quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Humor Housmaniano, fragmentos de Cartas


Que Housman é frequentemente engraçado quando a maioria dos escritores consegue ser maçante não é segredo para ninguém, e seu estilo é cativante mesmo quando o conteúdo de seu discurso é irrelevante ou incorreto. Como 2020 está acabando, posto aqui algumas passagens da correspondência de Housman, contextualizada sempre que possível. A edição base é The Letters of A. E. Housman, por Henry Maas (Harvard University Press, 1971).


Sobre liberais (na Inglaterra do XIX, termo geral para se referir a todos os membros da esquerda, de anarquistas, comunistas, progressistas e liberais propriamente ditos, que são considerados esquerda na Inglaterra) e conservadores nas universidades, após uma proibição de participação política:

Semana passada, claro, ocorreu uma cena excitante: a campanha aberta pelo Vice-chanceler anunciando que qualquer graduando que tomar parte em qualquer encontro político será multado em £5, que foi fel e absinto para um grande número de Liberais, especificamente, que estavam prometendo a si a honra e glória de ficar ao lado de Sir William Harcourt na plataforma, e espalhando as asas da Universidade sobre ele: graduandos Conservadores foram afetados com menos severidade, já que nenhum deles é sequer capaz de falar decentemente. (Carta para Lucy Housman, 15 de Março de 1878)

A respeito de comentários sobre A Shropshire Lad:

Kate escreve para dizer que gosta do verso mais que dos sentimentos. Os sentimentos, ela então segue dizendo, parecem ser tirados do livro de Eclesiastes. Preferir a minha versificação aos sentimentos do Espírito Santo é decididamente lisonjeiro, mas me soa um tanto ímpio [...] (Carta para Laurence Housman, 27 de Abril de 1896)

Uma inusitada companhia:

 Eu confirmei, ao olhar de Wenlock Edge que a Igreja de Hughley não pode ter um campanário. Mas eu já havia composto o poema e não podia ter inventado um outro nome que soasse tão bem, e eu posso apenas deplorar que a Igreja em Hughley tem de seguir o péssimo exemplo da Igreja de Brou, que persiste em ficar na planície após Matthew Arnold dizer que ela fica entre montanhas. [...]
Morris morreu! agora Swinburne terá algo sobre o que escrever. Ele escreveu 12 epicédios para P. B. Marston, assim Morris deve ser bom para ao menos 144. [...]
Uma nova firma editorial me escreveu propondo publicar o sucessor de A.S.L. Porém, como eles não se ofereceram para escrevê-lo, tive de recusar. (Carta para Laurence Housman, 5 de Outubro de 1896)

Poesia sobre o mar:

O mar é um assunto de modo algum exaurido. Eu tenho em algum lugar um poema que chama a atenção a uma de suas características mais notáveis, que dificilmente algum poeta parece ter observado. Eles o chamam salgado, ou azul, ou profundo, ou escuro, e assim por diante; mas eles nunca fizeram uma reflexão tão profundamente verdadeira como a seguinte:
            Ó mares, vastidão,
            Quão úmidos são! [...] (Carta para Laurence Housman, 12 de Maio de 1897)

  Sobre o porque Housman não permitia antologistas a imprimir os poemas dele, mas permitia músicos:

O que deves ter em mente é o fato de que eu permito compositores arranjarem minhas músicas em palavras [sic] sem qualquer restrição. Eu nunca ouço a música, então não sofro; mas é muito diferente de ser incluído em uma antologia, com W. E. Henley ou Walter de la Mare. (Carta para Grant Richards, 2 de Julho de 1907)

Romances de Masenfield:

Eu também devo te agradecer pelos dois romances de Masenfield, dos quais eu li Captain Margaret. Bem legível e contendo um número de detalhes interessantes; porém péssimo. (Carta para Grant Richards, 12 de Abril de 1910)

Sobre a proficiência linguística dos censores, que atrasaram uma carta de Edmund Gosse por uma semana e ainda reclamaram que ele devia escrever "menos e mais claramente". Gosse protestou publicamente no The Times, e Housman lhe respondeu em carta:

Não percebes a situação. Não é a tua mão que o Censor não acha clara; é teu vocabulário. Um homem de letras escrevendo para outro, naturalmente, escreve em inglês, uma língua antiga e copiosa. Mas ninguém no escritório do Censor conhece 500 palavras de inglês: 450 de inglês com 550 de gíria, são o suficiente para expressar todas as ideias que circulam naquele claustro pálido e zeloso. E se o Censor acha suas cartas longas, não é que são longas em tamanho, mas que levam um longo tempo para ler quando muitas palavras tem de ser buscadas no dicionário. Por exemplo, deves ter usado a palavra 'tendency'. Essa é uma palavra que ninguém no escritório do Censor jamais usa, jamais ouve, ou mesmo vê: quando eles querem dizer 'tendency' eles sempre dizem 'trend', como fazem todos os escritores que eles já leram. (O que eles dizem quando eles querem dizer 'trend' eu não sei: talvez eles nunca queiram dizer) [...] (Carta para Edmund Gosse, 27 de Janeiro de 1915)

Sobre bibliófilos, após um de seus estudantes pedir uma primeira edição de A Shropshire Lad:

Decerto que não. Eu tenho apenas duas cópias restantes, e elas são para o bom e o puro. As coisas mais chocantes a respeto de vocês, "devotos de edições", são a falta de vergonha com que confessão o vício e a calma estupidez com que vocês esfaqueia a vaidade dos autores. Como vocês supõe que nós nos sentimos quando ouvimos toda essa confusão a respeito da diferença entre uma primeira edição e uma décima? Os únicos méritos de qualquer edição são a correção e legibilidade. Isso lhes pasma; e quando eu digo que a primeira edição continha um erro que é corrigido na segunda, vocês ficam prontos a arrancar seus próprios cabelos.
Eu pedi aos editores para enviar uma cópia da publicação a um de seus devotos ferrenhos, que insinceramente finge, como tu, estar interessado em minha poesia. Quando ele pôs as mãos nela, não esperou para ler, enviou-me na próxima saída dos correios pelo meu autógrafo. Eu fico realmente feliz quando ouço que vendedores de livros desonestos estão praticando extorsão em gente desse tipo, e demandando somas que vão de 7/6 a uma guinea, de acordo com a aparência do comprador, se parece um tolo de marca maior ou menor. (Carta para P. P. Stevens, 27 de Outubro de 1922)

Sobre casamento e morte:

Morte e casamento estão invadindo esta Faculdade com tal fúria que devo me sentir grato por ter escapado de ambas. (Carta para Percy Withers, 29 de Maio de 1925)

 Em resposta a alguém tentando escrever um livro sobre Housman:

Eu estive muito doente no início do ano, e eu estou novamente em uma enfermaria. Eu espero que possas restringir teu ardor indecente por algum tempo, quando eu estiver apropriadamente morto e tua obra proposta não será, pela sua própria natureza, imprópria. Mas esperança não é mais que esperança, pois minha família é forte e vive muito, exceto quando resolvem beber.
Não me envie teu manuscrito. Pior que a prática de escrever livros sobre homens vivos é a conduta dos vivos supervisionarem tais livros. Eu não te proíbo citar os estratos de minhas cartas. (Carta para Houston Martin, 22 de Março de 1936)

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Antilogia i-tradutória da poesia latina tardia [pt. 3] - Poetas "Pagãos", pt.2

Primeira Parte [Anônimos], Segunda parte [Pagãos]


Os últimos séculos da antiguidade foram uma época predominantemente cristã e com a maior parte dos escritores sendo cristãos e escrevendo em temática cristã. De certo modo, apenas Ausônio e Claudiano são "escritores maiores" da literatura secular tardia (um terceiro, Dracôncio, escreveu tanto poemas cristãos como poemas profanos, e ambas as obras tem seu próprio status de literatura "maior"... porém não vou falar dele aqui), enquanto os outros escritores ou escrevem traduções/adaptações (como Aviano e Avienio) ou tem um corpus muito pequeno para ser avaliado.

De fato, a grande dificuldade de se falar desses escritores menores é a dificuldade em poder compreender o fenômeno histórico ou mesmo o valor desses poetas baseado numa representatividade tão limitada em tamanho e proporção. É, de fato, difícil até mesmo compreender o que a palavra "menor" significa em contexto da poesia romana. Eles são "menores" unicamente porque o corpus sobrevivente é minúsculo e de difícil comparação, e sabemos de modo muito claro que o destino da sobrevivência dos clássicos deve-se ao capricho da fortuna, e não ao valor intrínseco das obras. Catulo, as Silvas do Estácio, quase não sobrevivem, Juvenal chegou a ser esquecido e mutilado, e nenhum historiador sobreviveu intacto, e conhecemos o nome e eventualmente meia linha de diversos "grandes autores" que pereceram. Aparentemente faria algum sentido pressupor que o que sobreviveu foi o melhor a que os copistas tinham acesso, mas "melhor" é questionável, e o "acesso" variava drasticamente particularmente no período tardio, e a grande verdade é que a sobrevivência dos clássicos se deu majoritariamente por acaso. Willis coloca isso muito bem:

Que a seleção e sobrevivência [dos clássicos] foi largamente acidental é facilmente observada. A imagem de uns poucos e notáveis ápices restantes de um continente afogado é romântica, mas falsa: alguém deve pensar mais em um terremoto que com sublime imparcialidade poupou aqui um palácio, ali um chiqueiro. Se aceitaria mais calmamente a perda de Ênio se não se tivesse todo Silius Italicus; Thyestes de Seneca meramente insulta nossa dor pela perda daquele de Varius. A obra em que Lívio devotou sua vida é preservada naquelas partes em que o queremos como guia em menor grau, e perdidas onde precisamos dela ainda mais. A obra de homens totalmente desconhecidos frequentemente sobreviveu - Manilius, Calpurnius Siculus, Solinus - e obras de autoria quase incerta - o Aetna, o panegírico sobre Messala, o Historia Augusta.

Aqui eu não vou ser completamente apressado em me juntar ao coro que diz que, como Butler, diz que Silius Italicus é o autor do "pior épico já escrito", porque já disse algo similar sobre Ausônio e tive de morder a língua depois. Contudo em linhas gerais isso ainda é verdade: o que nós temos não representa necessariamente o melhor da literatura, e quando vamos para a literatura tardia, cujos autores sobreviveram de modo muito mais limitado, essa desproporção é ainda pior. Mesmo na "era de ouro" e "era de prata" devemos questionar o valor relativo do que sobreviveu; por exemplo Quintiliano nos dá uma lista de autores que devem ser lidos por serem o que mais representa o melhor da literatura latina, e Quintiliano é o mais próximo de um crítico literário da época, e a lista segue assim: Virgílio acima de todos (claro), Macer e Lucrécio (mas não pela formação do estilo), Varro Atacinus (não deve ser menosprezado a despeito de sua reputação), Ênio (pela antiguidade), Ovídio (apaixonado demais pelo próprio talento, mas merece louvor aqui e ali), Cornélio Severo (o primeiro livro... se tivesse escrito o resto do mesmo modo mereceria mais respeito), Serranus e Valério Flaco (que morreram antes de chegarem ao ápice), Saleius Bassus (que é talentoso, mas não ficou melhor com a idade), Rabirius e Pedo (se sobrar tempo), Lucano (excelente, porém mais para oradores e autores de prosa que para poetas). Deixando de lado a ausência completa de satiristas (Juvenal, Persio, Horácio) e dramaturgos, e Ovídio sendo o único representante da poesia elegíaca (aparentemente Quintiliano pensa que as elegias ovidianas devem bastar para o gênero inteiro... o que é difícil de desautorizar quando o comparamos com o Corpus Tibulliano e o estado de Propércio), o que chama atenção não é a ausência dos "grandes poetas" que conhecemos, mas a presença marcada de autores de obras que não sobreviveram: Macer, Varro, Cornélio Severo, Serranus, Bassus, Rabirius e Pedo sobrevivem apenas em nome e pequenas citações, Ênio apenas em fragmento, e mesmo Flaco quase desapareceu completamente. É impossível avaliar de modo correto e crítico quando grande parte do que é necessário para a avaliação simplesmente não existe. Por outro lado, algo como Liber Memorialis de Ampelius sobreviveu, o que prova que inutilidades estúpidas podem ser abençoadas pelo acaso e sobreviver à era clássica.

