como na imagem acima, da Medusa decapitando Perseu), cuja história é compreendida (como diz Bostick em seu ensaio "Netuno estuprou a Medusa"), vista como um símbolo literário de culpar a vítima, e até mesmo participou de campanha online contra o estupro (na #Me(dusa)too)...
Só tem um grande problema aqui: MEDUSA NÃO FOI ESTUPRADA POR NETUNO.
Novamente vamos retomar essa tendência de discrepância entre traduções antigas e modernas, que é surpreendente. A maioria das pessoas, acessa o conhecimento dos textos clássicos através de tradução, e é uma das razões pela qual a Wikipedia em inglês da Medusa diz "se Ovídio diz que ela era uma participante [do sexo] com seu consenso não é claro" (grifo meu), e ao me deparar com as traduções inglesas fica claro a discrepância: de um lado "hook up", "attain her love", "make love", "seduced her", de outro "ravished her", "yelded her" e "raped her". Essa narrativa deriva de uma única fonte, por isso a discrepância interpretativa é de ordem tradutória, já que a relação entre Netuno e Medusa é contada unicamente nas Metamorfoses de Ovídio. Aqui temos uma discrepância de como traduzir e representar a passagem, o que também é discrepância de época. Aqui o original ovidiano, que, até onde sei, não apresenta problemas textuais:
hanc pelagi rector templo uitiasse Mineruae
dicitur;
Eu por hora não vou discutir qual é a "história verdadeira" da Medusa. Essa narrativa é, ao que tudo indica, criação ovidiana e não faz parte da mitografia ou do grosso das múltiplas leituras da história da Medusa; uma coisa que eu acho muito relevante para a interpretação de Ovídio é a poderosa negação da autoridade da própria narrativa nessa passagem, que o narrador não assume atribuindo para a narrativa a autoridade do dicitur (dizem, é rumor, eu não garanto que foi assim que aconteceu). Por questão de argumento eu vou assumir o verso como "fato" e como a "verdadeira história" da Medusa, segundo Ovídio ouve estupro? ele é ambíguo a respeito?
A resposta é não. A despeito de ser uma palavra de carga semântica pesada ("uitium", vício, contaminação), uitiasse tem um sentido muito claro, inequívoco e preciso: tirar a virgindade (vulgar "descabaçar", ou no mais elegante paraensês "mexer com"). Que fique claro: uitiasse é uma expressão claramente misógina que deve ser problematizada, já que propaga a noção de que a mulher se contamina ou perde o valor com a prática sexual, um tipo de linguagem que ainda persiste nos dias de hoje, e pode ser extremamente danosa particularmente quando aplicada para pessoas que sofreram violência. Contudo isso é uma questão de texto: uitio não significa estuprar (como, aliás, stuprum), não tem essa conotação. De fato, olhando os usos clássicos da palavra (o ThLL ainda não chegou em V, e eu não estou com cabeça para pesquisar o sentido que Terêncio dá à palavra, que na prática não importa), os gramáticos Gélio e Quintiliano usam em sentido que deixa absolutamente claro que o ato de uitiare (tirar a virgindade, "contaminar") foi consensual da parte da mulher "contaminada" (urgh!), de modo que a moça em Quintiliano usa de retórica para proteger o perpetrador da "malicia". Mas de fato, não precisamos dos gramáticos ou mesmo dos usos externos, porque o próprio Ovídio deixa claro o sentido da palavra: em Heroides 11 a expressão vitiati pondera ventris não deixa quaisquer dúvidas a respeito do sentido da palavra, já que todos podemos concordar que Macareu foi um completo "filho da puta", mas a entrega de Canace foi certamente voluntária, que é o sentido com que o próprio poeta usa (segundo o próprio autor, contudo, Canace foi estuprada por Netuno). A passagem em questão não se trata de estupro, embora ainda assim humilha e põe a responsabilidade desproporcionalmente sobre a mulher. Como o ensaio primeiramente postado diz, "não é tua [do professor] tarefa também redefinir o estupro e trivializar a violência sexual", e isso vale de ambos os lados, pois tratar do "estupro de Medusa" É redefinir o estupro apontando um que nunca ocorreu segundo a própria fonte tratada.
Por fim, uma nota a uma tradução brasileira. Raimundo Carvalho traduziu os 5 primeiros cantos de Ovídio em sua tese (aqui), e assim que ele traduz a passagem:
No templo de Minerva, o deus do mar violou-a,
dizem.
Carvalho sabe muito bem que Medusa não foi estuprada, tanto por ser ele próprio um classicista extremamente competente, como por ter lido uma edição bilíngue comentada que ao menos traduz corretamente a passagem. Talvez ele tenha desejado apresentar uma maior ambiguidade na passagem, prática que é cada vez mais comum entre os tradutores brasileiros, a despeito do original bastante direto. Minha intuição de falante do português consegue assumir, ao menos teoricamente, que a palavra "violar" pode ter tanto o sentido de "desvirginar" (manchar) como de "estuprar"; contudo, se eu leio a passagem em português a minha conclusão natural é que o "deus do mar a estuprou", uma interpretação cuja falsidade apenas o latim é capaz de desviar. Dicionários não parecem ajudar ou lidar bem com o termo, já que dois dicionários que tenho (Aulete escolar e Aurélio Jr.) apresentam o sentido de "tirar a virgindade" mas não de "estuprar", enquanto outros (Houaiss, Priberam, Aurélio, Bechara) apresentam apenas o sentido de "estuprar" mas não o de "tirar a virgindade". Alguns amigos de outras regiões têm me dito que eles também entendem "violar" como estuprar, e acabam caindo no mesmo problema de leitura que eu indiquei. Mas talvez o tradutor venha de uma comunidade linguística em que violar é mais usado com sentido de "desvirginar", já que em outra ocasião ele escreve " 'Ele | me violou contra meu querer' " e se "violar" significa "estuprar" aqui a frase é de uma tautologia absurda.