 Como avaliar, portanto, alguém como Servasius (ou Sebastus, ou Servastus... o nome Serbastus é falso, e foi ele que sobreviveu nos manuscritos), que sobreviveu com apenas dois excelentes poemas: De Vetustaste e De Cupiditate? Não temos seu nome corretamente, e ele nunca é mencionado por ninguém, e os dois poemas sobreviventes são muito bons. É um grande poeta que sumiu, como um Gonçalves Dias que sobrevive apenas com Canção do Exílio e Seus Olhos? Um poeta medíocre que teve sorte de escrever um ou dois poemas brilhantes, como O Redivivo de Bonifácio? Em última instância, o julgamento geral desse corpus é impossível.

Para essa postagem eu vou tentar falar sobre um grupo complicado em particular (os Poetae Novelli) e a partir daí alguns autores baseados em poemas ou passagens que me interessam, ou creio que podem interessar estudiosos, em particular: Luxórius, Namatiano, Servasius[?] e Avieno. Seria bom ter tempo para falar da tradição bucólica, ou alguns dos poemas mais famosos de autoria duvidosa (como Pervigilium Veneris, poemas do Appendix Vergiliana, os Centões) mas o escopo é muito grande e minha competência muito limitada; nem haverá tempo de falar de Dracôncio, que é um dos raros poetas que sobreviveram com um corpus significativo de obras tanto cristãs como profanas. Essa postagem é ainda mais desorganizada que as demais, e não vejo como poderia ser diferente.


Poetae Novelli (II-IV Séculos)

Durante muitos anos o estudo da literatura latina tinha um capítulo interessante sobre um suposto grupo, chamado Poetae Novelli, escrevendo entre o período entre Adriano e Marco Aurélio. Contudo, diferente do que ocorreu com os neotéricos do primeiro século A.C., os poetas caracterizados como Poetae Novelli não se relacionaram pessoalmente um com o outro (exceto por Florus e Adriano), e de fato pertencem a gerações diferentes. Sobre comentários gerais sobre o grupo e os problemas filológicos, uma leitura rápida seria "Albrecht, M. von. A history of Roman literature: From Livius Andronicus to Boethius with special regard to its influence on world literature. Vol. 2. 1997". Para mais discussão vão as edições de Silvia Mattiacci, de Edward Courtney (a de Blänsdorf não tem comentário), e o artigo mais detalhado do Cameron. O meu comentário, contudo, vai tentar chamar atenção para o quanto perdemos em não ter uma parte representativa desses autores.

A primeira coisa a notar a respeito desses poetas é o como eles sobreviveram, havendo um ou outro testemunho contemporâneo mas os fragmentos são transmitidos por nós por meio dos comentários dos gramáticos. Isso tem implicações difíceis de mensurar, porque gramáticos citam versos geralmente para apontar os elementos mais raros ou diferentes encontrados na poesia deles (ou, citam o modelo paradigmático, usualmente o primeiro encontrado no primeiro livro, como Diômedes citando um dístico paradigmático em Tíbulo [I. 1 1-2], ou Caesius Bassus citando o primeiro "pentâmetro" paradigmático em propércio [II. 1 2]), e como resultado os Poetae Novelli podem parecer muito mais diferentes (esquisitões, afetados ou inovadores, dependendo para quem se perguntar) nos fragmentos do que realmente são. Por outro lado, também vemos que muitas diferenças e inovações individuais não se destacam, não são aceitas ou mesmo não são percebidas pelos contemporâneos, de modo que muitas características distintas do período podem nunca ter sido registradas pelos gramáticos.

A segunda coisa a se ter em mente é que, embora não os temos hoje, os antigos leram e de algum modo apreciaram a obra desses poetas, e eles quase certamente foram uma grande influência posterior, e poderiam explicar parte da mudança de gosto entre o período de Juvenal e Ausônio (e, desconfio, Ausônio era mais "clássico" que os Novelli, e Claudiano ainda mais clássico; Dracôncio, Paulino e Venâncio vão anunciando o medieval). Ausônio leu certamente Annianus, que ele cita por nome, e aproveitou ao menos uma invenção métrica de Serenus (Parentalia 27 = Serenus 16; mas Ausônio toma uma liberdade extra, que pode ou não vir da fonte). Septimius Serenus era conhecido e admirado por Sidônio, e sobreviveu até pelo menos o século X sendo lido e copiado (um catálogo de Bobbio registra libros Septimii Sereni duos, unum de ruralibus, alterum de historia Troiana[...]). Eles não são um período e grupo de autores irrelevantes para a compreensão do desenvolvimento da história literária, e a perda desses poetas pode ser tão prejudicial à compreensão da literatura romana como se perdêssemos toda a literatura do século XIX e tentássemos olhar o século XX sob princípios do XVIII.

Algumas características que podemos observar do todo que temos:

1) entusiasmo pelo arcaísmo, ao mesmo tempo (paradoxalmente, ao menos em aparência) de busca por uma linguagem mais simples do rústico e do homem comum.
2) novas formas métricas inventadas, e possivelmente mesmo o uso de polimetria (cujos primeiros exemplos inequívocos que temos são de Ausônio, Paulino e da Bobiensia, mas que temos razões para crer que já eram prática usual).
3) preferência por diminutivos
4) expressão coloquial e até mesmo vulgar, multilinguismo. Geralmente usado para representar cenas do quotidiano ou situações sentimentais.
5) uso ampliado de neologismos, particularmente em Apuleio (tanto em prosa quanto em verso)
6) aparente desprezo pelo gênero épico (vários épicos sobrevivem do primeiro século, e muitos outros conhecemos de nome... contudo, do período entre Silius Italicus e Claudiano apenas um épico é conhecido, de Clemens sobre os feitos de Alexandre, e parece ser uma obra reacionária). Por outro lado poemas históricos, didáticos, diversas formas arcaicas restauradas foram preferidas, bem como gêneros poéticos novos.

Chega de nonsense, e vamos a alguns poucos versos, dos Novelli do século III em diante:

Alfius Avitus (prob. gov. 244-246), frag 1

marite, si sanguis Curis,
Sabina si caedes placet,
in me, oro, conuertas manus

Ó marido, se sangue Curis,
Sabina aplaca se mata,
em mim, oro, vire as mãos.
--- [Aqui vemos arcaísmo (no caso, falso) e coloquialismo simultaneamente. Curis aqui é singular significa Quiritis (cidadão sabino), em seu singular raro Quiris, que se pensava derivar de Cures, nome da cidade Sabina (etimologia duvidosa, no mínimo), e por isso usa a forma Curis singular jamais atestada; por outro lado, é coloquial o uso parentético de oro, que é bem mais popular que o já menos formal uso parentético de quaeso nas cartas de Cícero.]

Serenus (post-Avitus), frags 16 e 17 (17 e 16)

perit abit auipedis animula leporis
vidinha avipede da lebre parte de vez
----
animula miserula properiter abiit
vidinha, miserazinha, rápido sumiu.
--- [aqui estou presumindo anima abit uel perit contra homo uel bestia obit, que parece durar até o fim da antiguidade. Contudo, as citações dão ambas aqui, e Green edita "abiit" para uma pessoa (amita); de modo que a palavra final é abiit ou obiit.]

Trads: Raphael Soares


 

Luxorius (V-VI Séculos)
E chegamos a Luxorius, talvez o maior de todos os poetas menores. O autor com o maior número de poemas e maior espaço separado dentro da Anthologia Latina (nomeado. Há suspeitas de um corpus maior composto dos poemas 90-190 sendo de um único autor africano, mas não temos seu nome nem podemos confirmar definitivamente a teoria) é o poeta Luxorius, que contém um "Liber Epigram[m]aton" composto dos poemas 287-375 (Riese), além de um Cento (Epithalamium Fridi) e um poema esparso (203 Riese). Ainda assim, muitos críticos duvidam se sequer vale a pena ler a obra do autor ou estudá-lo, a despeito do momento importante em que escreveu, o reinado Vândalo sobre Cartago.

Avaliar Luxoris é um trabalho hercúleo por incontáveis razões: a obra inteira do poeta deriva de um único manuscrito (Parisinus Latinus 10318), manuscrito esse que é extremamente corrupto a despeito da idade (isso é demonstrado pela cópia de poemas que temos controle para ver a leitura correta, como os Centões e poucos poemas que temos tradição independente, como o Pervigilium Veneris... ele, contudo, não parece ter sido intencionalmente interpolado em nenhuma parte da transmissão dele, que parece ter se dado mais por uma sucessão de erros estúpidos), conhecemos muito menos da época e local em que Luxorius viveu que de qualquer outro período e local da antiguidade, e por fim algumas alusões e usos de linguagem se perderam completamente no tempo por não serem atestadas ou comentadas por nenhuma outra fonte (exceto, possivelmente no que diz respeito ao circus, em que outros poemas da Anthologia Latina parecem dar auxílio). O resultado é que Luxorius é quase sempre muito obscuro, e muitas vezes não dá para saber se a obscuridade é da referência, do estado do texto, ambas ou somos nós que somos burros e não conseguimos ver o óbvio.

No geral, Luxorius, ao menos pelo que pude ler, parece muito diferente de marcial. Ele é muito mais claramente cínico que o predecessor dele, ao invés de irônico, de modo que me lembra um pouco Heine. Por conta disso ele parece bem menos hilário, e mais alguém que dá uma alfinetada para um quase-riso que não sai. Algumas vezes ele claramente não está interessado em fazer rir, mas é difícil de entender qual o interesse dele.

Mas antes de apresentar minha tradução do que me interessou e eu consegui entender de Luxorius, eu quero mostrar as dificuldades inerentes da leitura do poeta, e o que eu não consigo entender. Se alguém quiser enfrentar a leitura do poeta, deve estar preparado para esses obstáculos. Segue um poema do manuscrito (o 4º), e eu vou por abaixo a transcrição completa dos 5 "primeiros" versos, expandindo apenas as abreviações.

De epigramata parva quod in hoc libro scripserit
si quis hoc nostro detra[h]it ingenio
adtendat modicis condimensibis annum
et faciles hiemis uiris et esset dies
Nouerit brebibus magnum dependere usum (
uel depende reusum)
altra mensuram gratia nulla datur

Desconsiderando de pronto as discrepâncias ortográficas (detrait=detrahit, brebibus=brevibus) e aceitando as duas correções de Salmásio (-mensibus e ultra), o texto ainda assim tem diversos problemas além de ser ilegível (quero dizer, eu consigo entender "ultra mensuram gratia nulla datur", que é "prazer/graça nenhum(a) e dado em/através de medida exagerada", que parece certo... mas o resto do poema não dá para ler), é óbvio há um verso faltando no início (o poema começa no pentâmetro, o segundo verso), e apenas o primeiro e o quinto verso escandem, já que os versos 2-4 são impossíveis de ler no metro correto. "Condimensibus" tem sido geralmente lido com "condi de mensibus" ou "concludi mensibus", o terceiro verso é difícil de ajustar em metro e sentido, e a recriação de Shackleton Bailey não ajuda (et graciles uerni temporis et esse dies... de fato, só uma estação tem os dias mais curtos, mas seria o inverno, não a primavera... assumindo que eu fiz minha lição de geografia corretamente sei que Cartago fica ainda no hemisfério norte). Boa sorte lendo o resto.

Outro poema que me interessou, pelo título, foi o 296 (In spadonem regium, qui mitellam sumebat), mas não importa quanto eu o tente ler eu não entendo ele nem qual é a dele, e não sei se é corrupção (ao menos capillo...crine me parecem corruptos, ou não sei qual a diferença), se obscuridade da referência ou se eu sou tapado... Enfim, aos poemas. Todas as traduções são minhas, embora valha dar uma espiada nas versões de Art Beck publicadas na revista Sibila (em inglês). O texto em geral segue Riese (evitei reler o poema 317, que me parece errado, e o 293 não tem problemas), contudo aceitei a conjectura rarus (em obeli) de Klapp (pensei em aceitar prauus de Riese, mas jamais castus de Sh. Bailey) e leio scire...ipsam como a maioria dos editores no poema 322 (embora eu faça uma tradução mais livre do sentido nos últimos versos... esses dois versos são bem complicados, e é possível que o poema esteja incompleto), e aceito graciles de Watt no poema 329.

293. De auriga Aegyptio qui semper vincebat
Quamuis ab Aurora fuerit genetrice creatus
Memnon, Pelidae conruit ille manu.
At te Nocte satum, ni fallor, matre parauit
Aeolus et Zephyri es natus in antra puer.
Nec quisquam qui te superet nascetur Achilles:
Dum Memnon facie es, non tamen es genio.
Sobre um condutor Egípcio que sempre venceu
Embora de Aurora mãe criado foi
Memnon, caiu por própria mão do Pélida
Se não me engano, a noite é tua mãe e de Éolo
Prole, Nato pra Zéfiras cavernas.
Não vai nascer pra superar-te algum Aquiles.
De Memnon tens a face, não o fado.

Trad: Raphael Soares

317. In puellam hermaphroditam
Monstrum feminei bimembre sexus,
quam coacta uirum facit libido,
quin gaudes futui furente cunno?
Cur te decipit inpotens uoluptas?
Non das, quo pateris facisque, cunnum.
Illam, qua mulier probaris esse,
partem cum dederis, puella tunc sis.

Para uma garota hermafrodita
Monstro bimembre em sexo de mulher,
Cuja libido em macho te compele,
Porque não gozas foda em tua cona?
Por que o prazer selvagem assim te engana?
Não dás boceta, que é aberta e quente.
Aquela parte (que é prova que és mulher)
Quando deres, menina então serás.

Trad: Raphael Soares

322. De eo qui uxorem suam prostare faciebat pro filiis habendis
Stirpe negata patrium nomen
non pater, audis;
rarus adulter
coiugis castae uiscera damnas,
pariat spurios ut tibi natos,
inscia, quo sint semine creti.
Fuerant forsan ista ferenda
foeda, Proconi, uota parumper,
†scire uel ipsam† si tuus umquam
posset adultus dicere matrem.
Sobre um homem que prostituiu a mulher para que tivesse filhos
Negado foste de ter tua estirpe
queres te ouvir pai; adúltero raro,
da tua casta mulher macula a carne,
para parir pra ti espúrios filhos,
ignorante de qual sêmen gerou.
Talvez essa nojeira tua fosse
suportável por um tempo, Procônio,
se o filho ao crescer pudesse então
dizer que ao menos sua mãe sabia.

Trad: Raphael Soares

329. In eum qui foedas amabat
Diligit informes et foedas Myrro puellas;
quas graciles pulcro uiderit ore, timet.
Iudicium hoc quale est oculorum, Myrro, fateri,
ut tibi non placeat Pontica, sed Garamas!
Iam tamen agnosco, cur tales quaeris amicas:
Pulcra tibi numquam, sed dare foeda solet.

Para um homem que amava as feias
Myrro ama meninas deformadas e feias;
quando vê belas e modestas, teme.
Que julgamento há em teu olhar, ó Myrro,
Que não te agrada Pôntica, mas Gárama¹.
Agora eu sei porque buscais estes partidos:
Bela se dar a ti, nah, feia talvez!

Trad: Raphael Soares

¹O poema conta com um estereótipo racial do que seria uma mulher bonita e uma feia, que devia ser claro para os leitores cartaginenses da época. O estereótipo da mulher bonita não é claro, pois não é muito claro se Pontica significa da costa (como sugere Pontus) ou é corrupção (Poenica, i.e. Púnica) ou de alguma cidade específica desconhecida, mas o estereótipo da feia é pontual, Garamas são mulheres da tribo Garamantes, que eram os Berberes da Líbia e Tunísia, e, diferente do que alguns tem assumido por ser tribo africana, os Berberes não eram negros (e, o próprio poeta representa elogiosamente a beleza negra, o que também se reflete em outros poemas da Anthologia). O estereótipo racial também tem ares de "manter-se romano" do fim da África (os Garamantes nunca se tornaram romanos como outros grupos étnicos do norte da África)


A postagem, contudo, já ficou enorme. Não editei a parte anterior, para deixar claro que fiquei devendo Namatiano, Servasius e Avieno.

domingo, 25 de outubro de 2020

BOWDLERIZAÇÃO E CONTRA-BOWDLERIZAÇÃO EM TRADUÇÕES LATINAS [Palavras importam]

Bowdlerização dos clássicos é um fenômeno histórico da recepção dos textos antigos extremamente complexo, embora amplamente estudado e documentado. Na sociedade moderna, o processo de expurgar o texto clássico daquilo que, por qualquer razão, "não se deva ser visto" é caracterizado como censura e não vista com bons olhos não só dentro da comunidade acadêmica, mas também para o leitor comum. Contudo, o leitor comum, particularmente o não-especialista ou aquele que não sabe a língua em questão (contando com traduções para ter "acesso" às obras) tem de encarar a dura realidade desse processo histórico, que não desapareceu completamente: ainda há muitas coisas sobre as quais não queremos discutir que silenciamos, ignoramos, ou modificamos para que se possa "engolir" com mais facilidade (por nós, eu falo aqui leitores, críticos, tradutores e mesmo especialistas e professores). Recentemente, no mundo todo, o mundo dos estudos clássicos tem tomado uma postura oposta e de extrema aversão ao processo, e os textos clássicos e comentários estão cada vez mais explícitos que nunca, em casos em que o texto latino (eu imagino que o mesmo ocorra em grego, mas eu não posso opinar diretamente no assunto) não é explícito ou a "questão" (obscena, pesada, imoral, vulgar, ilegal, etc) sequer existe de fato no texto. Esse movimento contrário tem grande força como remédio e trás muita coisa para a discussão, contudo essa tendência tem se tornado majoritária dentro da leitura e tradução dos clássicos, e começo a perceber que ela também tem o potencial de trazer seus próprios perigos... Essa postagem não se pretende um estudo geral sobre o tema e sobre tais tendências, pois eu não tenho competência para isso. O que eu quero apresentar são três diferentes modos em que esses processos (expurgo e atenuação vs explicitação) podem ser usados, em três diferentes casos e autores, e discutir isso partindo das "palavras" e as traduções (ou não traduções) das mesmas.


CONTIDO OU LÍNGUA SOLTA? Juvenal, Sat. II

Começar a falar de bowdlerização significa, quase sempre, começar a falar de Juvenal. O poeta tem uma larga história de censura, seja no texto latino como em suas traduções, desde o início do período moderno (é irônico que não temos evidência dos medievais expurgando o poeta, já que os medievais adoravam Juvenal exatamente por ele expor as "imoralidades", e não a despeito disso... e falamos tão mal da "censura" medieval...). Em 1505 foi publicado o texto latino de Mancinellus (imagem acima), que embora continha o texto completo comentava apenas aquilo que era "adequado à moral", e representava de modo enganoso ou falso muito do que não o era; em 1683 foi publicado Iuuenalis Satirae ab omni obscoenitate expurgatae, que foi mais longe e removeu toda obscenidade do próprio texto latino, versões como essas se proliferaram em todos os países, e até o século XX ainda eram publicados Juvenais recortados em latim. A primeira tradução espanhola contém o revelador comentário:

"He procurado hacerle hablar en español con la misma pureza, propriedad, elegancia y decoro que él propio hablaria se hubiera nacido entre nosotros. He suprimido la Sátira IC., y le he depurado y expurgado de quanto pudiese ser ofensivo á la decencia y delicadeza de las consumbres cristianas"

Em português a tradução de Francisco Antônio Martins Bastos remove ou diminui obscurece as notas sexuais, e ainda assim Ary de Mesquita, selecionando uma das traduções dele, nos diz em 1950 que "As suas [Juvenal] sátiras são escritas em linguagem livre, o que ao autor desta colectânea deu o trabalho de escolher a menos ouriçada de escabrosidades".

O resultado prático desse "pudor" deve ser óbvio: um grupo significativo de sátiras foi sistematicamente removido das versões vernáculas, ou terminaram carentes de comentários. As sátiras II, IV e IX são as mais frequentemente omitidas, e as poucas vezes que são traduzidas, são sistematicamente bowdlerizadas omitindo tudo aquilo que o tradutor não quer falar a respeito. Como exemplares dessa tradição eu irei mencionar a tradução "integral" de Ramsey (Loeb) e a versão de Francisco Antônio Martins Bastos (reeditado pela Ediouro).

O antídoto para tal atitude veio com a modernidade, em que o Juvenal foge das amarras de uma "linguagem polida" e dos limites da representação moral. Em inglês vemos, de dois modos distintos, esse movimento contrário nas versões de Peter Green e de Susanna Braund (de modos um tanto distintos), e no Brasil pelo excelente trabalho do Fábio Cairolli especificamente na segunda sátira (aqui). A diferença não poderia ser mais gritante, e eu vou começar a apontar a idiossincrasia da tendência moderna, porém devido ao fato de ela não ser óbvia, e o dano ao texto ser menor que a tendência bowdlerizante. Aqui eu vou me abster à discussão textual, embora devo apontar de cara que Braund tem o melhor texto latino, Green o mais errático, e Cairolli provavelmente o pior; a diferença, contudo, é menos importante na segunda sátira do que em outras mais problemáticas, e o melhor benefício para o texto é provavelmente apenas uma linha, a 108, que Braund lê "Assyria...urbe" (i.e.: Babilônia), Green omite "urbe/orbe" e Cairolli lê "Assyrio...orbe" como "em mundo Assírio" (orbe, quando significa "mundo", significa o mundo inteiro, não a parte em questão...). Discrepâncias menores são menos relevantes para a discussão...

Há uma diferença significativa entre as traduções... Green contém menos palavrões e obscenidades "diretas", e na segunda sátira eu contei apenas 3 casos (cocks, whores e fag; pica, putas e bicha!), contudo a expressão é massivamente contemporânea, e muitas vezes anacrônica, dos quais seleciono alguns exemplos: raging queens, humbuggers, dyke, fairies (sentido de "bicha"), gangsters, killjoy, boutique, queers, gazette, pansies... Até onde sei, a última edição de Green foi pesadamente revisada, porque ela tinha um tom extremamente livre e por conta das críticas ele deixou o seu Juvenal em um tom mais elegante e solene; todos os exemplos tirados são dessa edição já revisada e que removeu muitas "vulgaridades", e só posso imaginar como a versão anterior era antes da revisão. Susanna Braund é provavelmente a tradutora mais elegante de Juvenal da modernidade, a despeito da prosa, e normalmente não se abstém de falar das questões moralmente difíceis do poeta (aqui, há, contudo, uma neutralização estranha "turns pale from both diseases"... basicamente "curte" os dois lados, i.e. o cu e a rola... a expressão inglesa é estranhamente contida, mas isso é excepcional na tradução), mas ainda assim na mesma sátira ela apresenta duas expressões populares e duas ofensas vulgares: digging-hole, bogus, arsehole (com sentido de "cu"... é um tanto engraçado ver essa variante britânica com esse sentido) e arse (e devo mencionar "patrician cunt" na sexta sátira...). O Cairolli, que fez a melhor tradução portuguesa, tem igualzinho (e outros diminutivos), buraco (cu), tesão (?, tenho dúvidas se conto entre léxico tradicional ou popular), a raba (com sentido de bunda), frouxos (sentido de efeminado) e grana, dentre o uso popular, e tem bicha(s), cu e enrabado como obscenidade clara, além da significativa licenciosidade de traduzir fracta uoce (voz feminina) como boca frouxa (associado ao sexo oral?).

Essa licenciosidade é extremamente marcada quando comparamos com as traduções antigas, já mencionadas. Nenhuma obscenidade e nenhuma vulgaridade tanto em Ramsey quanto em Bastos, contudo isso claramente tem um preço, e alto: um dos pontos cruciais da sátira envolve o fato de que mesmo as prostitutas não são tão ruins moralmente quanto os "homens de bem", e uma dessas comparações envolve a notável aversão que os romanos tinham ao sexo oral, e no verso 49 Juvenal diz "Tedia non lambit Cluuiam nec Flora Catullam", que Bastos traduz de modo completamente obscuro um "Não é com Clúvia, Tédia, nem com Flora, | Torpe Catula", sem menção à prostituição ou mesmo qual o "feio exemplo" de que elas não se gabam, enquanto Ramsey remove a linha inteira, dizendo apenas "never in our sex will you fing such loathsome examples of evil"; o que nem mesmo as prostitutas não fazem (e que os homens efeminados fazem), é "lamber" uma a outra.

Contudo, essa evidencialização corre o risco de falsificar o registro do poeta, algo que ao menos Green tem noção bem clara do que faz. Que versões antigas do Juvenal são bowdlerizadas é algo que é quase senso comum, de modo que o leitor ao ler uma tradução antiga sabe bem que esse é o caso, mas o leitor moderno pode não se dar conta, ao ler as novas traduções, é de que Juvenal não usa nenhuma palavra vulgar ou palavrão, mantendo um registro sempre solene e clássico (a única exceção é a palavra cicer [pau], no fragmento de Oxford, mas ela não só é excepcional como existe em apenas um único manuscrito... por hora, vamos assumir que Juvenal não usou essa palavra). Juvenal não é Catulo ou Marcial, que gostam de jogar obscenidades e vulgaridades para todo o lado, e até mesmo Horácio tem uma gama de palavras que Juvenal nunca usaria: caco, merda, pedo, oppedo e muto (apenas no primeiro livro das sátiras). As palavras mais usadas, como pathicus e cinaedus são de construção similares a "passivo" e "sodomita", não "bicha", e a diferença de registro é notável.

Novamente, as tendências modernas de tradução são extremamente efetivas como antídoto para a tendência bowdlerizante e de censura pela qual o texto de Juvenal sofreu por séculos, mas o leitor crítico deve ter bastante cuidado em perceber que há algo de extremo que vai para o outro lado, e assim como a tendência de omitir, ela pode dizer muito mais do que Juvenal dizia, e frequentemente de um modo que não representa o estilo do poeta, o que nem sempre é a preocupação com certas tendências tradutórias contemporâneas.


UMA PALAVRA E DISCREPÂNCIA INTERPRETATIVA: Virgílio, Aen. IIII, 215

O caso em estudo é bem distinto do que falamos em Juvenal. Enquanto no processo anterior há coisas que Juvenal diz que são omitidas de um lado, e por outro lado os tradutores criam um modo e registro de discurso que não representa rigorosamente o registro do autor, na seguinte passagem da Eneida estamos lidando com os limites da interpretação, feitas por dois grandes tradutores que também apresentam tais tendências opostas no que traduzem.

Carlos Alberto Nunes é o grande tradutor dos épicos clássicos (Ilíada, Odisseia, Eneida) e do drama shakespeariano, e deve-se notar que ao menos em Shakespeare Carlos Alberto tem a tendência de tornar o verso (frequentemente vulgar) em algo bastante elegante, que ocasionalmente não bate com a obscenidade ocasionalmente hilária do bardo inglês. João Ângelo é notório professor de latim e um dos maiores classicistas do país, famoso também pela tradução integral da poesia de Catulo, e embora Catulo seja um poeta realmente vulgar e obsceno, o verso de João não tem o menor receio de expor essa obscenidade, e, se minha contagem está correta, usa bem mais palavras vulgares que o próprio poeta (lembrar novamente de cinaedus e pathicus, que em 16.2 Ângelo traduz por "bicha" e "chupador"). O que acontece aqui é que os tradutores parecem discordar da interpretação de uma palavra no texto virgiliano, e ambos interpretam no limite do que o texto latino tem o potencial de significar. O verso é o seguinte:

et nunc ille Paris cum semiuiro comitatu

Carlos Alberto traduz o verso do seguinte modo:

E ora esse Páris, seguido de um bando de gente somenos

João Ângelo claramente discorda da interpretação/tradução do Nunes, apresentando sua própria interpretação para a palavra semiuiro:

Somenos: inferior. Virgílio diz semiuiro comitatu, "gente efeminada", "só metade homem".

Qual das duas traduções/interpretações é a correta? Honestamente, eu pessoalmente acredito que ambas estão erradas, e acho que Virgílio quer dizer aqui "companhia de eunucos" (ver o mesmo sentido em XII 99; a associação dos troianos com os eunucos do culto de Cibele é persistente, e permanece até mesmo em Nono), que é o sentido mais direto e causa menos problemas interpretativos; contudo a postagem não diz respeito a minha interpretação pessoal, mas aos possíveis modos de se ler a palavra, e como traduzi-la...

Parece óbvio aqui que ambos os tradutores foram levados a tais extremos interpretativos por conta de seus hábitos, seja o da elegância de Nunes, seja do caráter direto e sem ocultações do Ângelo. Em matéria puramente linguística, ambas as versões são possíveis, na medida em que a compreensão de "somenos" e "efeminada" seja específica.

O problema interpretativo não é particular da passagem, mas de todos os compostos latinos em semi. Quando se usa o termo semi-algo pressupõe-se que tal coisa ou ser seja composto de metade "esse algo" e metade "outra coisa", e o resultado disso é que compostos com semi sempre têm um sentido limitado e variado, e quando o sentido não é óbvio pelo contexto os críticos ficam numa saia justa: talvez o mais famoso e debatido exemplo seja semipaganus em Pérsio em que não apenas basta saber o que significa metade paganus, como se faz necessário entender o que diabos é a outra metade (a interpretação mais comum é o de semirusticus semipoetaque; i.e.: só metade poeta... ainda assim a leitura não é clara).

O que então semiuir significa? Virtualmente qualquer coisa: Hércules é semiuir (semideus), o Minotauro é semiuir (semibos... "semibovemque virum semivirumque bovem" é provavelmente a pior linha de Ovídio... contudo, apenas semiuir é usado, e pode gerar confusão), um tritão é semiuir, um hemafrodita é semiuir (semimulier) e por aí vai. A palavra, isolada da outra "metade" pode também denominar alguém fisicamente incompleto, como um aleijado ou um castrado.

Em que sentido semiuir pode significar "somenos"? Eu consigo pensar em apenas dois modos: se uir significa "nobre", de "alta estirpe", semiuir pode significar semiplebs; uir também pode ser usado com sentido de soldado (ainda usamos "1000 homens", por exempo...), nesse caso semiuir pode significar semiarator (semirusticus), meio-camponeses, soldados "inferiores". Embora eu pessoalmente não me sinto atraído por nenhuma das alternativas, em matéria puramente linguística essas leituras são possíveis, e "somenos" é uma tradução adequada para elas.

Em que sentido semiuir pode significar "efeminados"? Não no sentido mais óbvio da palavra em português. Eu não sei exatamente com que sentido o João Ângelo leu, mas os leitores dele provavelmente vão entender a expressão efeminados como "meio bicha". O problema é que essa leitura não faz o menor sentido (nem mesmo em português... o que diabos seria "meio-bicha"? quem "dá meia-bunda"?), e semipathicus não é uma metade válida (exceto se houver divisão temporal, ou seja, de dia é "mano" e de noite "mona"), e semimulier significa hermafrodita, como já vimos. Contudo, "efeminado" também pode ter uma ampla gama de sentidos, seja cosmético (i.e.: semifemina no sentido de ser homem mas se vestir, maquiar, perfumar, como uma "mulher", visto que romanos não eram sensíveis à diferenças culturais... asiáticos eram consistentemente vistos desse modo) seja com uma particularidade sexual específica considerada imoral e efeminada pelos romanos (semipuer, i.e.: pederasta), mas que não costuma receber esse adjetivo na sociedade moderna (que vai usar "pedófilo" ou "pederasta", não "efeminado"). De fato, "pederasta" é a interpretação clássica, e Sérvio, que interpreta semiuir como "id est effeminati" mas especificamente referente a quem "ab ipsis enim ferunt coepisse stupra puerorum"; a acusação de que gregos e frígios eram pederastas (que, para os romanos, era ser efeminado) é recorrente, e semiuir é amplamente usado com sentido especifico de pederasta na antiguidade tardia, seja pelo poeta Ausônio (ver meu comentário anterior), seja pelos imitadores de Virgílio (Prudêncio, por exemplo). Semiuir pode significar "efeminado" no sentido de cosmética, ou no sentido específico da prática da pederastia, mas aparentemente não no sentido mais geral que a palavra evoca em português.

Aqui é um exemplo das dificuldades interpretativas que uma única palavra pode trazer, e como práticas e tendências tradutórias podem levar críticos a compreender no limite da interpretação mais "branda" ou mais "pesada", quando vistas e traduzidas por dois latinistas da maior competência.


FOI ESTUPRO, NÃO 'AMOR'! Ovídio, Met. IIII, 798-799

Se há algo que une o corpus da literatura latina é a misoginia, e se há uma consequência disso que representa a maior dificuldade nossa a lidar com as obras clássicas é a representação e glorificação do estupro de mulheres, que é pervasivo em toda a literatura latina, em todos os seus gêneros.

É extremamente difícil falar desse assunto, é bem delicado; eu mesmo imaginei que seria bem mais fácil dissertar sobre isso brevemente, mas falar de um tema como esse não é fácil. Contudo, se negar a falar disso, que é tão óbvio e evidente, e tentar usar técnicas Jedi para fingir que isso não existe na "nossa amada literatura clássica" não é apenas contraprodutivo e desonesto intelectualmente, mas pode ser realmente perigoso e ajudar a passar adiante uma narrativa que glorifica o abuso sexual, culpa a vítima ou diminui seus impactos. Lastimavelmente, não sou psicólogo, pedagogo, assistente social ou alguém que trabalhe na linha de frente dessas questões, e por isso eu recomendo a leitura do texto de Dani Bostick (aqui) antes de qualquer discussão; ela apresenta de modo sucinto e claro os problemas dessa distorção, e eu vou tentar me focar em interpretação.

Em primeiro lugar, é importantíssimo lembrar que os romanos simplesmente amavam narrativas de estupro. Essa parte, tristemente, não é tão difícil de compreender hoje em dia, tendo em vista a ampla demanda de pornografia hardcore, rape porn, o apelo popular de filmes rape and revenge, de modo que a ampla representação do abuso sexual não é exatamente algo que desapareceu completamente, ou que provavelmente vai desaparecer. Agora os romanos REALMENTE amavam esse tipo de representação, de modo que é mandatório que os romanos conheçam essas narrativas e saibam representar o estupro. Virgílio conta mais de uma história de estupro, e é particularmente notável que ele represente até mesmo a guerra (o saque de Troia, em Aen. II 469-505) em termos de violência sexual. Grande parte das histórias mitológicas envolvem algum tipo de fraude ou violência sexual. Mesmo o gênero mais inocente, como o Bucólico, pode conter uma representação gráfica e sombria: a segunda écloga de Nemesiano conta a história de dois pastores que resolvem estuprar uma pastora que colhia flores. Poemas nupciais são outro caso de destaque: é esperado que o poeta represente detalhadamente o estupro marital, seja estando confortável ou não com isso (notar a diferença entre a atitude de Ausônio e Claudiano, em Cento e Fescennina), e pode nos parecer surpreendente hoje que alguém como o general Stilicho ordene que seu poeta pessoal componha versos que representem, em detalhes, a própria filha sendo estuprada e violentada pelo marido. Contudo, isso faz perfeito sentido dentro do contexto romano.

Não é fácil falar sobre isso, e em algumas épocas e lugares isso pode ser bem problemático. O fato de lidar com obscenidades e violência, em muitos lugares, pode custar a carreira de alguém, ou limitar drasticamente as opções de emprego (se alguém ler isso que escrevi, e souber quem sou eu, é muito provável que eu nunca consiga emprego em nenhuma escola ou faculdade cristã, e isso é um risco real). É quase anedótico que Housman, quando comentou textos extremamente obscenos, o fez em latim e em revista alemã, não em inglês como era sua prática usual, e Michael Hendry conhecia os riscos quando resolveu publicar seus textos online ("escrever on-line sobre algumas passagens de Sátira Romana, Marcial ou Aristófanes, pode significar nunca mais ser capaz de ensinar no ensino médio outra vez"... original aqui), e não é fácil encontrar sempre o modo correto de apresentar essas questões problemáticas. Mas é uma questão de obrigatoriedade moral fazer como recomenda Bostick, e dizer que é estupro, não fingir que é outra coisa, quando estupro for.

Como é esperado, até pelo tema geral desse Palavras Importam, as abundantes representações de estupro na literatura latina historicamente sofreram muita bowdlerização, omissão, e esse impulso ainda persiste até hoje, mais do que com obscenidade geral. Mas há um movimento forte que quer representar melhor as coisas como realmente são e falar francamente como as coisas são. O movimento feminista também tem relido muito da antiguidade e trazendo nova luz seja para a arte seja para a interpretação. Uma dessas figuras que mais tem sido revisitada é a figura da Medusa, que tem sido vista como a mulher forte, redesenhada (como na imagem acima, da Medusa decapitando Perseu), cuja história é compreendida (como diz Bostick em seu ensaio "Netuno estuprou a Medusa"), vista como um símbolo literário de culpar a vítima, e até mesmo participou de campanha online contra o estupro (na #Me(dusa)too)...

Só tem um grande problema aqui: MEDUSA NÃO FOI ESTUPRADA POR NETUNO.

Novamente vamos retomar essa tendência de discrepância entre traduções antigas e modernas, que é surpreendente. A maioria das pessoas, acessa o conhecimento dos textos clássicos através de tradução, e é uma das razões pela qual a Wikipedia em inglês da Medusa diz "se Ovídio diz que ela era uma participante [do sexo] com seu consenso não é claro" (grifo meu), e ao me deparar com as traduções inglesas fica claro a discrepância: de um lado "hook up", "attain her love", "make love", "seduced her", de outro "ravished her", "yelded her" e "raped her". Essa narrativa deriva de uma única fonte, por isso a discrepância interpretativa é de ordem tradutória, já que a relação entre Netuno e Medusa é contada unicamente nas Metamorfoses de Ovídio. Aqui temos uma discrepância de como traduzir e representar a passagem, o que também é discrepância de época. Aqui o original ovidiano, que, até onde sei, não apresenta problemas textuais:

hanc pelagi rector templo uitiasse Mineruae
dicitur;

Eu por hora não vou discutir qual é a "história verdadeira" da Medusa. Essa narrativa é, ao que tudo indica, criação ovidiana e não faz parte da mitografia ou do grosso das múltiplas leituras da história da Medusa; uma coisa que eu acho muito relevante para a interpretação de Ovídio é a poderosa negação da autoridade da própria narrativa nessa passagem, que o narrador não assume atribuindo para a narrativa a autoridade do dicitur (dizem, é rumor, eu não garanto que foi assim que aconteceu). Por questão de argumento eu vou assumir o verso como "fato" e como a "verdadeira história" da Medusa, segundo Ovídio ouve estupro? ele é ambíguo a respeito?

A resposta é não. A despeito de ser uma palavra de carga semântica pesada ("uitium", vício, contaminação), uitiasse tem um sentido muito claro, inequívoco e preciso: tirar a virgindade (vulgar "descabaçar", ou no mais elegante paraensês "mexer com"). Que fique claro: uitiasse é uma expressão claramente misógina que deve ser problematizada, já que propaga a noção de que a mulher se contamina ou perde o valor com a prática sexual, um tipo de linguagem que ainda persiste nos dias de hoje, e pode ser extremamente danosa particularmente quando aplicada para pessoas que sofreram violência. Contudo isso é uma questão de texto: uitio não significa estuprar (como, aliás, stuprum), não tem essa conotação. De fato, olhando os usos clássicos da palavra (o ThLL ainda não chegou em V, e eu não estou com cabeça para pesquisar o sentido que Terêncio dá à palavra, que na prática não importa), os gramáticos Gélio e Quintiliano usam em sentido que deixa absolutamente claro que o ato de uitiare (tirar a virgindade, "contaminar") foi consensual da parte da mulher "contaminada" (urgh!), de modo que a moça em Quintiliano usa de retórica para proteger o perpetrador da "malicia". Mas de fato, não precisamos dos gramáticos ou mesmo dos usos externos, porque o próprio Ovídio deixa claro o sentido da palavra: em Heroides 11 a expressão vitiati pondera ventris não deixa quaisquer dúvidas a respeito do sentido da palavra, já que todos podemos concordar que Macareu foi um completo "filho da puta", mas a entrega de Canace foi certamente voluntária, que é o sentido com que o próprio poeta usa (segundo o próprio autor, contudo, Canace foi estuprada por Netuno). A passagem em questão não se trata de estupro, embora ainda assim humilha e põe a responsabilidade desproporcionalmente sobre a mulher. Como o ensaio primeiramente postado diz, "não é tua [do professor] tarefa também redefinir o estupro e trivializar a violência sexual", e isso vale de ambos os lados, pois tratar do "estupro de Medusa" É redefinir o estupro apontando um que nunca ocorreu segundo a própria fonte tratada.

Por fim, uma nota a uma tradução brasileira. Raimundo Carvalho traduziu os 5 primeiros cantos de Ovídio em sua tese (aqui), e assim que ele traduz a passagem:

No templo de Minerva, o deus do mar violou-a,
dizem.

Carvalho sabe muito bem que Medusa não foi estuprada, tanto por ser ele próprio um classicista extremamente competente, como por ter lido uma edição bilíngue comentada que ao menos traduz corretamente a passagem. Talvez ele tenha desejado apresentar uma maior ambiguidade na passagem, prática que é cada vez mais comum entre os tradutores brasileiros, a despeito do original bastante direto. Minha intuição de falante do português consegue assumir, ao menos teoricamente, que a palavra "violar" pode ter tanto o sentido de "desvirginar" (manchar) como de "estuprar"; contudo, se eu leio a passagem em português a minha conclusão natural é que o "deus do mar a estuprou", uma interpretação cuja falsidade apenas o latim é capaz de desviar. Dicionários não parecem ajudar ou lidar bem com o termo, já que dois dicionários que tenho (Aulete escolar e Aurélio Jr.) apresentam o sentido de "tirar a virgindade" mas não de "estuprar", enquanto outros (Houaiss, Priberam, Aurélio, Bechara) apresentam apenas o sentido de "estuprar" mas não o de "tirar a virgindade". Alguns amigos de outras regiões têm me dito que eles também entendem "violar" como estuprar, e acabam caindo no mesmo problema de leitura que eu indiquei. Mas talvez o tradutor venha de uma comunidade linguística em que violar é mais usado com sentido de "desvirginar", já que em outra ocasião ele escreve " 'Ele | me violou contra meu querer' " e se "violar" significa "estuprar" aqui a frase é de uma tautologia absurda.

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Antilogia i-tradutória da poesia latina tardia [pt. 2] - Poetas "Pagãos", pt.1

Primeira parte aqui.

Decimius Magnus Ausonius (310 - 395)

Se há um autor que deve ser individualmente analisado antes de qualquer julgamento de valor sobre a poesia tardia, esse autor é Décimo Magno Ausônio. Entre a morte de Juvenal e a obra de Ausônio há um grande vazio do nosso conhecimento, havendo poucos autores conhecidos e poucas obras sobreviventes (Pervigilium Veneris é provavelmente a mais importante delas, se é que podemos realmente datar ela como pré-Ausoniana). A reputação de Ausônio contudo tem de lidar com o duro (e factualmente incorreto) julgamento de Gibbon de que "[a] fama poética de Ausônio condena o gosto de sua era", de modo que reabilitar a literatura da época envolve primeiramente reabilitar Ausônio. Contudo, deve ser bem lembrado que a fama do poeta na época se dava principalmente pela sua atuação como professor e gramático, seguido de amplo respeito pela sua atuação política (aparentemente ele não foi um grande político de fato, e como co-governador na Gália o filho dele deve ter feito a maior parte do trabalho), e havia na época poetas mais famosos, o que ele próprio reconhece em sua correspondência. A verdadeira fama poética de Ausônio veio no Renascimento Carolíngeo, com um segundo Boom no Renascimento Humanista, e ninguém jamais condenaria o gosto da época. Dentre os humanistas, Petrarca, Bocácio, Erasmo e todos os outros tinham a poesia ausoniana em alta estima; em Portugal Achiles Estaço possuía um manuscrito de Cesares (Valicelliana ms.D 54) além de mencionar outros poemas de Ausônio em seus comentários (ex: menção ao poema Oratio na página 14 de seu comentário sobre Horácio) e Camões imitou um poema que ele devia encontrar dentro das obras de Ausônio (De Rosis Nascentibus, 15-16; comparar com Lusíadas, IX 61 2-4... A obra entrou nas edições de Ausônio em 1511 e era a atribuição mais comum no XVI) e possivelmente teve influência de Bissula, dos Idílios e talvez de Cupido Cruciatus em alguns de seus poemas (Camões, contudo, parece tomar a descrição das musas de outra fonte clássica); além do mais, Ausônio é o grande modelo literário para os epigramas e epitáfios portugueses do XVI, muito mais que Marcial. Chaucer provavelmente usa Ausônio como autoridade para a função das musas Cleo e Calíope, já que não conhecia grego (comentário mais detalhado aqui). Na Alemanha e França a fama literária de Ausônio nunca desapareceu completamente.

Mas por conta dos ataques ao valor do poeta, ataques esses que eu pessoalmente cheguei a repetir de modo pouco crítico, acho que devo falar um pouco das principais críticas que a ele são feitas antes mesmo de falar da vida e obra, já que tudo o que é dito contra Ausônio é, de algum modo, repetido ou modificado ao tratar da literatura latina tardia. As quatro principais queixas contra o Ausônio são as seguintes: 1) se removermos a dicção e versificação de Ausônio não sobra nada; 2) o poeta não tinha nada o que dizer (frequentemente em oposição); 3) o estilo dele é decadente e já não mais clássico; 4) os melhores momentos dele são nada mais que ecos da literatura anterior.
 
1) A primeira crítica é a mais comum, e também é a mais fácil de refutar. É o tipo de crítica que parece dizer alguma coisa, mas no fundo não diz nada. Se tirarmos a dicção e versificação (entendendo seja do ponto de vista mais estrito como mais amplo) de QUALQUER poeta, o que é que sobra? Talvez em alguns casos sobre uma filosofia ou crítica social pertinente ou história relevante, mas a poesia de qualquer poeta desaparece se dela removermos a dicção e versificação. Coleridge, um brilhante poeta e crítico, disse exatamente a mesma coisa de Virgílio, e se isso pode ser aplicado ao maior dos poetas latinos, o pode ser para qualquer um.

2) A segunda crítica é ligeiramente mais útil para compreender o poeta e a posição dele na poesia latina, mas dificilmente é algo que vai determinar o valor por si só. A primeira coisa é que ela não é completamente verdade, e a respeito disso a carta para o São Paulino de Nola, o Protrepticus ad Nepotem, sua pro fissão de fé em Ephemeris (embora pode não ter sido planejado nesse caso) e muitos poemas de Parentalia são poemas que definitivamente mostram inteligência ao falar de algo relevante para a ocasião e para o poeta. Contudo, em muitos dos poemas de Ausônio, incluindo seu famosíssimo Mosella, não há um "tema" de discussão, mas o tema é circunstancial e Ausônio usa seu talento na composição, não no desenvolvimento de uma ideia ou argumento. De fato, comparado com as críticas sociais dos satiristas Pérsio e Juvenal, dos epigramas de Marcial, da composição da ideia nacional de Virgílio ou da filosofia e retórica de Lucrécio e Lucano, Ausônio parece não ter muito sobre o que falar. Mas ter o que falar não é o bastante para ser poeta, como vimos no Disticha Catonis, que nem é mais lido como poesia hoje em dia, e se a ausência de uma "tese" ou "temática relevante" predica a má qualidade de um poeta, muito da melhor poesia moderna tem de ser jogada na lata de lixo também, incluindo grande parte da literatura neoclássica e quase toda a poesia simbolista. Se não me engano, Manuel Bandeira disse de Mallarmé que a maior de suas qualidades era que quase todos os seus poemas eram "de circunstância", e o mesmo pode ser dito seguramente de Ausônio, e é nisso que provavelmente jaz o apelo que o autor pode ter nos nossos dias.

3) A terceira crítica é completamente estúpida e sem sentido, mas exatamente essa estupidez que pode nos ajudar a compreender o nosso erro em lidar tanto com a poesia de Ausônio como com a poesia tardia em geral. Se assumimos que "poesia latina" é a "linguagem clássica de Virgílio", qualquer coisa que não é Virgílio vai ser sem refinamento (como Ênio e Lucrécio) ou decadente (como Estácio ou Ausônio) em comparação (e, paradoxalmente, tudo o que soar virgiliano será imitação barata ou fraude); contudo, se alterarmos o padrão, apenas como experiência, e dizermos, por exemplo, que a "poesia latina" é o "estilo de Estácio", a coisa vai repentinamente mudar de figura: o uso de linhas espondaicas em hexâmetros em palavras não gregas de Juvenal e Horácio (Ars 467), e os hiatos na Eneida (e em Catulo, se Catulo tiver, de fato, hiatos) vão parecer bárbaros, e a sintaxe de quase todos os poetas vai parecer muito pouco variada. Podemos fazer essa experiência em qualquer língua: se "poesia inglesa" é o "estilo de Dryden", Shakespeare e Spencer vão parecer bárbaros, e os românticos completamente afetados; se a "poesia brasileira" é o "estilo de Bilac", Varella e Gonçalves Dias vão parecer preguiçosos (o que não são), Alberto de Oliveira simplório, Augusto dos Anjos obscuro e Jorge de Lima simplesmente errado. Não é só injusto comparar um autor e época no padrão inalcançável de outro, mas não faz o menor sentido e não tem o menor valor crítico. Se toda a literatura representar uma decadência em relação ao padrão inalcançável de outrem, o fazer literário em si não tem sentido. Além do mais, o próprio latim "clássico" de Cícero e Virgílio foi condenado como já decadente por Fronto, em comparação com o "mais puro" latim pré-clássico.

4) A última crítica parece ser feita por pessoas que não conhecem a literatura latina ou não sabem como a própria literatura funciona, mas curiosamente é feita por latinistas e críticos literários competentes. Se esse padrão é levado a sério, Virgílio, Dante, Camões, Shakespeare, Tennyson e Machado estão todos no mesmo barco, já que o melhor de suas obras ecoa as obras de seus antepassados. O que é relevante é como o autor em si desenvolve esses temas e técnicas em sua obra como um todo e em seus poemas isoladamente. O julgamento deve ser específico, nunca geral.
 
Considerando a ignorância geral a respeito de quem foi o poeta e suas obras, é importante falar um pouco sobre ele e sobre sua obra, o que eu definitivamente não quero fazer nem tenho qualquer competência. Ausônio nasceu na Gália, de família cristã provavelmente falante de grego (ao menos a família da mãe era tradicionalmente da região desde os tempos do império gaulês, a estirpe do pai, contudo, é um mistério... a educação de Ausônio foi em grego, assim como a do filho dele, e o neto, Paulino de Pella, aprendeu latim já quase adulto), e bem jovem se tornou famoso pela sua inteligência como gramático e passou a lecionar em Bordeux por volta de 330-334 (ao menos 30 anos antes de ser convocado a Trier, na metade de 360... a data 334 é a mais provável), o que é uma idade excepcionalmente baixa para lecionar em universidades. Contudo, um pouco antes da carreira de Ausônio decolar, uma grande amargura provavelmente se sucedeu, já que Juliano famosamente baniu todos os cristãos de lecionarem em escolas e universidades por todo o império, e havia um confronto entre as facções cristã e pagã em Bordeaux. No meio de 360 (após 364, mas antes de 368, quando Ausônio acompanhou Graciano nas campanhas germânicas) Ausônio foi convocado para ser tutor do futuro imperador Graciano, e assumiu diversos cargos políticos desde então. Aqui, vale a pena apontar que a grande maioria da obra Ausoniana é posterior a esse período, e de fato não temos nenhuma obra indisputavelmente genuína que deve ter sido escrito antes de 345, embora sem dúvidas ele escreveu muitos poemas desde o início de sua carreira de grammaticus e mesmo antes. Algumas obras disputáveis, contudo, podem ser de período anterior, mas é difícil de acreditar na maioria dessas atribuições, seja porque elas são muito estúpidas mesmo para um poeta jovem, mas que conhecia bem o grego (como Periochae Homeri), ou são simplesmente muito boas para um poeta amador cujo ápice de escrita se deve a um período bem posterior (De Rosis Nascentibus, que como imitação virgiliana deve ser necessariamente de um período anterior).
 
Quanto ao cristianismo de Ausônio, algo mais precisa ser dito por conta de confusões que ainda permanecem a respeito do mesmo. Em matéria de estudo da literatura, Ausônio certamente não é um "poeta cristão" (como são, por exemplo, Prudêncio, Paulino, Venâncio, etc...), mas apenas no sentido de que a maior parte de sua obra é profana. Com tudo, é um erro crasso seguir Gibbons ao dizer que ele era "declaradamente pagão", o que definitivamente não é verdade, nem seguir Chisholm (para a Enciclopédia Britânica) em dizer que ele foi convertido ao cristianismo tardiamente e não era um grande entusiasta. Como já foi dito, Ausônio foi confessadamente Critão, e, de fato, professou sua fé em mais de uma ocasião dentro de sua poesia (Ephemeris 3 [Oratio], Versus Paschales), possui linguagem marcadamente cristã (gentes com sentido de "gentil", sanctius...reverentia... ambas em textos seculares), diversas vezes apresenta valores marcadamente cristãos, particularmente nos epitáfios. Não temos nenhuma evidência de que Ausônio sequer foi pagão em qualquer momento de sua vida, e muitas evidências do contrário, dentre as quais eu cito apenas duas. 1) a conversão ao cristianismo era matéria de orgulho entre autores antigos, de modo que os convertidos faziam questão de descrever sua conversão, e aqueles que sempre foram cristãos (como Paulino de Nola ou Paulino de Pela) costumam descrever suas experiências em termos de conversão também... Ausônio, que como dizia Symmachus, era incapaz de mentir mesmo em verso, nunca usa esse tipo de linguagem nem figurativamente, assumindo o pensamento e prática cristãs como algo "garantido"; 2) a família de Ausônio certamente apresenta comportamentos e valores que só podem ser explicados em contexto cristão, como a opção da tia de Ausônio (que o criou... ver Parentalia VI, que traduzo aqui) pelo celibato, e a conquista de status por parte da mulher através do celibato é algo que só pode existir dentro do contexto da antiguidade cristã, já que até mesmo a excessão romana (as Virgens Vestais), que assumem uma função mandatória para a sociedade, e por isso mesmo são tidas como "aberração" (Cf. Mary Beard e Peter Brown), ao ponto de que um dos ataques feitos à cristandade era exatamente a presença e aceitação dessas mulheres virgens, e a maior frequência (segundo os opositores) de mulheres celibatárias que casadas entre os cristãos (Cf. Santo Agostinho, Contra Faustum), de modo que numa sociedade e família cristã se esperava que Hilária casasse para garantir o seu status e o do marido e não ficasse "pra titia" cuidando do filho dos outros, o que é razoável e louvável num contexto cristão do IV século.

Em matéria de obra, uma coisa completamente externa mas que chama atenção é o fato de que Ausônio era quase certamente falante nativo de grego (a despeito do comentário do próprio de que os estudos dele de grego [i.e.: homérico] não avançaram de modo desejado, grego era a sua língua familiar, a língua de sua educação e da educação de seus familiares...), e isso é curiosamente persistente entre os melhores autores da antiguidade tardia: Amiano e Claudiano eram gregos, Luxório vivia num lugar de fala grega (e provavelmente o latim era puramente literário), e Paulino de Pela relata em seu poema-biografia o quão difícil foi aprender latim.
 
De resto, acho que muitas vezes os poemas falam por si só. Uma lista de obras interessantes do poeta talvez não seja muito relevante, visto que pouco se traduziu dele. Devo mencionar que o Gouvêa Júnior traduziu o Cento Nuptialis, que pode ser lido aqui, e que Daniel da Silva Moreira traduziu alguns epigramas aqui. O volume mais recente do Augusto de Campos aparentemente contém versões de Ausônio, mas não sei quais textos, mas de qualquer modo não espero muito do Augusto quando o assunto é latim. O Matheus de Souza está traduzindo todo o Parentalia, todos os domingos, no seu blog pessoal, e pode ser acessado pelo marcador Ausônio (aqui). O Matheus também foi bem generoso em contribuir com a tradução de um dos meus epigramas favoritos, que eu vou apresentar aqui na versão dele e na versão do João Ângelo.

Por fim, algo precisa ser dito quanto ao texto e numeração. Numeração de texto e verso, na maioria dos autores clássicos, é na maioria das vezes padronizado mesmo quando não faz o menor sentido (por exemplo, Catulo não tem poemas de número 18-20, de modo que em linhas gerais a numeração posterior não faz o menor sentido, mas permanece para evitar confusões), tudo isso para facilitar referência. Ausônio, contudo, é um daqueles raros poetas de corpus volumoso que não possui um sistema padronizado de numeração, de modo que ela é segue diferentes critérios e virtualmente todas as edições relevantes apresentam numeração diferente de uma para outra (excessão: Evelyn-White segue a mesma numeração de Peiper). O resultado disso é que dizer algo como "Epigrama 23" ou "Epigrama 90" não tem sentido por si só, sem fazer referência a edição em questão (o que, aqui no Brasil, ninguém faz), e pode ser ridiculamente difícil achar o texto em edições diferentes. Para a minha tradução eu vou usar a numeração que aparece na edição mais recente da obra, por Roger Green; a edição possui uma concordância (como todas as edições de Ausônio deveriam ter), mas eu vou apresentar os textos que possuem diferença em numeração do seguinte modo:
Epigr. 8G (Epit. 30S; Epit. 31Pe; Epit. 31Pr)
O que eu quero dizer com isso é que o poema seria o Epigrammata 8 na edição de Green, o Epitaphia 30 na edição de Schenkl (para o MGH, numeração idêntica à de Pastorino para as coleções, mas a organização geral das duas edições é distinta), Epitaphia 31 na edição de Peiper (Teubner... idêntica organização de Evelyn-White para a Loeb), e Epitaphia 31 na edição de Prete (organização parecida, mas não igual, à de Peiper nos epigramas e epitáfios, mas distinto nas cartas). Isso é uma bosta, mas é o melhor que posso fazer para garantir que os poemas sejam referenciados corretamente e qualquer um possa achar em sua própria edição ou versão favorita. Para os poemas que a numeração não varia (ou varia apenas se os prefácios são numerados), eu simplesmente seguirei Green. Para o poema que o Matheus e o Ângelo traduzem, eu vou seguir o texto que eles o Matheus usou (Evelyn-White... O Ângelo lê "ut" de T na primeira linha, porém não tenho ideia de onde ele tirou o número 50), mas vou manter o mesmo modelo de numeração (ou seja, o texto é da Loeb mas a numeração segue como Green, Schenkl, Peiper e Prete...). A ortografia é minha, que é a ortografia que acho mais fácil para transcrever. Em professores, a despeito de eu ler egregiam no texto (o manuscrito, aceito por Green e Pastorino) eu deixo a qualificação ambígua, aceitando ao menos tacitamente a opção egregia de Heinsius (como lido por Schenkl, Peiper) ou egregio de Holford-Strevens (que Green propõe mas não aceita no texto) como possibilidades implícitas. Não que importe com uma tradução dessa qualidade.

Parentalia VI [Trad: Raphael Soares]
Aemilia Hilaria matertera [uirgo deuota]
Tuque gradu generis matertera, sed uice matris
affectu nati commemoranda pio,
Aemilia, in cunis Hilari cognomen adepta
quod laeta et pueri comis ad effigiem;
reddebas uerum nom dissimulanter ephebum,
more uirum medicis artibus experiens.
Feminei sexus odium tibi semper, et inde
creuit deuotae uirginitatis amor,
quae tibi septenos nouies est culta per annos;
quique aeui finis, ipse pudicitiae.
Haec, quia uti mater monitis et amore fouebas,
supremis reddo filius exsequiis.
E tu, que é tia em grau, porém és vice-mãe
Em afeto o filho deve celebrar,
Emília, cujo nome Hilaro lhe é apenso
Porque no berço qual menino é alegre;
Sem dissimulação vera feição de um jovem,
Qual homem experiente em artes médicas.
Teu sexo feminino odiaste sempre, e assim
Veio o amor da devota virgindade,
Que mantiveste por nove sétimas de anos;
E o fim da vida é o fim da castidade.
Aqui, quem como mãe mantém amor, lições,
O filho a retornar ritual extremo.

 

Professores XVIII [Trad: Raphael Soares]
Marcello Marcelli filio grammatico Narbonensi
Nec te Marcello genitum, Marcelle, silebo,
aspera quem genetrix urbe, domo pepulit,
sed fortuna potens cito reddidit omnia et auxit;
amissam primum Narbo dedit patriam.
Nobilis hic hospes Clarentius indole motus
egregiam natam coniugio attribuir;
mox schola et auditor multus praetextaque pubes
grammatici nomen diuitiasque dedit.
Sed numquam iugem cursum fortuna secundat,
praesertim praui nancta uirum ingenii.
Verum oneranda mihi non sunt, memoranda recepi
fata; sat est dictum cuncta perisse simul,
non tamen et nomen, quo te non fraudo, receptum
inter grammaticos praetenuis meriti.


Nem esqueço a ti, Marcelo, herdeiro de Marcelo,
Áspera mãe forçou-te a outras plagas,
Tudo e mais a fortuna então te restaurou;
Assim, primeiro em Narbo, achaste pátria.
Aqui Clarêncio, nobre, a ti concedeu sua
Filha p'ra desposar, egrégia índole;
A seguir tuas lições atraíram mil jovens
Pela fama e carreira do gramático.
Mas a fortuna, embora longa, não prossegue,
Principalmente em depravada índole.
Não é o meu dever dar peso, mas lembrar
Do fado; basta lembrar: perdeu tudo
Só não renome, não te roubo, recebido
Qual gramático de mísero mérito.

 

Epigr. 20G (Epigr. 18S; Epigr. 40Pe; Epigr. 40Pr)
[AD VXOREM]
Vxor, uiuamus quod uiximus, et teneamus
nomina, quae primo sumpsimus in thalamo:
nec ferat ulla dies, ut commutemur in aeuo;
quin tibi sim iuuenis tuque puella mihi.
Nestore sim quamuis prouectior aemulaque annis
uincas Cumanam tu quoque Deiphoben;
nos ignoremus, quid sit matura senectus.
Scire aeui meritum, non numerare decet.
Trad: Matheus de Souza
Vivamos, minha
esposa, tudo o que vivemos,
guardando ainda o nome de casados.
Que eu seja o teu rapaz e tu a minha garota
sem que um dia a velhice nos ocorra.
Mais velho que Nestor eu seja e muito embora
emules a Sibila pela idade,
desconheçamos o que seja a senectude,
sabendo os dons do tempo sem contá-lo.

Trad: João Ângelo de Oliva Neto
Mulher, vivamos qual vivemos e tenhamos
os nomes que à primeira noite usamos.
Não haja um dia só, bem que mudemos sempre,
Que não me digas "jovem" e eu, "menina".
Mais velho embora que Nestor, rival que venças
em anos a Deífobe de Cumas,
a velhice madura ignoremos: o mérito
convém saber do tempo, não a soma.

 
Um epigama Jurídico comentado:
Epigr. 99
[Trad: Raphael Soares]

Iuris consulto, cui uiuit adultera coniux,
Papia lex placuit, Iulia displicuit.
Quaeritis, unde haec sit distantia? semiuir ipse
Scantiniam metuens non metuit Titiam.


Advogado que tem esposa adúltera,
lei Pápia aceita, a Júlia lei deplora.
Qual é a diferença? o imoral
Scantínia teme mas não teme a Titia.
Essa é uma pérola do humor jurídico da antiguidade, e um poema que sempre vale a pena apresentar para classes de latim e cultura romana. O conceito é bem simples, do advogado que é imoral e hipócrita: 4 leis são mencionadas, e o advogado se beneficia (lhe agrada) pessoalmente de duas delas, enquanto duas outras leis ele viola. O contexto das leis em si precisa ser mencionado. O advogado se beneficia pessoalmente da lei Pápia (Lex Papia Poppaea), que promove (basicamente força) o casamento, e se beneficia do status de casado por causa dela; contudo, lhe desagrada a lei Júlia, já que a sua esposa é adúltera e ele sabe disso (vive com esposa adúltera)... Para quem não sabe, ser corno manso em Roma era crime grave (Digesta 4, 4, 37). Porque ele aceita uma lei mas rejeita outra, sendo ele um advogado? Porque além de advogado ele é semiuir (a palavra é bem complicada em muitas situações... aqui, contudo, ela tem um sentido claro, que é o de pederasta... de fato, é o sentido usado por todos os apologistas cristãos do período, mas o sentido não é exatamente parte do vocabulário cristão... Cf. explicação de Servio Danielis para a palavra em Aen. IV 215: ab ipsis enim ferunt coepisse stupra puerorum), especificamente um pederasta. Por ser pederasta ele teme a lei Scantínia (ou Escantinia), que criminalizava o stuprum contra ingenui (o sexo com menores homens), porém ele se aproveita da lei Titia, que permitia que magistrados designassem tutores para jovens (o que, presumivelmente, o advogado em questão usa de algum modo para satisfazer seus desejos).

Por fim, recomendo que alguém tome ciência do poeta e traduza para nós Bissula, Mosela e Cupido Cruciatus... Eu não farei, decerto...


Sem fotos, bustos ou pinturas do autor.
Claudius Claudianus (c. 370 - 404 prob.)

Se é quase obrigatório começar a falar da antiguidade tardia com Ausônio, o passo seguinte é necessariamente falar de Claudiano. Claudiano, diferentemente de Ausônio, foi um poeta profissional, circulando a corte do imperador Honório após a morte de Teodósio. Enquanto Ausônio foi tomado como poeta nacional da França e nunca esquecido lá (Hugo, por exemplo, sabia versos dele de cor, e também escreveu Le Rhin, em prosa, mas de caráter similar ao Mosela) a reputação dele sofreu muita oscilação nos outros lugares; Claudiano, sendo lembrado como "o último pagão de Roma", "o último grande poeta latino" tendeu a ser visto em geral com simpatia, embora eu duvido muito que ele tenha tido quantidade significativa de leitores em qualquer época. Hoje em dia a crítica literária favorece o estudo de Claudiano, tendo em vista que a obra dele é em sua quase totalidade política, o que resultou em um grande número de dissertações de doutorado sobre obras específica.

Pouco sabemos da vida de Claudiano. O poeta era grego de Alexandria, numa época em que a intelectualidade da parte oriental do império era raramente bilíngue. Ele provavelmente escreveu sempre em grego, e de fato 7 epigramas dele da fase inicial sobrevivem em grego na Anthologia Palatina (I 19, 20; V 86; IX 139, 140, 753, 754), e um fragmento (Gigantomachia) sobrevive em tradição manuscrita isolada. Contudo, em 394 ele parte para a parte ocidental do império, e no ano seguinte escreve o poema mais antigo que chegou até nós: "Panegyricus fictus Olybrio et Probino consulibus", um elogio aos seus jovens patronos. Após o período ele escreveu diversos Panegíricos para seu mais poderosos patronos, Stilicho e Honorius, dois poemas para as núpcias de Honorius, invectivas contra inimigos dos mesmos, narrativa político-histórica e ensaiou a composição de dois épicos (De raptu Proserpinae e Gigantomachia); de resto, alguns poemas menores e de circunstância sobreviveram. A morte dele se presume pela ausência de qualquer texto ou alusão aos feitos de patronos após 404.

Se Claudiano era realmente pagão ou cristão é algo de debate e provavelmente não pode ser definida para além da incerteza, ao menos com base nas informações que temos. Dois poemas cristãos são atribuídos a Claudiano: Laus Christi e Miracula Christi, mas o primeiro também é atribuído a Merobaudes em melhores bases, e o segundo foi atribuído tardiamente sem bases manuscritas. Mesmo considerando que os poemas fossem de Claudiano, não há nada nos mesmos que não possa ser feito com base em conhecimento superficial das histórias e crenças cristãs, e naquele período não as conhecer era praticamente impossível: Miracula Christi, em particular me parece simplesmente muito apressado (cada dístico um milagre, e de fato o presente dos reis magos no segundo distico não é um... há um possível mal entendimento também no 7º). O que ainda se pode dizer é que autores antigos como Agostinho e Orósio afirmavam que Claudiano sempre fora pagão e nunca se converteu; Scourfield escreve que "como um poeta em uma corte fortemente cristã, é improvável que ele tenha sido pagão", contudo outros estudiosos têm notado que a época em que ele se mudou para o ocidente é extremamente suspeita. Em 393 Teodósio eliminou toda a legalidade dos ritos pagãos, e em 394 massiva perseguição e destruição ocorreu na parte oriental do império (é incerto se o imperador promoveu tais perseguições pessoalmente, mas é certo que ele permitiu que elas ocorressem), então é bastante razoável que o poeta esteja seguindo a tendência da intelectualidade pagã do período e escapando à perseguição.

Como eu já mencionei aqui e na postagem sobre Amiano, é algo bem notável que os melhores autores latinos do período eram falantes de grego. Com tudo, o que é fascinante em Claudiano é o quão "latina" é a sua dicção. Amiano deve ter usado muito latim no período do exército, e Ausônio teve educação bilíngue, ao mesmo tempo que ambos os autores escrevem com muita excentricidade de dicção, sintaxe ou semântica baseado no grego; Ausônio, em paticular, aprecia a escrita macarrônica. Claudiano, contudo, é possivelmente o mais "latino" de todos os autores latinos, ou, ao menos de todos os autores da antiguidade tardia latina. Pelo fato de que ele era grego, muita gente, inclusive eu, tem procurado marcas de grecismo e excentricidades na dicção do poeta, e as poucas que alguns tem identificado parecem ser todas falsas. Aqui eu vou dar os exemplos que eu conheço:

Panegyricus Dictus Olybrio et Probino Consulibus:
122. "in hastam"
Segundo Dewar in hastam tem sentido modal, e por isso seria grecismo. Contudo, Hall e Charlet pensam que in hastam tenha sentido final, portanto é latim natural. De qualquer modo, mesmo esse grecismo é poético desde o período augustano.
De Consulato Stilich. Lib I:
29. Sed pacem foedat vitiis; hic publica felix,
Burman, Heinsius, Dietrich consideram que publica é grecismo (hic ad quod publica). Hic publica com sentido de hic in publica já aparece em Plínio contudo, e publica aqui é por antimetria lugares/ambientes públicos, não exatament "em público".

De Consulato Stilich. Lib II:
389. Depulsa terris iterum regnare dedisti.
Lemaire diz que dedisti é grecismo, e tem o sentido de fecisti. Eu não sei nem mesmo se pode-se dizer que do com sentido de facio é grecismo, mas isso é irrelevante aqui de qualquer modo. Em linguagem militar, do pode significar conceder (permissão, segurança, prêmio), devolver ou restaurar, todos sentidos mais adequados que criar ou produzir.

Panegyricus dictus Honorio sextum consuli
361. dissimulata diu tristes in amore repulsas
Eu não entendo o bastante de grego para saber exatamente porque dissimulata tristes repulsas seria graecismo eleganti (Gesner). Contudo, Birt deve estar certo em interpretar dissimulata com o sentido de neglecta (usado por Ausônio e por Claudiano em outra passagem), e construir repulsas como acusativo de queror.

Por fim, traduzo duas passagens curtas, com base no texto estabelecido por John Barrie Hall. Claudiano é um pouco mais difícil de traduzir, porque a melhor poesia dele é significamente grande em tamanho, por isso eu vou traduzir o trecho mais curto da Fescennina e um poema da Carmina minora, que me parece interessante pelo contexto de divulgação de poemas na época. Até onde sei, há apenas uma tradução de Claudiano para o português europeu, do De Raptu Proserpinae, e em prosa.

Fescennina Dicta Honorio Augusto et Mariae [Trad: Raphael Soares]
III (13)
Solitas galea fulgere comas,
Stilicho, molli necte corona.
Cessent litui saeuumque procul
Martem felix taeda releget.
Tractus ab aula rursus in aulam
redeat sanguis. Patris officiis
iunge potenti pignora dextra.
Gener Augusti pridem fueras,
nunc rursus eris socer Augusti.
quae iam rabies liuoris erit?
uel quis dabitur color inuidiae?
Stilicho socer est, pater est Stilicho.


Sobre o cabelo brilha o elmo em luz,
Stilicho, e brando pões o louro à testa.
Cessem trompetes, e que o sevo Marte
Seja afastado pela tocha fértil.
Que se una a real com a real
Estirpe. O ofício que é do pai
Junge os amantes com potente destra.
Genro de Augusto outrora o foste tu,
E em retorno agora és sogro Augusto.
Que espaço há p'ra raivas da inveja?
Ou o que é que justifica a cor da inveja?
Stilicho é sogro, e pai é Stilicho.

Carmina Minora [Trad: Raphael Soares]
19 - Epistula ad Gennadium ex Proconsule
Italiae commune decus, Rubiconis amoeni
incola, Romani fama secunda fori,
Graiorum popules et nostro cognite Nilo
(utraque gens fasces horret amatque tuos),
carmina ieiunas poscis solantia fauces?
testor amicitiam nulla fuisse domi.
Nam mihi mox nidum pinnis confisa relinquunt
et lare contempto non reditura uolant.

Da itália gente orgulho, e em Rubicão ameno
habita, e em fama lácia o segundo,
Famoso à gente grega e alcança até o Nilo
(Que amaram e odiaram teu ofício),
Me pedes versos para alentar tua garganta?
Tenho nenhum, te digo como amigo.
Quando confiam nas suas asas os meus versos
Fogem de case e nunca mais se voltam.



[Avianus] (~400)

Nada sabemos sobre quem escreveu as fábulas geralmente conhecidas pelo nome autoral "Avianus". As 42 fábulas em dístico elegíaco foram certamente escritas por uma só pessoa, para um Teodósio (presumivelmente Macrobius Ambrosius Theodosius, o que coloca a construção da coleção por volta do ano 400). Se ele é o poeta que Teodósio menciona posteriormente, seu nome era Avienus. Os manuscritos não concordam em nome (Avianus, Avianius, Avienus... o nome Flávio é invenção posterior baseado em má identificação), e aparentemente o autor foi confundido com o outro poeta, Avienius (conhecido no período medieval como Avieno), o que abre a possibilidade para o fato de que o poeta tinha qualquer nome.

As fábulas de "Aviano" gozaram popularidade imensa no período medieval, o resultado é que a tradição textual do poeta é muito contaminada e interpolada (há enormes séries de finais distintos entre os manuscritos) e muitos manuscritos apresentam scholia, comentários e glosas. Robert Gregory Risse editou um desses comentários, e eu recomendo que todo mundo leia porque ele é hilário... Aquele tipo de comentário e leitura que é tão ruim, mas tão ruim, que chega a ser até bom e divertido... Eu iria apresentar uma tradução minha para a Fábula 2, contudo ainda há muitos outros escritores de maior interesse e mérito que precisam ser comentados, e se eu dedicar tanto tempo assim para cada um a série nunca acaba. Também preciso revisar minhas escolhas textuais: no verso 10 eu li excidit com Baehrens, que é a expressão correta e adequada, mas depois de ver como alguns classicistas (que são poetas muito melhores que "Aviano") lidam com substituições por sinônimos e cometem algumas falhas e absurdos de expressão, referência ou fato bem piores que occidit, me parece hoje que a pior forma é legítima, se tratando de uma versão indireta por um versificador que demonstra pouca riqueza de vocabulário.

"Aviano" recebeu uma tradução integral, disponível livremente na internet: a versão de Jorge Manuel Tribuzi Correia de Melo, que preparou uma versão e notas para a sua dissertação (aqui).



Bônus: Publilius Optantianus Porfirius (336+)

Por fim, apresento alguns poemas de Optantianus (que antecede Ausônio) e que não requerem tradução. Optantianus era um político romano, e poeta diletante, que após ser banido em algum momento da carreira escreveu elogios e bajulações para Constantino e foi permitido retomar postos políticos. O que é particularmente notável desse poeta é como a má qualidade e diletantismo podia se passar por poesia que presta, numa época de baixo nível cultural... Como muitas pessoas sabem, a história tende a se repetir, porque aparentemente o ser humano não aprende de verdade com ela. O "texto" é retirado da Patrologia Latina.